terça-feira, dezembro 07, 2010

O fugaz reino dos perfumes





“... as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração – ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas.”

(O Perfume: A História de um Assassino | Patrick Süskind | Tradução de Flávio Kothe | 3a. ed. | Rio de Janeiro | BestBolso | 2010).

A ideia desse romance é literariamente genial e surreal. A história que Süskind inventou é tão louca, interessante e bela que, capturada, aqui me precipito! Só estou na metade do livro, mas desde o momento em que cheirei as primeiras linhas estou a me conter para não chutar o pau da barraca e passar o dia todo a lê-lo

Logo de início o autor dá uma ideia geral do caráter do seu protagonista. Ele diz: “No século XVIII viveu na França um homem que pertenceu à galeria das mais geniais e detestáveis figuras daquele século nada pobre em figuras geniais e detestáveis.” E acrescenta que se Jean Baptiste Grenouille, “ao contrário dos nomes de outros geniais monstros como, digamos, Sade [...] Bonaparte etc, o seu nome caiu no esquecimento” não foi porque Grenouille estivesse aquém desses “homens das trevas, famosos em termos de arrogância, desprezo à raça humana, imoralidade, ou seja, impiedade, mas porque o seu gênio e a sua única ambição se concentravam numa área que não deixa rastros na História: o fugaz reino dos perfumes” (p.09).

Süskind escreve bem demais. Suas descrições não só das características físicas e psicológicas dos personagens (especialmente do protagonista, of course), mas também das situações e ambientes em que a história se passa são de uma riqueza impressionante. Parece-me que qualquer coisa que um mortal comum possa dizer sobre o assunto será infinitamente menos bela, interessante e genial do que esse autor diz. Então, é melhor deixá-lo falar:


A linguagem dos aromas

Grenouille é um personagem surreal. Alguém que cheira como quem espreita. “O idiota enxerga mais com o nariz do que com os olhos” (p.21) Possuía “o melhor nariz do mundo, tanto analítico quanto visionário” (p.106). Isso significa que o olfato era seu sentido mais aguçado. E todos os seus outros sentidos eram, digamos assim, defectivos. Na verdade, ele era um sujeito muito esquisito, praticamente um débil mental. Sentia o cheiro de tudo, mas, curiosamente, ele próprio, era completamente inodoro.

“Vivia encapsulado em si mesmo...” (p.29), silencioso como uma sombra. Não se esperava dele “qualquer manifestação afetiva” uma vez que a sua própria afetividade fora, por força das circunstâncias em que nasceu e cresceu, “bem lacrada” (p.29). Não precisava de luz para ver, pois se orientava apenas pelo nariz (p.132). E por uma espécie de aversão, menosprezo e ódio aos seres humanos, Grenouille buscava a maior solidão possível.

“... a rigor, não havia qualquer coisa no universo interior de Grenouille, mas apenas odores de coisas. (Por isso, falar desse universo como uma paisagem é força de expressão, pois a nossa linguagem não serve para descrever [os matizes] do mundo olfativo)” (p.140). Ela é infinitamente mais pobre.

Grenouille “tinha a maior dificuldade com palavras que não designassem algo que cheirasse, ou seja, com conceitos abstratos, sobretudo de natureza ética e moral... direito, consciência, Deus, alegria, responsabilidade, humildade, gratidão etc. ─ o que se devia expressar por isso era e continuou sendo para ele algo misterioso... a linguagem corrente já não seria suficiente para designar todos aqueles conceitos olfativos que ele reunira em si” (p.32).

“[...] Que aquela bebida branca que, a cada manhã, Madame Gaillard aprontava para as suas crias fosse simplesmente chamada de leite, quando, segundo a percepção de Grenouille, cheirava e tinha um gosto completamente diferente conforme estivesse quente, conforme a vaca de que provinha, conforme o que essa vaca tivesse comido, conforme a quantidade de nata que tivesse sido deixada e assim por diante..., que a fumaça, com seus cem odores distintos, a mudar a cada minuto, a cada segundo, constituindo uma nova constelação de odores composta em uma nova unidade, a fumaça do fogo, só tivesse exatamente um único nome, “fumaça”...; que a terra, a paisagem, os ares que a cada passo e, ao respirar-se, de inspiração, em inspiração, estavam plenos de um outro cheiro e, com isso, animados por outra identidade, mesmo assim tivessem de ser designados por aquelas três grosseiras palavras... todos esses grotescos desacertos entre a riqueza do mundo percebido pelo olfato e a pobreza da linguagem fizeram o garoto Grenouille duvidar do próprio sentido da linguagem, e ele resolveu só empregá-la quando o contato com outras pessoas tornasse isso absolutamente necessário” (p.32-33).


