sábado, setembro 23, 2017

Rien que pour toi


Foi para ti
que desfolhei a chuva
para ti soltei o perfume da terra
toquei no nada
e para ti foi tudo

Para ti criei todas as palavras
e todas me faltaram
no minuto em que talhei
o sabor do sempre

Para ti dei voz
às minhas mãos
abri os gomos do tempo
assaltei o mundo
e pensei que tudo estava em nós
nesse doce engano
de tudo sermos donos
sem nada termos
simplesmente porque era de noite
e não dormíamos
eu descia em teu peito
para me procurar
e antes que a escuridão
nos cingisse a cintura
ficávamos nos olhos
vivendo de um só
amando de uma só vida"

Mia Couto | Para Ti |  Raiz de Orvalho e Outros Poemas | Editorial Caminho | Leya | Lisboa | 2011


quinta-feira, setembro 21, 2017

Diluição


Gabriella | From 'Sentimentalist' Series |
by Matthew Dols


(…)

1.44

Se aquela luz, no entanto, emprestasse o pincel
a um poeta qualquer, eu tentaria agora
fazer que retivesse o retrato cruel
daquela intensidade que nunca se demora,
que atinge o auge um belo dia e vai-se embora,
esgarçando-se aos poucos entre a doçura e o mel
até que as brumas de uma tela ou de um papel
misturam-se e diluem-na pela existência afora…
(…)

[Bruno Tolentino | As epifanias | in: A imitação do amanhecer | p. 52]


segunda-feira, setembro 18, 2017

Ontologia sumaríssima


Umas quatro ou cinco coisas,
no máximo, são reais.

A primeira é só um gás
que provoca a sensação
de que existe no mundo
uma profusão de coisas.

A segunda é comprida,
aguda, dura e sem cor.
Sua única serventia
é instaurar a dor.

A terceira é redondinha,
macia, lisa, translúcida,
e mais frágil do que espuma.
Não serve para coisa alguma.

A quarta é escura e viscosa,
como uma tinta. Ela ocupa
todo e qualquer espaço
onde não se encontre a quinta
(se é que existe mesmo a quinta),
a qual é uma vaga suspeita
de que as quatro acima arroladas
sejam tudo o que resta
de alguma coisa malfeita
torta e mal-ajambrada
que há muito já apodreceu.

Fora essas quatro ou cinco
não há nada,
nem tu, leitor,
nem eu.

Paulo Henriques Britto | 1989

by Isaim Lozano

quarta-feira, setembro 13, 2017

Considerações sobre o princípio de proporcionalidade entre a causa e o efeito nos Diálogos de Hume


Transcrevo abaixo o resumo de meu trabalho apresentado no VI Encontro Hume, em agosto de 2017, na UFMG/BH. Devo dizer que pela primeira vez fui com o texto prontinho, redondinho, sem uma vírgula sequer a mexer, devidamente calculado para o tempo programado de 30 minutos. Fechei o texto em 9 páginas e constatei que poderia lê-lo em 25', ou seja, com 5 minutos de sobra para uma introdução e comentários no meio da leitura.

Em geral, sempre vou a eventos com o texto inacabado e, por isso, viajo preocupada com a apresentação, especialmente porque depois que a gente sai de casa e chega ao evento fica difícil retomar a concentração e trabalhar ainda no texto. Mas dessa vez foi diferente. Não havia mais nada a mexer, cortar ou acrescentar.

Tal texto é uma pequena parte (9 pgs) do segundo capítulo (60 pgs) de minha tese de doutorado (195 pgs). Há tempos não a lia. Gostei do que li rs. Mas tive que ler, reler, treler, cortar, reler, alterar, reler, cortar, putz, é um sofrimento. Mas valeu. Cheguei em BH na quinta-feira anterior ao evento (que começava na segunda). Pude comemorar com uma de minhas filhas (que também foi para lá) o aniversário dela, passear pela bela Belô e também conhecer Inhotim (o must), relax, sem nem precisar tocar no texto. O conforto, a tranquilidade e a segurança de já tê-lo pronto não têm preço.

