terça-feira, setembro 21, 2021

O beijo

 O beijo fulmina-nos como o relâmpago, o amor passa como um temporal, depois a vida, novamente, acalma-se como o céu, e tudo volta a ser como dantes. Quem se lembra de uma nuvem?

Guy de Maupassant


sábado, setembro 11, 2021

Filhos da época


Wisława Szymborska, poetisa polonesa, ganhadora do Nobel de Literatura de 1996.
Wisława Szymborska, poetisa polonesa,
ganhadora do Nobel de Literatura de 1996.




Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discuta por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.

............................

Filhos da época | In: Wislawa Szymborska | Poemas | Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien | São Paulo | Companhia das Letras | 2011.

terça-feira, setembro 07, 2021

7 de setembro

Calma lá!
take it easy...
aqui não!

Still Standing
by Tommy Ingberg




Os lambe-botas da pequena londrys estão agitados hoje. Quando eu era xofenzinha e alguém sem noção lascava o dedo na buzina, a gente berrava: cheira o dedo!!! 🤔🤔🤔... bom, deve ser porque ao menos enquanto a figura cheira o dedo ela o tira da buzina, sei lá: cheirem os seus malditos dedos !!! 

domingo, agosto 15, 2021

Amor de filósofo, filósofo existencialista

 "Na cidade de H... viveu há alguns anos um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio. Aqueles que o conheciam um pouco melhor procuravam explicar pela melancolia ou pela paixão sua natureza fechada, que fugia de todo contato permanente com os homens. Os partidários desta última hipótese, de certa maneira, não estavam errados; enganavam-se, porém, ao pensar que era uma jovem o objeto de seus sonhos. Tais sentimentos eram completamente estranhos ao seu coração, e, assim como sua aparência exterior era delicada, etérea, quase transparente, sua alma, no mesmo grau, era por demais determinada pelo intelecto para se deixar cativar pela beleza de uma mulher. Estava apaixonado, ardorosamente apaixonado ─ pelo pensamento, ou, antes, pelo pensar."

"Nenhum jovem apaixonado, diante da passagem incompreensível, na qual o amor desperta no seu peito, diante do relâmpago que acende na amada um amor recíproco, poderia experimentar uma emoção mais profunda do que ele diante da passagem compreensível que um pensamento se encadeia em outro, uma passagem que representava para ele o instante feliz da realização do que pressentira e esperara no silêncio de sua alma. Então sua fronte se inclinava pensativamente, como uma espiga madura, não porque escutasse a voz da amada, mas porque prestava atenção ao murmúrio secreto dos pensamentos; seu olhar tornava-se sonhador, não porque adivinhasse a imagem da amada, mas porque via o movimento do pensamento aparecer diante de si. Seu prazer consistia em começar por um pensamento particular, a partir dele seguir o caminho da consequência, escalando degrau por degrau até um pensamento mais alto; pois a consequência era a seus olhos uma scala paradisi [escala do paraíso], e sua beatitude lhe parecia maior até que a dos anjos. Com efeito, tendo alcançado este pensamento mais alto, ele experimentava uma alegria indescritível, uma voluptuosidade apaixonada em mergulhar sob as mesmas consequências no raciocínio inverso até chegar ao ponto do qual partira. Entretanto..." [...] 

ah, entretanto... esse é só o começo, você vai ter que ler pra saber o que vem pela frente dessa magnífica e curiosa obra: uma verdadeira aula de filosofia, de fato, sui generis — escrita numa espécie de romance autobiográfico — repleta de poesia e sabedoria.

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Søren Aabye Kierkegaard (Copenhague 1813-1855).

[É preciso duvidar de tudo | Tradução de Sílvia S. Sampaio e Álvaro L. M. Valls | Prefácio e notas de Jacques Lafarge | São Paulo | Martins Fontes | 2003 | pp. 5-7].


domingo, julho 25, 2021

Le son et le sens


Nada foi perdido
nada jamais tido
entre a pedra e a perda
entre o vidro e o vivido
entre a onda e a sombra
entre o ritmo e o rito
entre o sonho e o sol
não ficou vestígio.

Só o som ficou
entre a letra e o espírito
no instante dito
no ar sumido
e este estar estrito
e este silêncio escrito — 

tudo foi sentido.