O alfabeto dos odores

“Aos 6 anos, já havia captado olfativamente todos os seus arredores. ... não havia objeto... não havia lugar, ser humano, pedra, árvore, arbusto ou cerca de ripas, nenhuma superfície, por menor que fosse, que ele não conhecesse pelo cheiro, que não reconhecesse e não guardasse firmemente na memória, em seu caráter único. Ele havia reunido dez mil, cem mil odores peculiares e específicos, mantendo-os à sua disposição tão nitidamente, tão sob controle, que não só se recordava deles quando voltava a cheirá-los como de fato os cheirava quando se recordava deles; sim, e ainda mais do que isso, sabia combiná-los de um modo novo entre si apenas em sua fantasia e, assim, criava em si mesmo odores que nem sequer existiam no mundo real. Era como se possuísse um enorme vocabulário de odores aprendido por conta própria, que o capacitava a formar uma quantidade enorme ─ simplesmente, tantas quanto quisesse ─ de novas frases de odores...” (p.33).

“Talvez o seu talento fosse comparável ao de uma criança-prodígio no âmbito da música, que tivesse, a partir das melodias e harmonias, decifrado o alfabeto dos tons individuais e que agora compusesse ela mesma melodias e harmonias completamente novas. A diferença, é claro, era que o alfabeto dos odores era incomparavelmente maior e mais diferenciado do que o dos tons e, além disso, a atividade criativa de Grenouille se realizava somente em seu interior e não podia ser percebida por ninguém, exceto por ele mesmo” (p.33-34). Ele era “uma presença inquietante... alguém que tinha o dom de ver através de paredes e vigas...” (p.35).

Mas “quem, como ele [Grenouille], tinha sobrevivido ao próprio nascimento no lixo não se deixava expulsar tão facilmente do mundo. Era capaz de comer sopa aguada dias seguidos, sobrevivia com o leite mais diluído, suportava os legumes e as carnes mais podres. Ao longo da infância, sobreviveu ao sarampo, disenteria, varicela, cólera, a uma queda de 6 metros num poço e a uma queimadura no peito com água fervente” (p.27).

“Era duro como uma bactéria resistente e auto-suficiente como um carrapato colado numa árvore, que vive de uma gotinha de sangue sugada no ano anterior. Precisava de um mínimo de alimentação e vestimenta para o corpo. Para a alma, não precisava de nada. Calor humano, dedicação, delicadeza, amor ─ ou seja lá como se chamam todas as coisas que dizem que uma criança necessita ─ eram completamente dispensáveis... Ou então, assim nos parece, ele as tinha tornado dispensáveis simplesmente para poder sobreviver” (p.27).

“O grito depois de seu nascimento, o grito sob a mesa de limpar peixe, o grito com que ele se tinha feito notar e levado a mãe ao cadafalso, não fora um grito instintivo de compaixão e amor. Fora bem calculado, quase se poderia dizer um grito maduramente calculado, com que o recém-nascido se decidira contra o amor e, mesmo assim, a favor da vida. Naquelas circunstâncias, isso era possível sem aquilo e, se a criança tivesse exigido ambos, então teria, sem dúvida fenecido miseravelmente” (p.27-28).

“Também poderia, no entanto, ter escolhido, naquela ocasião, a outra possibilidade que lhe estava aberta, calando e deixando o caminho do nascimento para passar direto à morte sem esse desvio pela vida, e assim teria poupado a si e ao mundo uma porção de desgraças. Mas, para se omitir tão humildemente, teria sido necessário um mínimo de gentileza inata, e isto Grenouille não possuía. Foi um monstro desde o começo. Ele se decidiu em favor da vida por pura teimosia e maldade” (p.28).



(Título Original: Das Parfum, die Geschichte eines Mörders)

9 comentários:

Evelise disse...

Um dos melhores livros que já li. Apesar de fazer mais de 18 anos que o li, sua história, seus cenários, suas emoções, ainda estão bem vivas em minha memória. É definitivamente, um livro Inesquecível. Seu protagonista, tem no olfato, a sensibilidade que algumas pessoas tem na observação. Ou seja, sua capacidade de compreensão do ser humano e sua condição sensível, ultrapassa o 'normal'. É belíssimo e muito perspicaz em sua narrativa. Este é um livro que renderia uma dissertação de mestrado.
Abçs
Evelise

Marília Côrtes disse...