Eis o resumo

Woman Writing | Picasso | 1934 | Oil on canvas

O tema central dos Diálogos sobre a Religião Natural dirige-se a uma análise do argumento do desígnio, defendido pelo personagem Cleanthes, segundo o qual a existência de um criador sumamente inteligente, justo, poderoso e benevolente pode ser inferida a partir da ordem e da beleza que observamos no mundo. Este argumento reclama uma resposta para a questão acerca de se temos fundamentos razoáveis para acreditar numa divindade (entendida como princípio originário do universo ou causa primeira) dotada de suprema inteligência, atributos e intenções morais, e procede por analogia explorando as similaridades entre os artifícios da natureza e certos artefatos humanos, a fim de provar que a mente divina é de algum modo similar à mente humana. Na seção 11 da EHU e também nos Diálogos, Hume, em sua investida contra o argumento do desígnio, recorre ao princípio de proporcionalidade entre a causa e o efeito. Ali, o personagem amigo epicurista de Hume estabelece que “quando inferimos qualquer causa particular de um efeito, devemos guardar a proporção entre eles, não sendo jamais permitido atribuir à causa quaisquer qualidades que não sejam precisamente aquelas suficientes para produzir o efeito. [...] e que se a causa atribuída a algum efeito não for suficiente para produzi-lo, devemos ou rejeitar essa causa ou acrescentar-lhe qualidades que a tornem corretamente proporcional ao efeito” (EHU 11 § 12: 190). Fiel a este princípio, Philo, o principal crítico do argumento do desígnio, afirma nos Diálogos que “quanto maior a semelhança dos efeitos que são vistos, e a semelhança das causas que são inferidas, mais forte é o argumento, e que, portanto, qualquer afastamento diminui a probabilidade e torna o experimento menos conclusivo” (D 5 § 1: 67). Com essa regra em mãos, Philo vai extrair algumas consequências inconvenientes que se seguem dos princípios que Cleanthes assumiu (like effects prove like causes) em defesa de seu próprio argumento, isto é, em defesa do argumento do desígnio. É sobre a relevância de tais princípios e consequências para a hipótese do desígnio que pretendo aqui discutir. (e foi o que eu fiz). C'est fini!

sexta-feira, setembro 08, 2017

Delírio de arquivística


Acreditei que se amasse de novo
esqueceria outros
pelo menos três ou quatro rostos que amei
Num delírio de arquivística
organizei a memória em alfabetos
como quem conta carneiros e amansa
no entanto flanco aberto não esqueço
e amo em ti os outros rostos


Ana Cristina Cesar | 1952 - 1983 | in “Inéditos e Dispersos”




terça-feira, setembro 05, 2017

Peito Vazio


Havia uma propaganda no Spotfy que eu achava uma graça. A cena se dava pela locução de um rapaz que se mostrava sem jeito, titubeante, com o pensamento e a fala entrecortados. Ele perdia as palavras, mostrava-se inseguro, perturbado, afogando-se em suas próprias emoções.

Ele dizia:

- Olá... éee.... 
- bem, eu só queria dizer... ahhh... 
- sabe...
- eu só estava imaginando se...
- olha... deixa eu te dizer...

Daí entrava uma moça (a locutora) com voz de quem está de bem com a vida, leve, segura, insinuante (quase podemos vê-la com um sorrisinho nos lábios)... e perguntava, assim, na lata!!!

- Ficou sem palavras???

(seguia-se um rápido silêncio)

(e ela mesma, com um tom bem humorado e sugestivo, respondia:)

- Compartilhe uma música!

(e play)...

Sempre que eu ouvia essa propaganda me dava vontade de compartilhar uma música, associada a certas cenas, lembranças e saudades... Eu teria muitas. Hoje escolhi essa: Peito Vazio, do Cartola e Elton Medeiros, na voz de Roberta Sá e Ney Matogrosso, tocada pelo Trio Madeira Brasil. 

Aumente o som, respire fundo... and play !!!







sábado, setembro 02, 2017

Adeus



Vai-te, que os meus abraços te magoaram,
E o meu amor não beija!, arde e devora.
Foram-se as flores do meu jardim. Ficaram
Raízes enterradas, braços fora...

Vai-te! O luar é para os outros; e os afagos
São para os outros..., os que ensaiam serenatas.
Já a lua que nos lagos bóia pérolas e pratas
Não nasce para mim, que estou sem lagos.

Quando me nasce, é como um reluzir da treva,
Um riso da escuridão,
Que na minh'alma ecoa, e que ma leva
Por lonjuras de frio e solidão...

Vai-te, como vão todos; e contentes, de libertos
Do peso de eu lhes não querer trautear mentiras.
Como serias tu, flébil flor de olhos de safiras,
Que me acompanharias nos desertos?

Vai-te! não me supliques que te minta!
Beijo-te os pés pelo que me oferecias.
Mas teu amor, e tu, e eu, e quanto eu sinta,
Que somos nós mais do que fantasias?

Sim, amor meu: em mim, teu amor era doce.
Premir na minha mão a concha nácar do teu seio
Era-me um bem suave enleio...
Era... — se o fosse.

Vai-te!, que eu fui chamado a conquistar
Os mundos que há nos fundos do meu nada.
Talvez depois reaprenda a inocência de amar...
Talvez... mas ai!, depois de que alvorada?

Porque até Lá, é longe; e é tão incerto,
Tão frio, tão sublime, tão abstracto, tão medonho...
Como dar-te a sonhar este sonho dum sonho?

— Vai-te! a tua casa é perto.