[Rodrigo Garcia Lopes | O Enigma das Ondas | Iluminuras | 2000]


photo: Alper Durukan

segunda-feira, julho 19, 2021

Ciclo de Palestras 'Hume Filósofo Ensaísta'


O Ciclo de Palestras “Hume Filósofo Ensaísta” é um evento de extensão que se apresenta como parte das atividades de um Projeto de Pesquisa em desenvolvimento na UENP, intitulado “Hume Filósofo Ensaísta”, bem como parte das atividades do Grupo de Estudos de mesmo título, formado em março de 2020, a partir deste projeto. O evento contará com a presença de nove professores pesquisadores de outras instituições que, por sua vez, proferirão suas palestras em torno de alguns temas tratados por David Hume [1711-1776] em seus Ensaios Morais, Políticos e Literários [1741] — obra central de análise da pesquisa acima mencionada. 


 SOBRE HUME E SEUS ENSAIOS

David Hume [1711-1776] é considerado um dos espíritos mais luminosos do século XVIII e ocupa lugar de destaque entre os autores de língua inglesa, não somente como filósofo, mas também como ensaísta e historiador. Suas obras exploram uma ampla variedade de temas, que vão desde a epistemologia, a política, a moral e a estética, até a economia, a história e a metafísica. Dentre seus escritos filosóficos de maior envergadura encontra-se o Tratado da Natureza Humana [1739-1740], dividido em três partes: Do entendimento, Das paixões e Da moral — tal obra contém a exposição mais completa e detalhada de seu sistema filosófico, em aproximadamente 700 páginas. Mais tarde ele publicou, entre outros, dois textos mais concisos: a Investigação sobre o Entendimento Humano [1748] e a Investigação sobre os Princípios da Moral [1751], oferecendo, em ambas, exposições mais claras, breves e acessíveis sobre as principais teses do Tratado

Já os Ensaios Morais, Políticos e Literários [1741], obra que mais nos interessa aqui, apresentam, no estilo e na temática, o modelo criado por Montaigne em 1580 — e que inspirou textos de Francis Bacon, Alexander Pope, Samuel Johnson, Joseph Addison e muitos outros. Numa linguagem mais informal, ainda que culta e referida à République des Lettres, os Ensaios contêm textos curtos, fluentes e dirigidos ao leitor comum. Em Sobre a escrita de ensaios, Hume afirma ser este o gênero de escrita mais adequado à discussão da filosofia da vida comum, em oposição à filosofia abstrata. Ali ele diz considerar-se “uma espécie de representante ou embaixador dos domínios do saber nos domínios da conversação”, e que é seu dever promover “um diálogo fecundo entre esses dois Estados, que dependem inteiramente um do outro” (Essays, p. 535). 

Vale destacar a fusão entre estilo fluente e profundidade filosófica operada por Hume nesses Ensaios, assim como o intercâmbio entre os “homens de letras” e os “homens do mundo”. De acordo com ele, seria um erro confinar a filosofia aos tratados e gabinetes das universidades, separando-a do mundo e das boas companhias. Tal aproximação entre filosofia e vida comum constitui-se, pois, numa das principais contribuições dos 49 ensaios reunidos nas também aproximadamente 700 páginas desta imponente obra. Dessa perspectiva, um ciclo de palestras em torno dos Ensaios se apresenta, aqui, como uma excelente ferramenta de articulação entre pesquisa, ensino e extensão, possibilitando a geração de produção científica de qualidade e o aprimoramento da formação dos acadêmicos inseridos na complexidade e diversidade do mundo atual.

PROGRAMAÇÃO

1. Bel Limongi (UFPR) – 28/07/2021: Tema: O caráter político dos Ensaios Econômicos de Hume.

2. Franco Nero Soares (IFRS) – 11/08/2021: Tema: A felicidade é para todos? Hume e os limites da razão na regulação do temperamento.

3. Andreh Sabino (IFRN) - 25/08/2021: Tema: Cultura, polimento e comércio.

4. Stephanie Zahreddine (UFMG) – 08/09/2021: Tema: As "ocorrências irregulares e extraordinárias" do mundo político segundo David Hume.

