domingo, janeiro 29, 2017

Êxtase musical


“Sinto que perco matéria, que caem minhas resistências físicas e que me dissolvo em harmonias e ascensões de melodias interiores. Uma sensação difusa e um sentimento inefável me reduzem a uma indeterminada soma de vibrações, de ressonâncias íntimas e de envolventes sonoridades.

Tudo o que acreditei ter em mim de singular, isolado em uma solidão material, fixado em uma consistência física e determinado por uma estrutura rígida, parece ter se transformado em um ritmo de sedutora fascinação e imperceptível fluidez. Como poderia descrever com palavras o modo como crescem as melodias, como vibra todo meu corpo integrado em uma universalidade de vibrações, evoluindo em fascinantes sinuosidades, em meio a um encanto de aérea irrealidade? Nos momentos de musicalidade interior, perdi a atração de minha pesada materialidade, perdi a substância mineral, essa petrificação que me ata a uma fatalidade cósmica, para atirar-me em um espaço de miragens...”


[ Emil Cioran | O Livro das Ilusões |Tradução de José Thomaz Brum | RJ | Rocco |2014 | p.7 ]


quinta-feira, janeiro 26, 2017

Curiosity


Dia desses uma amiga publicou no facebook um dos belos Cantos dos Cantares de Ezra Pound. Lembrei-me que tenho um livro dele desde 1987. Fui buscá-lo na prateleira, abri e reli toda a introdução de Augusto de Campos - um estudo breve, mas cuidadoso da vida e obra de Pound - e mais alguns poemas, cantos e cartas publicados nessa edição.

Uma das coisas que li nessa pequena introdução e que me chamou a atenção, já há 30 anos, foi que, em suas últimas entrevistas, ao ser questionado se teria algum conselho a dar aos jovens poetas e qual a qualidade que os incitaria a cultivar, Pound respondeu: "creio que o jovem poeta deve ter uma curiosidade ininterrupta. Não há literatura sem curiosidade. Quando a curiosidade do escritor morre, ele está perdido - ele poderá fazer não importa qual acrobacia, mas nada escreverá de vivo se a sua curiosidade estiver morta." 

Augusto de Campos completa que "tudo isso Pound resumiu numa breve anotação: 'curiosity - advice to the young - curiosity.'"


[ Ezra Pound | Canto 120 | Poesia | Traduções de Augusto, Haroldo de Campos, Décio Pgnatari, J.L. Grünewald, Mário Faustino | São Paulo | Hucitec | 1985 | p.39 ]











quarta-feira, janeiro 25, 2017

Irrespirante






nesse luar incerto
a noite respira ofegante
a escuridão está imóvel
as ruínas
sufocantes


sexta-feira, janeiro 20, 2017

Poema da despedida


Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei

Ainda assim,
escrevo.


[ Mia Couto | Raiz de orvalho e outros poemas | Portugal | 2014 ]




sábado, janeiro 07, 2017

O eterno silêncio




SAIR

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


Antonio Cicero | 'Sair' | A Cidade e os Livros | Editora Record | Rio de Janeiro | 2002 | p.77.


"... sobre todas as coisas, o eterno silêncio dos espaços infinitos que nada dizem, nada querem dizer e nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer. ... sobre todas as coisas, o eterno silêncio dos espaços infinitos que nada dizem, nada querem dizer e nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer. ... o eterno silêncio... sobre todas as coisas..."

Encontrei esse belo poema de Antonio Cicero num site de literatura que não me lembro qual. Fui conferir, agora, a autenticidade dele e o encontrei publicado no blog do próprio autor que, aliás, eu não conhecia (o blog, não o autor). Há, nesse blog, um desdobramento dessa publicação motivado por um comentário que serve como pretexto para uma reflexão que discorda do conteúdo do poema. Achei esquisito discordar do conteúdo de um poema, but... o rapaz acaba levantando questões interessantes. 

Antônio Cícero dá um show nas respostas, ainda que diga "não me sinto capaz de explicar um poema meu". Ele acaba sim, num certo sentido, explicando o poema ao responder as perguntas do rapaz. E faz isso muito bem (embora o poema não carecesse propriamente de explicação). Responde às questões com excelentes perguntas, suposições, interpretações possíveis e um raciocínio que me parece impecável. A discussão versa sobre o clássico tema da existência e natureza divinas, bem como sobre aquilo que ficou conhecido (seja na filosofia, na teologia ou na filosofia da religião) como o “problema do mal” — tema sobre o qual passei debruçada uns bons anos da minha vida. Há outros comentários ali, mas a discussão para a qual eu chamo a atenção é entre Lucas Nicolato e Antônio Cícero. Estou com um pouco de preguiça de reconstruir a discussão. Então, se tiver curiosidade, take a look: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2007/08/sair.html.


quinta-feira, janeiro 05, 2017

O corpo de um poema


  [photo by Cristina Otero]


                     olho muito tempo o corpo de um poema
                     até perder de vista o que não seja corpo
                     e sentir separado dentre os dentes
                     um filete de sangue
                     nas gengivas


                    [Ana Cristina César | A teus pés | Brasiliense | 1984]

                         

terça-feira, janeiro 03, 2017

L'amour



Daquelas coisas que a gente lê e não sabe bem por que elas nos tocam...

"Essa singular vaidade do homem que se deixa e quer crer que aspira a uma verdade quando o que ele pede a esse mundo é um amor."

(Albert Camus | Cadernos | 1937-39 | A desmedida na medida | São Paulo | Hedra | 2014 | p.44)