[ José Régio 1901-1969 | in 366 poemas que falam de amor | antologia organizada por Vasco da Graça Moura | Quetzal Editores ]





terça-feira, agosto 29, 2017

Dor


Esta, a lancinante, a companheira perpétua, dor, a amiga vitalícia – como funda e violentamente penetra, que é como se rasgasse, dentro aqui, é como se meticulosamente perfurasse, como se fendesse, dentro aqui, a veia mínima. Não a aorta ou carótida, mas a artéria ínfima, aquela que alimenta o centro do centro do centro do meu coração. E dói tanto, dói por ti, única e somente e infinitamente por ti.


texto | Ygor Raduy | in: Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir) Relevantes


quinta-feira, agosto 10, 2017

VI Encontro Hume - UFMG - BH - 2017


Segue abaixo o link para acessar a programação do VI Encontro Hume. O evento ocorrerá entre os dias 21 e 25 de Agosto de 2017 - na UFMG/Belo Horizonte/MG, and I'll be there...




terça-feira, agosto 01, 2017

Restos e destroços


[...]

(1.2)

Nem tudo se desfaz, anda em tudo um resquício,
um eco ou outro a mais de restos e destroços, 
que alcançam ou não alcançam voltar a serem nossos,
segundo um coração baixe a seu precipício.

Que a aventura é escarpada e a escalada difícil,
alguém já disse isso; diz-se também que os ossos
do ofício, nus, inglórios, são como um desperdício,
um fogo-fátuo na memória - quantos fósseis
somam um só rosto, a mão que o livra num só gesto
de um feixe de cabelos a tumultuar-lhe a testa...?

Resta que um corpo acorda louco de alegria,
só porque, oco como uma ânfora vazia,
ainda há pouco invadiu-o, lhe entrou por cada fresta,
a luz daquele gesto que ele há tempos não via...

[...]

Bruno Tolentino | As Epifanias | A imitação do Amanhecer | SP  Globo | 2006 


sexta-feira, julho 28, 2017

Cumplicidade



[ Eve | by Anna Lea Merritt 1844-1930 ]

MAÇÃ

Como se esta, ela, não estando morta, porém vivacíssima, guarda a suculência e o ritmo – como guardas tu a plenipotência o ritmo da tua pulsação – ela, a fruta sobre a mesa, nem flor, nem luz, nem silêncio, porém delicadamente silenciosa, como tu és delicadamente silencioso quando te convém. Ela, que pendia de um galho da árvore do conhecimento, proibida, porém atraente e infinitamente sedutora – assim como tu pendes à minha frente, evidentemente dulcíssimo, sem que eu possa em ti cravar os dentes, ou melhor, lentamente passear em ti e ao teu redor. Ela, a fruta, ele, o ente, estando ambos secretamente semelhantes, secretamente cúmplices de um mesmo e inocente crime, qual seja, o de estarem simplesmente existentes, porém absolutamente inacessíveis.

[ Ygor Raduy ]

..................

(Trata-se, acima, de mais um verbete do 'Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir) Relevantes II', written by my dearest friend Ygor Raduy, que gentilmente me concedeu o privilégio e o prazer de torná-lo público, tal como, aos poucos, tenho feito). 

sábado, julho 22, 2017

Dissolução


Pois se vens tu ao meu encontro ao fim da tarde, e com teus olhos negros, teu sorriso, te diriges a mim, com teus passos cuidadosos, tua fala macia e hesitante, procuro recolher em mim o som da tua voz, de modo que em algum lugar em mim possa ele permanecer guardado, quem sabe em algum fundo recesso do meu peito, quem sabe mesmo no centro do meu coração.

Pois se vens tu ao meu encontro ao fim da tarde, desconfio que sejas tu a própria tarde, e que o vento, o farfalhar das folhas e até mesmo a luz que ao fim da tarde arredonda os contornos das coisas e cobre tudo e todos com seu brilho fosco – desconfio que seja tudo isso uma parte de ti, que o que vejo ao fim da tarde não passa de uma extensão do teu corpo, do teu nome e do teu ser.

Mas em tudo isso devo estar enganado. Pois se algo em mim quer apagar o limite que te separa da tarde, se algo em mim insiste em dissolver-te na tarde, é porque dissolvendo-te em ar posso aspirar-te, dissolvendo-te em vento posso sentir na face o contato quase imaterial dos teus dedos e dissolvendo-te em luz posso participar do teu brilho e secretamente desfrutar do teu calor.


texto | Ygor Raduy | Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir)Relevantes II 



quarta-feira, julho 19, 2017

Voz da noite


O sol se apaga.
De mansinho,
a sombra cresce.

A voz da noite
diz, baixinho:
esquece... esquece..

[ Helena Kolody | Viagem no Espelho | 1988 ]



domingo, julho 16, 2017

Ausência de tudo


Há apenas o que chamamos silêncio
ou uma ausência de tudo: nome este que damos
à instância que nos remete ao nada,
à constância que nos remete ao vácuo,
o inapelável que nos remete à morte.