5. Marcos Balieiro (UFS) – 15/09/2021: Tema: Considerações sobre a polidez em Hume.

6. Luiz Eva (UFABC) – 13/10/2021: Tema: (a definir)

7. Flávio Williges (UFSM) – 27/10/2021: Tema: O lugar das emoções na filosofia moral de Iris Murdoch.

8. Jaimir Conte (UFSC) – 10/11/2021: Tema: Sobre os ensaios póstumos de Hume: Da imortalidade da alma e Do Suicídio.

9. Fernão de Oliveira Salles (UFSCAR) - 24/11/2021: Tema: Comércio e civilização na filosofia de David Hume.


Inscrições e demais informações:

https://ciclodepalestrashu.wixsite.com/website


ORGANIZAÇÃO

COORDENAÇÃO
Marília Côrtes de Ferraz

COMISSÃO ORGANIZADORA
Marília Côrtes de Ferraz
Giovana Andrea da Silva
Douglas Trindade de Paula

ARTE E DESIGN
Douglas Trindade de Paula


UENP - Universidade Estadual do Norte do Paraná
CCHE - Centro de Ciências Humanas e da Educação
Colegiado do Curso de Filosofia
GEPFES - Grupo de Estudos e Pesquisa em Filosofia, Educação e Sociedade
Campus Jacarezinho


sábado, junho 05, 2021

Se ...


fosse eu poeta
poetisa escritora
ou algo assim
ai de mim!

sacava aqui
agora e enfim
uma poesia
a toda prosa.

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[marília côrtes / 2021]


Asiza Fine Art

domingo, maio 23, 2021

Tudo traz, tudo leva, tudo lava


Ela me perguntou o quanto eu a amava.

Reuni em vidro todos os humores vertidos:

sangue, sêmen, lágrimas.

Amo você tantos rios.

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Carla Madeira | Tudo é rio | Record | 2021




Desnudo tendido
José María Rodríguez-Acosta | 1878-1941
Granada | Museo de Bellas Artes


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Quem não leu esse romance fascinante de Carla Madeira não tem ideia do que está perdendo. Tudo é rio é tão bem escrito que dá até raiva na gente. Raiva e inveja. A gente pensa: como é que pode escrever tão bem assim, e já em seu romance de estreia? A história é tão formidável (não vou dar spoiler rs) e tão bem escrita que o livro não precisa sobreviver à crítica 200 anos pra gente saber que é bom — (sim, há quem defenda essa "tese da sobrevivência de uma obra", mas não é o meu caso). E tem mais: é um romance que não deve ser lido, devorado, assim, como um outro qualquer. Ele tem de ser degustaaado.

O título que dei ao post é uma frase do prefácio de Cris Guerra. E o poema-epígrafe, pelo que entendi, é da própria Carla Madeira. Bom, não é preciso dizer (dizendo) que gamei nesse livro. Ganhei de presente da minha amiga Marly. Amiga que sabe das coisas.

sexta-feira, maio 14, 2021

O peso do mundo

 CANÇÃO

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano –

sai para fora do coração
ardendo de pureza –
pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor –
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
– não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:

o peso é demasiado

– deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho –

sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.

...............

Allen Ginsberg
In: “Uivo e outros poemas” (1956).

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Imagem: Brook Shaden Photography

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Não está nada fácil comemorar mais um ano de vida em meio à trágica notícia, ontem, de 430.596 vidas perdidas em praticamente apenas um ano, e só nesse nosso país lascado chamado Brasil. Vivemos, atualmente, numa espécie de show de horrores. É meu segundo aniversário em plena pandemia. E esse é meu jeito weird de, sem palavras, bendizê-lo 🖤.

terça-feira, abril 20, 2021

Canto





No túmulo,
quando eu morrer
esparrame pétalas
de rosas amarelas
perfumadas de teu suor.

Despregue uma lágrima cinza
de teus olhos oblíquos
e deixe-a quente na lápide
feito pedra judaica,
sem verbos.

Recite silêncio
verso de ninguém
a espremer o caldo
de rimas
jogadas a esmo.

Em ensaio de vida,
descubra o piscar
de estrela entre nuvens, e
no baile cósmico,
colha palavras molhadas.

Sinta meu cheiro
entre páginas
apagadas e
tente resto de sorriso,
quase nada.