Oi Evelise... desculpe-me mas achei que tinha publicado seu comentário...
hoje, depois de um longo tempo, entrei aqui e vi que não tinha feito isso. Ainda bem que guardei na minha caixa de e-mail. Concordo com sua apreciação da obra. O livro é bárbaro! Um abraço e thanks a lot.

PIBID2011 disse...

Fala moça. Antes de tudo, prazer, meu nome é Phelipe, sou estudante do terceiro periodo de ciências sociais na UFV. Bom, eu tava aqui numa viagem profunda mas o que interessa é que eu vim pesquisar se havia algum simbolo que representasse uma harmonia entre a ordem natural e musica. Isso porque tem menos de uma semana que terminei de ler os Aforismos para sabedoria de vida do Scopenhauer; e acabou que apareceu teu blog aqui, tava lendo, tua tese é sobre a liberdade da vontade, que ele fala nesse livro, eu procurei algma coisa mas não ficou totalmente esclarecido, daí pensei de repente se tem problema eu ler a sua tese. não sei se é pedir muito. de qualquer forma,agradeçoa atenção, meu e-mail é phelipew@hotmail.com

Marília Côrtes disse...

Oi Phelipe, desculpe-me demorar tanto a te responder, é que estava viajando... e bem longe. Sobre Schopenhauer e a liberdade da vontade, não escrevi uma tese. Esse trabalho meu é apenas um TCC: trabalho de conclusão do meu curso de graduação ainda, por isso, penso que você deveria ir direto à fonte. Ele tem um ensaio específico sobre o tema que se chama exatamente Sobre a Liberdade da Vontade. É um ensaio cuja tradução brasileira que conheço não é nada confiável. Sendo assim, seria interessante você procurar uma boa edição, talvez em francês (essa eu conheço e é confiável)ou inglês. Caso você não encontre e queira ler algo mais resumido, incluí em minha dissertação de mestrado sobre "Liberdade e imputabilidade moral em Hume" um apêndice acerca deste tema em Schopenhauer. Essa dissertação encontra-se disponível para download na biblioteca da Unicamp, basta você acessá-la e baixar o arquivo. Procure com esse título acima, e em meu nome: Marília Côrtes de Ferraz, mas o melhor mesmo é você beber na fonte. Schopenhauer trata deste tema também no Livro IV de "O mundo como vontade e representação", e diz coisas importantes acerca disso em "Sobre o fundamento da moral". Estas duas obras tem boas traduções para a nossa língua. Se você encontrar dificuldades, envie-me um e-mail que eu envio o link da dissertação pra vc e te passo as referências completas destas obras.
Um abraço!

Marília Côrtes disse...

Ah... esqueci de dizer (embora, talvez, vc já saiba)que Schopenhauer no livro III de "O Mundo como Vontade e Representação" trata pontualmente da música.

Elizias disse...

huumm! que delícia! me deu vontade de dar uma cheiradinha também. quem sabe um dia?! merci má por compartilhar estas belezinhas! bjocas

Marília Côrtes disse...

borboleta, merci pela visita. quando puder cheire mesmo (e fique louquinha kkk). um beijo

Unknown disse...

Nossa, Ma, li esse livro no ano seguinte do seu lançamento, quando tava entrando na faculdade (nem vou fazer essa conta). Na época não tinha com quem compartilhar, pouca gente conhecia, nem no meu próprio curso! A leitura foi tão impactante, o devorei com tanta voracidade, que até me identifiquei o protagonista. Senti até medo! Achei que tinha matado a vontade de ler outros livros. Os bons livros me provocam isso, quando termino acho que nunca mais vou achar outro tão bom. De fato não é toda hora que um bom livro cai nas nossas mãos. Nem me lembro qual foi o bom livro seguinte. Viu o filme? Também é barbaro, melhor ainda pra quem leu o livro.
Beijo
Ana
Adorei seu blog, tornei-me sua seguidora (o primeiro blog que eu sigo, hein!)

Ana

Marília Côrtes disse...

Oi Ana... que surpresa sua aparição por aqui kkk. Então, esse livro é mesmo pra ser devorado. A história é louquíssima, e muito bem construída e escrita. Na verdade, vi o filme primeiro e gostei bastante. Mas claro, o livro o supera! Adoro a estética da linguagem desse cara.
Bom, temos muitos bons livros por aí. Quando termino um, fico louca pra encontrar outro... e sempre aparece. Recentemente li "A Madrasta", do Mario Vargas Llosa... vc já leu? É demais... belíssimo e a gente lê rapidinho! Adorei vê-la aqui. bjos e obrigada pela visita e comentário.