Há um rangido macio, sem quebras
mas com rodopios, falsetes, arabescos:
é o que chamamos sonho, miragem,
clivagem de entraves espaçados,
aragem dos frutos na colheita.

Há um susto, um murmúrio surdo,
um baque sem ouvintes, vestimenta:
é quando um poeta deixa de crer na linguagem.
Tão inteiro então é o silêncio
que é como se a noite mesma se fechasse.

Como se o ar, parado se abismasse;
e o fruto mesmo então é inconsistente;
e as vagas cedem, recrudescem à procura
De um pouso inabitável. Ou ainda:
inexistente.

[ poema & pintura | ygor raduy ]



domingo, julho 09, 2017

Retrato antigo


Ontem, ao rever essa foto de minha mãe, Walkyria Ferraz, lembrei-me desse poeminha...

"Quem é essa
que me olha
de tão longe,
com olhos que foram meus? "

[ Helena Kolody | Retrato Antigo | Poemas do amor impossível | 2002 ]



Para minha surpresa, ela [my mom] me disse que foi aluna da Helena Kolody no Instituto de Educação do Paraná. Achei o máaaximo (quisera eu...).

A foto, de Mirian Costa Vajani, foi a vencedora do 1º lugar no Concurso Desafio Virtual do Fotoclube de Londrina/2016 e encontra-se exposta no foyer do Cine Teatro Ouro Verde.

quinta-feira, julho 06, 2017

Pintura



man over yellow background
drawing | ygor raduy


Eu sei que se tocasse
com a mão aquele canto do quadro
onde um amarelo arde
me queimaria nele
ou teria manchado para sempre de delírio
a ponta dos dedos


Ferreira Gullar | Pintura | in Relâmpagos | São Paulo | Cosac & Naify  2003

segunda-feira, julho 03, 2017

Noturno


VIII

É noite. Paira no ar uma etérea magia;
nem uma asa transpõe o espaço ermo e calado;
e, no tear da amplidão, a Lua, do alto, fia
véus lumiosos para o universal noivado.

Suponho ser a treva uma alcova sombria,
onde tudo repousa unido, acasalado.
a Lua tece, borda e para a Terra envia
finos, fluidos filós, que a envolvem lado a lado.

Uma brisa sutil, úmida, fria, lassa,
erra de quando em quando. É uma noite de bodas
esta noite... há por tudo um sensual arrepio.

Sinto pelos no vento... É a Volúpia que passa,
flexuosa, a se roçar por sobre as coisas todas,
como uma gata errando em seu eterno cio.


[Gilka Machado | Cristais Partidos ]


sábado, julho 01, 2017

O poeta pergunta a seu amor...

             
               "[...]
             
                Não viste pelo ar transparente
               uma dália de penas e alegrias
               que te mandou meu coração quente?"


surreal digital paintings 
by aykut aydoğdu


F. García Lorca | Sonetos do amor obscuro e Divã do Tamarit | Tradução de William Agel de Mello | SP | MEDIAfashion | 2012 | p.27

domingo, junho 25, 2017

Canto do amor impossível


Meu amor impossível
eu sou, na dor que me avassala,
o transeunte solitário perdido na tormenta.

O vento ulula, a chuva açoita, o raio estala,
e não há uma porta amiga,
um cálido refúgio
que me acolha e aqueça,
que me distraia e console
do rigor da tormenta.

O único refúgio serias tu,
e tu estás para além da muralha intransponível
que marca os limites do possível.

[ Helena Kolody | Infinita Sinfonia | Inventa 2014 | p. 126 ]


segunda-feira, junho 12, 2017

A espera do silêncio


No avesso das palavras
na contrária face
da minha solidão
eu te amei
e acariciei
o teu imperceptível crescer
como carne da lua
nos noturnos lábios entreabertos

E amei-te sem saberes
amei-te sem o saber
amando de te procurar
amando de te inventar

No contorno do fogo
desenhei o teu rosto
e para te reconhecer
mudei de corpo
troquei de noites
juntei crepúsculo e alvorada

Para me acostumar
à tua intermitente ausência
ensinei às timbilas
a espera do silêncio




[ Mia Couto | Amei-te Sem Saberes | In: Raiz de Orvalho e Outros Poemas | Editorial Caminho | Lisboa | 1999 ]


quinta-feira, junho 01, 2017

Frágil e incerta


Há pouco, ao me levantar da cadeira na qual estudava, levei um tombo ridículo (como em geral são os tombos). Virei-me rapidamente para ir até a sala buscar meu celular e tropecei feio no adorável cão da casa que, por sua vez, descansava silenciosamente logo atrás da cadeira. Chegou ali sem que eu, absorta, o tivesse percebido. Ele é meio cor de creme, o piso da casa é cor de creme e até eu sou meio cor de creme. Diante desse cenário de cores e tons praticamente indistintos, não vi nada na minha frente, afora, após o tombo, o chão na cara, uma escuridão momentânea, seguida de algumas estrelas piscando. Caí dura, de corpo inteiro no chão, feito bloco de pedra, pois o silente e vigilante companheiro ─ que é grande e alto ─ me passou uma rasteira. Levantou-se rapidíssimo deslocando meus dois pés do chão ao mesmo tempo. Sem qualquer apoio, a queda foi praticamente livre. Digo praticamente porque consegui amortizá-la um pouco com as duas mãos. As veias de meus pulsos saltaram grossas e roxas. Meus ossos gritaram. 