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(Nilson Monteiro | abril | 2021)

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Nosso amigo jornalista, poeta e escritor da geração pé-vermelho, membro da Academia Paranaense de Letras, com esse canto-poema tingiu de beleza a minha manhã. Estava lá no facebook. Encantei-me. Pedi permissão para ecoá-lo. Perguntei se estava publicado em algum de seus livros. Ele disse:  não, acabo de publicá-lo. 

sexta-feira, abril 09, 2021

La musique

LXIX


A música me arrasta às vezes como o mar!
No encalço de um astro,
Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar,
Iço a vela ao mastro;

O peito para frente e os pulmões enfunados
Tal qual uma tela,
Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados
Que a noite me vela;

Sinto que em mim ecoam todas as paixões
De um navio aflito;
O vento, a tempestade e suas convulsões

No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!

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BAUDELAIRE, Charles | As Flores do Mal |Tradução de Ivan Junqueira | Rio de Janeiro | Nova Fronteira, 1985 | p. 293. 

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Franz Sedlacek | Abendlied | 1938 | #surrealism




sábado, março 27, 2021

Just a dream

Noite passada
tive um sonho
um sonho 
de goiabada.

Acordei quente
doce
der 
    re 
        ti
           da
e melada.




Escrevi esse poeminha bobinho num papelzinho. Tá colado num certo caderninho de anotações. Se não o publiquei antes, foi apenas por pudor  desses igualmente bobinhos. Hoje mandei-os à M... !


quarta-feira, março 10, 2021

Pandora


Pânico, pandemia, pandemônio: 
é o inimigo invisível, é o novo demônio,
é a face coberta por um pedaço de pano,
é o humano reaprendendo a ser humano.
É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,
é o translúcido azul do céu de Pequim.
É o papa rezando na São Pedro deserta,
são as águas transparentes dos canais de Veneza.
Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,
presos no labirinto com Minotauro e Teseu.

Legiões de desempregados em Teerã, São Paulo, Paris.
As calçadas de Guayaquil estão cheias de cadáveres.
Estão pregando tapumes nas fachadas.
Todas as fronteiras foram fechadas.
Os médicos e coveiros estão exaustos.
Os jornais nem noticiam mais o holocausto.
São pilhas de corpos-números cobertos por um véu,
São poemas que jamais sairão do papel.

Os confinados batem panelas, invocam os magos,
pumas invadem as avenidas de Santiago.
É uma vida pulsando entre a pedra e a espada,
é o prenúncio de uma economia global robotizada.
São velórios e shoppings vazios, praias desertas,
é o começo de um renascimento, é o fim de uma era.
É o silêncio ensurdecedor e o medo de morrer,
é o tempo pra ler toda a obra de Shakespeare,
é a chance de ser o maior experimento
de controle social de todos os tempos.
É um exército branco higienizando as cidades,
é um planeta em quarentena por toda a eternidade.

É um homem que saiu do isolamento e nunca mais foi visto,
são fanáticos gritando O Vírus é o Anticristo.
São anjos em polvorosa sobre os céus de Berlim,
são amantes aprendendo a amar enfim.
Já ninguém ouve o que os agonizantes urram,
os metrôs voltaram hoje a circular em Wuhan.
É solidão compulsória, é um estado de sítio,
são coiotes vagando livres por San Francisco,
É uma flor desabrochando durante a tempestade
(pois quando tudo acabar talvez seja tarde).
É a solidão futurista da Times Square,
é o suicida alcançando um revólver.
São navios de cruzeiro proibidos de atracar,
são hospitais abarrotados em Milão, Rio, Dakar.
Pássaros continuam voando, geleiras caindo,
há um pôr do sol distante, solitário e lindo.
É viver entre as paredes dos parênteses
em reticências que se alongam como meses.
É o mundo inteiro em stand-by,
é o corpo lutando por ar.

***
Rodrigo Garcia Lopes
O Enigma das Ondas [Iluminuras | 2020]

***
[Imagem | Pandora | 1885 | Walter Crane | 1845-1915]



quinta-feira, fevereiro 25, 2021

Namorados do Mirante


Eles eram mais antigos que o silêncio
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
A Remontavam às origens — a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espécie — tudo mais tinha morrido.
Caíam lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas na magma incandescente
Que milénios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito.

Eles eram mais antigos que o silêncio...


[ Vinicius de Moraes | 1913-1980 | Nova antologia poética | Cia de Bolso]


by Shira Barzilay

sexta-feira, fevereiro 19, 2021

Necrológio dos desiludidos do amor


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.

Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho

enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.



Carlos Drummond de Andrade
Antologia Poética
Companhia das Letras

quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Anuviada

Há um mês não publico nada aqui. Entro, começo a escrever, a preparar a publicação e deixo pra lá. Isso tem sido recorrente. Nesse movimento de acessar o blog e começar a escrever, acabo de constatar que tenho arquivados, só neste espaço, 122 rascunhos de postagens diversas (afora os rascunhos esboçados em meu computador, ou mesmo em minhas cadernetas de anotações). Tudo espalhado, entrecortado, fragmentado e fora de ordem. Poemas, minicontos, crônicas, comentários idiotas, citações literárias, filosóficas, comentadas ou não, ideias soltas, saltitantes. Tenho refletido muito sobre o que me leva a esse movimento de iniciar e abandonar o que escrevo: uma sensação de que precis... 



photographic art by Teresa Freitas

sexta-feira, janeiro 01, 2021

Ano Novo


Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).

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Ferreira Gullar | 1930-2016 | Toda Poesia | Rio de Janeiro | José Olímpio | 1997



terça-feira, novembro 03, 2020

Debaixo das Unhas

 


PUTAS

Elas passam pelas ruas de todas as horas arrastando pedaços de seus corpos anteriores,
pedaços de suas trompas,
suas pontas de astros. 
Passam altivas carregando o peso de antigos seios de tantas mamadas, 
braços marcados por unhas e barbas, 
genitálias explodidas por muitos nãos que foram ditos entre berros, 
cabelos enozados por coágulos e vômitos cuspindo dentes.

Caminham juntas, passo a passo, cantando dolorosamente sua elegia da carne viva, enquanto as ruas as observam 
quase vivas,
garantidas por um mandado de segurança: cem metros de distância 
e maquiagens de alta definição – uma renovação pela graça de grandes laboratórios dirigidos por homens cientistas.

As boas pessoas que assistem ao cortejo rezam de cabeça baixa pedindo
a benção do esquecimento, mas as mulheres seguem 
ensanguentadas 
em direção ao espaço reservado aos que pagam penitências e culpas: putas!

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Samantha Abreu
poema do livro Debaixo das Unhas (Olaria Cartonera, 2020)

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Conheci a Samantha Abreu há mais ou menos um ano. Já conhecia seu nome como escritora londrinense e havia lido um ou outro de seus poemas. Frequentávamos os mesmos espaços, mas nunca havíamos nos esbarrado pessoalmente. Por ocasião da organização de um evento de filosofia na UENP, minha amiga Bah (Bárbara Marques) indicou a Samantha pra falar sobre a escrita de mulheres - tema de seus estudos. Era a primeira vez que em 20 anos de filosofia eu me dirigia, ao menos na academia, ao tema das Mulheres na Filosofia, dado o cânone filosófico ser, até hoje, predominantemente masculino, sobretudo branco, europeu etcétera e tal. 

Se considerarmos os 2.500 anos de história da filosofia, as mulheres começaram a figurar com uma certa sobressalência  no cenário filosófico (científico, político e literário também) há pouquíssimo tempo, ainda que a história estivesse repleta de mulheres escritoras, tradutoras, filósofas, cientistas, artistas, bruxas e o escambau. Há quem não queira que elas figurem em todos os espaços e áreas, principalmente, com absoluta independência. Não é o caso da Samantha Abreu. Nem o meu. 

Fiz, então, o contato com ela. Expus a proposta do evento. E ela, embora trabalhasse o tema de uma perspectiva mais literária, topou dar um minicurso sobre as mulheres na filosofia. Estudou, pesquisou, refletiu, organizou, ligou os pontos entre a escrita filosófica e a escrita literária (uma das misturas mais finas que existe), foi lá e, simplesmente, arrasou. 

Samantha Abreu é daquelas powerful girls que despertam paixões à primeira vista e a todas as outras vistas. Sua escrita também. Não sou crítica de arte e não entendo nada de poesia. Minha apreciação estética, literária e poética é totalmente passional e primária. Passa na ponta dos pés pelo entendimento. Não me cabe, portanto, teorizar sobre seus  belos, sensíveis e fodásticos poemas. Quero apenas dizer que recebi há mais ou menos um mês o livro Debaixo das Unhas e, claro, simplesmente amei 💘.

quinta-feira, outubro 08, 2020

hiatos


Somos feitos das mesmas bibliotecas
dos mesmos jardins suspensos
dos mesmos tapetes urdidos em tramas de lã
Somos desabrigados
e nossos tetos respingam um vapor goticulado

Somos como os hiatos
de uma palavra não dita
perdida nos vãos das pedras moventes
Por vezes, nos olhamos
do alto daquela montanha sem chão
e te mato sem querer
te afogo lá onde o mergulhador não chega

Mas te lembro que os hiatos são valentes
aceitam o não-lugar dos exílios
da fenda
da origem do tudo e do nada
Não há litígio para os feitos-seres-hiatos
eles somente se habitam
entrelaçam suas cavernas
afaimadas
Negligenciam o canto absoluto
ao perfurarem a superfície das coisas
e se deixarem pertencer a dois mundos

Revelo
[nesse amor hiato]
todas as fuligens levadas de meu corpo
quando escolhi fazer a travessia das pedras
e te encontrar deitado sobre os trilhos
para sentir o ar frio vindo das serras

Somos transeuntes de lugares doloridos
vemos juntos a agitação do mar
ao esticarmos nossos corpos na cama febril
E na dobra de nossos joelhos
ralados da curva de tantas esquinas
lembramos dos nós que não cabem em hiatos.



(poema de Bárbara Marques)





quinta-feira, setembro 10, 2020

Sonambulando

De repente, ela se viu diante da porta de uma casa noturna. Parecia uma porta de saída de emergência. Porta corta-fogo, dessas que a gente vê em filmes americanos. Seus passos eram firmes, sua velocidade estonteante. Estava decidida a sabe-se lá o quê! No fundo, não sabia de nada. Era levada por um impulso ─ um impulso irresistível. Rolava um zum zum zum na entrada do night club, mas, diante dela, as portas se abriram de imediato. E logo atrás se fecharam. Num piscar de olhos, a cena tornou-se completamente outra. O que ela via não tinha nada a ver com qualquer tipo de casa noturna. Era um quarto enorme, muito escuro, frio, úmido, silencioso, repleto de camas enfileiradas - uma espécie de abrigo, no qual pessoas dormiam indistintas. No momento que entrou na cena, não mais pisou no chão. Seus passos tornaram-se flutuantes, largos, quase etéreos, apesar da atmosfera sombria. A mudança fora brusca. Impactante. A expectativa era uma, a realidade era outra. Não se deteve. Seguiu flutuando num ballet em linha reta. De repente, a cena mudou novamente. Havia entrado, sem saber como, num romance secreto. Romance de olhares que sussurram, e que na vida ordinária os mortais costumam chamar de amor ─ amor platônico.


(marília côrtes | setembro | 2020)

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[Painting by Giuseppe Cali | Woman in the moon | 1912]

sexta-feira, setembro 04, 2020

domingo, agosto 09, 2020

Panta rei

Sonhei que o mar levava meu laptop. E, também, minha carteira de documentos. A angústia era a de que o mar levava com ele a minha vida, a minha história, o meu eu - o meu querido e amado eu. Mas, curiosamente, eu ainda permanecia ali, na beira do mar, com os pés na água, a contemplar aflita, e sem poder fazer nada, as ondas agitadas que tragavam a minha vida. 

Não havia sol. O céu estava nublado. E o vento um tanto frio. Sentia também um aperto a mais em meu coração. O de que minhas filhas estavam longe, cada qual numa cidade diferente, tal como de fato elas estavam. Fiz, então, uma espécie de experimento mental. Fechei os olhos, abri os braços e inspirei, profundamente, até estufar o peito de tanto ar. Transportei-me inteira, em corpo e alma, para o centro do meu coração. Foi como se só ele existisse. Mas, de repente, abriu-se uma fenda em meu peito e três veias pulsantes começaram a crescer, feito caules de plantas em busca de luz. Foi um momento de alento e esperança. Um dos caules enraizados em meu peito estendia-se sobre o mar aberto até alcançar o coração da Marina, lá em São Paulo. Um outro buscava o coração da Bibi em Londrina, e outro, bem mais comprido, em razão da longa distância, ia ao encontro do coração da Paulinha, lá em São Francisco, na Califórnia. Meu coração atravessava os mares. As veias entrelaçavam-se aos corações delas. E assim eu as trazia para perto. 