Doeu pacas!!! Cheguei a tocar o nariz e a testa no chão. Junto a essa cena tragicômica, senti uma pontada nas escápulas, no pescoço, e uma forte dor no peito. Ninguém assistiu ao espetáculo, a não ser o próprio Bóris ─ doce cão, amigo, querido, e cheio de expressão nos olhos. Sem ninguém para me acudir no momento, fiquei ali por um tempo, estatelada, gemendo muitos ais. Aos poucos, fui me levantando. Toda trêmula e doída.

Pensei: tive muita sorte. Se eu tivesse caído de modo um pouco mais desajeitado, as consequências poderiam ter sido desastrosas. Eu poderia ter quebrado o nariz, ou o osso da fronte, um ou outro ou ambos os braços, ou uma clavícula, os pulsos, ou mesmo o pescoço ─ um pensamento trágico nunca pode faltar em se tratando de moi...

Ah... como a vida é frágil e incerta! Eu poderia ter me quebrado toda. Um tombinho de nada (na verdade, um tombão ridículo!) e tudo que eu programei para a semana que vem, ou mesmo para o resto de minha vida, seria revirado, alterado ou afundado.

[Boris: cheio de expressão nos olhos]


E por falar em vida frágil e incerta, a gente ouve falar daquelas pessoas que morrem num tombo besta porque caíram de mau jeito. Pensei: ainda que eu esteja agora toda dolorida, com hematomas nos dois pulsos, caí de bom jeito, assim como capotei de bom jeito na famosa estrada da morte, em outubro de 2016, a mais ou menos 100 km de Curitiba. Nessa capotada, que de cômica não teve nada (uma clássica rodada no óleo de uma pista sob garoa), também tive muita sorte. Saí praticamente indene. Não fiz nenhum corte, não verti nenhuma gota de sangue, não quebrei um osso sequer. Ganhei apenas alguns hematomas abaixo dos joelhos, nas costelas e na clavícula esquerda, além de diversos incômodos práticos e dores pelo corpo todo (como se tivesse levado uma surra). Mal acreditei que na hora do acidente não fiquei nem tonta e saí andando, embora estupefata, imediatamente após o carro parar embicado numa vala do canteiro que divide as pistas. Mas, para a sorte do meu destino, "esse fantasma sincronizador" (como diz Humbert Humbert em Lolita), com as rodas no chão. Para não dizer que não perdi nada, perdi alguns materiais impressos de estudos (que foram parar na lama), um brinco da orelha esquerda, meu Celtinha "bala" ─ tão leve, rodado e cheio de spirit ─ e mais algumas ilusões.

.............................................
[marília côrtes / 2017]

sexta-feira, maio 26, 2017

Diálogos sobre a religião natural


"No caso dos raciocínios teológicos [...] 
somos como forasteiros numa terra estranha,
aos quais tudo parece suspeito" (D 1 § 10: 37).

[ William Blake | O primeiro dia |1794 ]

Os Diálogos Sobre a Religião Natural, escritos entre 1751 e 1755 e publicados em 1779, constituem-se num dos mais importantes e influentes textos filosóficos de Hume, bem como num dos mais belos e engenhosos exemplos de diálogo filosófico. E embora a obra seja voltada para a temática da filosofia da religião, ela é uma contribuição de primeira grandeza para investigações filosóficas mais gerais como, por exemplo, metafísica, teorias do conhecimento, e também para a própria filosofia moral ou ciência da natureza humana que Hume pretendeu fundar. Nesse sentido, o texto dos Diálogos é um clássico filosófico amplamente reconhecido que figura entre as obras mestras de Hume.


Acesso ao cronograma do evento em http://filosofia.ufsc.br/

I'll be there...


quarta-feira, maio 24, 2017

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
por que o fizeste, por que te foste.


Carlos Drummond de Andrade | 'A Um Ausente' | In: Farewell | Poesia Completa | Editora Nova Aguilar | Rio de Janeiro | 2007



Qualquer ser humano que conhece o amor e a dor da perda de um amor, ou de um amigo, sentir-se-ia, creio eu, profundamente tocado por esse belíssimo e penetrante poema. Mas nem todos, talvez, procurassem saber a trágica história que ele conta. A quem interessar possa, deixo aqui o link que a conta, por Marcelo Bortoloti:

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/07/1659927-a-homossexualidade-na-vida-e-na-obra-de-carlos-drummond-de-andrade.shtml


quarta-feira, maio 17, 2017

Dia Internacional contra a Homofobia




"[...]  Mesmo coberto de lama, eu te louvarei; dos abismos mais profundos, clamarei por ti. Na minha solidão estarás comigo. [...] O que a sabedoria representa para o filósofo, o que Deus representa para o santo, tu és para mim. Manter-te na minha alma, tal é o objetivo dessa dor que os homens chamam de vida. Ó meu amor, que eu amo acima de todas as coisas, narciso branco no campo agreste, pensa na dura tarefa que te compete, tarefa que só o amor pode tornar mais leve. Mas não te entristeças por isso, antes sê feliz por ter enchido de amor imortal a alma de um homem que agora chora no inferno, mas leva o céu no coração. Eu te amo, eu te amo, meu coração é uma rosa que teu amor fez florescer, minha vida é deserto arejado pela brisa deliciosa do teu hálito e cujas fontes frescas são teus olhos; a marca de teus pezinhos cria vales de sombra para mim, o aroma de teus cabelos é como a mirra; por onde passas, exalas o perfume das acácias.

Ama-me sempre, ama-me sempre. Foste o amor supremo, o amor perfeito da minha vida; não pode haver outro.

[...] 

Ó mais doce dos meninos, mais amado dos amores, minha alma busca a tua, minha vida é tua vida e em todo o mundo de dor e prazer, és meu ideal de admiração e alegria." 

[ De Oscar Wilde para Lorde Alfred Douglas | 1895 ]


[ Cartas de amor de homens notáveis | Editado por Ursula Doyle | Tradução de Doralice Lima | Rio de Janeiro | BestSeller | 2010 | p.140-141 ]

terça-feira, maio 09, 2017

Ausência


"Antes, tu estavas. Agora, tu não estás mais. O agora é um agora sem ti. Lá fora, tão mansamente cai a chuva. Mas é uma chuva sem ti, e não importa quão mansamente ela caia, não importa nem mesmo que seja ela ou não a chuva, porque ela, assim como todas as outras coisas, são coisas sem ti. E eu mesmo – eu respiro sem ti, meu coração pulsa sem ti em algum lugar fora do lugar do coração, eu me olho no espelho e verifico que sou uma face sem ti, meus olhos sem ti são dois buracos ocos sem serventia, já que a única serventia que eles tinham era olhar-te e agora, sem ti, eles miram estupidamente o vazio. Não me encontro alegre nem triste. Alegria e tristeza eram somente possíveis por ti, ou em teu louvor. Agora que te foste, não há razão alguma pela qual possa eu alegrar-me ou entristecer-me. Há apenas esse apático e despovoado e monótono agora sem ti e, dentro dele, lágrimas que verto sem razão."


[ Ygor Raduy | Pequeno Manual de Coisas Absolutamente (Ir)Relevantes ]




art by Mantha Tsialiou 

sexta-feira, maio 05, 2017

Onde não vive o adeus




"Não é apenas um vago, modulado sentimento
O que me faz cantar enormemente
A memória de nós. É mais. É como um sopro
De fogo, é fraterno e leal, é ardoroso
É como se a despedida se fizesse o gozo
De saber
Que há no teu todo e no meu, um espaço
Oloroso, onde não vive o adeus.

Não é apenas vaidade de querer
Que aos cinquenta
Tua alma e teu corpo se enterneçam
Da graça, da justeza do poema. É mais.
E por isso perdoa todo esse amor de mim

E me perdoa de ti a indiferença."


Hilda Hilst | Dez Chamamentos ao Amigo | Poema X | In: Obra Poética Reunida | 1950-1996 

domingo, abril 30, 2017

Dispersa na imensidão


O confiteor do artista


Como são prementes os dias de outono! Ah! Prementes a ponto de machucar! Pois há certas sensações deliciosas cuja indefinição não exclui a intensidade; e não há nada mais pungente que a ponta do infinito.

Que delícia indizível ter o olhar disperso na imensidão do céu e do mar! Solidão, silêncio, inocência incomparável do azul! A vela de uma pequena embarcação que vibra no horizonte, e que pelo tamanho diminuto e isolamento imita minha existência irremediável, melodia monótona do marulho; todas essas coisas pensam através de mim, ou eu penso através delas (pois, na desmesura do devaneio, o eu se perde depressa!); essas coisas pensam, eu digo, mas musicalmente e de forma pitoresca, sem argúcias, sem silogismo, sem deduções.

Em todo o caso, esses pensamentos, saiam eles de mim ou se lancem das coisas, cedo se tornam intensos. A energia que há na volúpia cria um mal-estar e um suspense positivos. Meus nervos retesados não proporcionam senão sensações gritantes e dolorosas.

E eis que a vastidão do céu me oprime, sua translucidez me exaspera. A falta de sensibilidade do mar e o caráter imutável do espetáculo me revoltam... Ah! Deve-se sofrer eternamente, ou eternamente fugir do belo? Natureza, feiticeira sem piedade, rival sempre vitoriosa, larga-me! Chega de provocar os meus desejos e o meu orgulho! O estudo do belo é um duelo no qual o artista grita de susto antes de ser vencido. 

Baudelaire | O Spleen de Paris | Pequenos poemas em prosa | Tradução de Alessandro Zer | Porto Alegre | RS | L&PM Pocket | 2016  pp.17-18

[ by Hanna of Hanna & Hedvig ]


Well, ao pesquisar o significado da palavra "confiteor", encontrei também o poema na língua original. Antes tivesse ficado quieta, pois isso foi suficiente para eu querer modificar, em ao menos alguns pontos, a tradução do Zer. Acho que eu não traduziria, por exemplo, "pénétrantes" por "prementes". Tampouco "pénétrantes jusqu’à la douleur" por "Prementes a ponto de machucar", mas, talvez, "Penetrantes até a dor" ... literalmente, enfin, traduzir exige que façamos escolhas. E nem sempre fazemos as melhores. As dúvidas nos atormentam, as decisões aussi. Ganha-se aqui, perde-se ali.

- Ah, mas por que me ocupar disso agora? 


Le Confiteor de l'Artiste


"Que les fins de journées d’automne sont pénétrantes ! Ah ! pénétrantes jusqu’à la douleur ! car il est de certaines sensations délicieuses dont le vague n’exclut pas l’intensité ; et il n’est pas de pointe plus acérée que celle de l’Infini.

Grand délice que celui de noyer son regard dans l’immensité du ciel et de la mer ! Solitude, silence, incomparable chasteté de l’azur ! une petite voile frissonnante à l’horizon, et qui par sa petitesse et son isolement imite mon irrémédiable existence, mélodie monotone de la houle, toutes ces choses pensent par moi, ou je pense par elles (car dans la grandeur de la rêverie, le moi se perd vite !) ; elles pensent, dis-je, mais musicalement et pittoresquement, sans arguties, sans syllogismes, sans déductions.

Toutefois, ces pensées, qu’elles sortent de moi ou s’élancent des choses, deviennent bientôt trop intenses. L’énergie dans la volupté crée un malaise et une souffrance positive. Mes nerfs trop tendus ne donnent plus que des vibrations criardes et douloureuses.

Et maintenant la profondeur du ciel me consterne ; sa limpidité m’exaspère. L’insensibilité de la mer, l’immuabilité du spectacle me révoltent… Ah ! faut-il éternellement souffrir, ou fuir éternellement le beau ? Nature, enchanteresse sans pitié, rivale toujours victorieuse, laisse-moi ! Cesse de tenter mes désirs et mon orgueil ! L’étude du beau est un duel où l’artiste crie de frayeur avant d’être vaincu."



quinta-feira, abril 27, 2017

Dito e feito


"Dali em diante o esforço do amor deles foi para derrotar aquela frieza que jazia adormecida dentro dela e que, com uma palavra, uma pequena mágoa, uma dúvida, podia vir à tona para destruir a posse de um pelo outro" ( Anaïs Nin | Delta de Vênus | p.135-136 ).


quinta-feira, abril 20, 2017

VI Encontro Hume - Chamada para Trabalhos


VI ENCONTRO HUME

Belo Horizonte, 21 a 25 de Agosto de 2017

Local: FAFICH - UFMG



A Comissão Organizadora do VI Encontro Hume convida os estudantes de pós-graduação, professores e pesquisadores da filosofia de Hume para submissão de trabalhos sobre Hume e seus interlocutores. 

Datas e local do evento: 

O VI Encontro Hume ocorrerá entre os dias 21 e 25 de Agosto de 2017 na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FAFICH - da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG 

Sobre os resumos:

Os interessados deverão submeter um resumo de até 500 palavras em arquivo Word ou similar (fonte Arial, tamanho 12, espaço 1,5) para o e-mail: encontros.hume@hotmail.com. O resumo, com a devida apresentação do problema e as linhas gerais do argumento que se pretende desenvolver, deverá ser intitulado e incluir até 5 palavras-chaves.  No ato da submissão do resumo os autores deverão enviar por e-mail os seguintes dados: 

Nome completo: 
Endereço eletrônico:
Endereço e telefone: 
Título do trabalho: 
Instituição de origem e titulação:


Data final para submissões de propostas de trabalhos

24 de Junho de 2017


A aceitação do resumo possibilita ao proponente a apresentação oral de comunicação no evento, conforme programação a ser divulgada. O tempo para cada comunicação será de 30 min, com 10 min para a discussão do trabalho (total: 40 min). Após a realização do evento haverá entrega de certificado para os apresentadores de comunicação e ouvintes devidamente inscritos.

As datas para o pagamento das inscrições, programação e demais informações necessárias para a realização do VI Encontro Hume serão repassadas em breve, por meio de uma nova publicação e email. 

A notificação sobre a aceitação de cada trabalho será enviada exclusivamente por e-mail até o dia 15 de Julho de 2017. Inscrevam seus trabalhos e aguardem-nos!

Comissão Organizadora

Lívia Guimarães (UFMG)
Marília Côrtes de Ferraz (UFSC)
Hugo Arruda (UFMG)
Pedro Vianna Faria (UFMG)
Stephanie Zahreddine (UFMG)
Anice Lima (UFMG)
Wendel de Holanda (UFMG)
Vinícius Amaral (UFMG)


Comissão Científica

Pedro Paulo Pimenta (USP) 
Maria Isabel Limongi (UFPr)
Jaimir Conte (UFSC)
Marcos Ribeiro Balieiro (UFS)
Marcos César Seneda (UFU)
Andrea Cachel (UEL)
Stephanie Zahreddine (UFMG)
Bruna Frascolla (UFBA)


Organização da mesa em homenagem ao 
Professor João Paulo Monteiro 

Andrea Cachel (UEL)
Anice Lima (UFMG)
Bruna Frascolla (UFBA)

Coordenação Geral

Lívia Guimarães (UFMG)


Apoio

Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Departamento de Filosofia
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


quarta-feira, abril 19, 2017

Borboletices




No dia seguinte, como eu estivesse a preparar-me para descer, entrou no meu quarto uma borboleta, tão negra como a outra, e muito maior do que ela. [...] A borboleta, depois de esvoaçar muito em torno de mim, pousou-me na testa. Sacudi-a, ela foi pousar na vidraça; e, porque eu sacudisse de novo, saiu dali e veio parar em cima de um velho retrato de meu pai. Era negra como a noite. O gesto brando com que, uma vez posta, começou a mover as asas, tinha um certo ar escarninho, que me aborreceu muito. Dei de ombros, saí do quarto; mas tornando lá, minutos depois, e achando-a ainda no mesmo logar, senti um repelão dos nervos, lancei mão de uma toalha, bati-lhe e ela caiu.

Não caiu morta; ainda torcia o corpo e movia as farpinhas da cabeça. Apiedei-me; tomei-a na palma da mão e fui depô-la no peitoril da janela. Era tarde; a infeliz expirou dentro de alguns segundos. Fiquei um pouco aborrecido, incomodado.

 Também por que diabo não era ela azul? disse eu comigo.

E esta reflexão,  uma das mais profundas que se tem feito, desde a invenção das borboletas,  me consolou do malefício, e me reconciliou comigo mesmo. Deixei-me estar a contemplar o cadáver, com alguma simpatia, confesso. Imaginei que ela saíra do mato, almoçada e feliz. A manhã era linda. Veio por ali fora, modesta e negra, espairecendo as suas borboletices, sob a vasta cúpula de um céu azul, que é sempre azul, para todas as asas. Passa pela minha janela, entra e dá comigo. Suponho que nunca teria visto um homem; não sabia, portanto, o que era o homem; descreveu infinitas voltas em torno do meu corpo, e viu que me movia, que tinha olhos, braços, pernas, um ar divino, uma estatura colossal. Então disse consigo: «Este é provavelmente o inventor das borboletas». A ideia subjugou-a, aterrou-a; mas o medo, que é também sugestivo, insinuou-lhe que o melhor modo de agradar ao seu criador era beijá-lo na testa, e beijou-me na testa. Quando enxotada por mim, foi pousar na vidraça, viu dali o retrato de meu pai, e não é impossível que descobrisse meia verdade, a saber, que estava ali o pai do inventor das borboletas, e voou a pedir-lhe misericórdia.

Pois um golpe de toalha rematou a aventura. Não lhe valeu a imensidade azul, nem a alegria das flores, nem a pompa das folhas verdes, contra uma toalha de rosto, dous palmos de linho cru. Vejam como é bom ser superior às borboletas! Porque, é justo dizê-lo, se ela fosse azul, ou cor de laranja, não teria mais segura a vida; não era impossível que eu a atravessasse com um alfinete, para recreio dos olhos. Não era. Esta última ideia restituiu-me a consolação; uni o dedo grande ao polegar, despedi um piparote e o cadáver caiu no jardim. Era tempo; aí vinham já as próvidas formigas... Não, volto à primeira ideia; creio que para ela era melhor ter nascido azul.


Machado de Assis | A borboleta preta | Memórias Póstumas de Brás Cubas | In: Obra Completa | Rio de Janeiro | Editora Nova Aguilar | 1994 | Capítulo XXXI | p.42-43

[ art | Flora Borsi ]