Nem o mar nem o céu eram propriamente sombrios, apenas melancólicos, de uma melancolia poética. Sombria era a angústia pela perda do meu eu que navegava à deriva sobre as ondas revoltas. Sombria era a angústia de ver minha vida arrastada e engolida pelo mar. 

De súbito, meu horizonte empalideceu. Acordei e fiquei ali mesmo, na cama, a rememorar as imagens e sensações vividas naquele sonho. Passados alguns minutos, levantei e fui até minha mesa de trabalho. Abri um de meus moleskines para escrever essas breves notas, antes que tudo se esvaísse de minha memória. Ao folheá-lo, encontrei o seguinte verso: 

"Há mar e mar / há ir e voltar", de Alexandre O'Neill. 

Panta rei... 

(marília côrtes | floripa | março | 2017)

(desconheço o autor dessa imagem)

sexta-feira, julho 31, 2020

Notas do day by day


Acordei cedo e fiz o que sempre faço primeiro: um café preto, bem forte e bem quente! Meu ritmo é lento. Penso em meus compromissos: terminar de revisar os artigos para a "Coleção Rumos da Epistemologia", ler a nova introdução do texto de qualificação de mestrado de minha filha, dar um up no apto...

De repente, viajei no tempo, ao observar o aspirador de pó emprestado (que nem sei usar ainda) e fiquei entre fumar e não fumar. Sei que quando fumo meu dia será diferente: menos produtivo, talvez, mas mais poético. A fumaça me leva à contemplação. Sempre olho com vagar em torno de mim mesma. E vejo uma certa mesmice no ar. A poeira que se acumula nos livros, nos artigos, documentos, pequenos objetos e quinquilharias. A velhice do apartamento me incomoda mais do que o meu próprio caminhar para ela. Procuro poesia. Mas não só nos livros. Procuro poesia na vida, nas pessoas, nos ambientes, nas engrenagens do day by day. Poesia como poíesis, no sentido bem grego da palavra ποίησις.

Nessa procura, lá vem ele caminhando pelos recônditos de minha memória. Que coisa! Esse vai e vem, esses laços que se rasgam, se despedaçam, se desfiam, mas não se desfazem, apenas tecem outros fios, outros planos e caminhos. Tem dor, tem amor, tem riso, prazer, atração e repulsão.

Como bem expressado naquela carta em que dizia um NÃO para mim, em alto e bom som: algo se perdeu... e ele dizia também não saber o que era. Mas eu sabia. Sim, eu sabia. Algo se perdeu. E eu poderia apresentar, se não tudo o que se perdeu, e o que permaneceu, muito do que se perdeu entre nós.

Abri aquela agenda (2011) que ganhei da Nick. Aquela marronzinha, com bolinhas azuis e capa de tecido. Há varias anotações ali: frases, poemas, citações filosóficas, referências bibliográficas e estudos diversos. Viajei novamente ao folheá-la. Reli vários escritos. Peguei outra entre tantas que habitam meu universo: uma espécie de Memorandum (2000). Início de minha graduação em filosofia. Na verdade, do meu segundo ano. Época em que comecei a estudar Nietzsche. Ali contém notas sobre a filosofia deste autor, meios e modos de expressão da escrita acadêmica, uma lista de conectivos lógicos, significados de palavras desconhecidas, mal assimiladas e/ou definidas, termos em francês e em inglês, tipo notas de vocabulário, and so on...

Constatei como era estudiosa, interessada e apaixonada pelo que fazia. Era e continuo a ser. O passado aqui é mero tempo verbal ー classe gramatical.

Volto à agenda que a Nick me deu e encontro uma frase solta, forte, que não sei de onde tirei. Ei-la:

"vou ao enterro de minha solidão" ー impacto que me levou a engolir seco e, inevitavelmente, ao ponto final.


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[marília côrtes | março/2016]


sábado, julho 18, 2020

A morte do amor


"Se eu pudesse voltar atrás
Não te amava.
É tão mais fácil
Manter o coração quieto no peito
Como se todos os dias
E todas as horas fossem iguais.

A inquietação de me faltares
Deixa os meus olhos tristes
Esperando que aceites
A mão que te estendo.

Mas tu não estás.
Eu parti com a última onda
Sem saber se voltarei um dia,
E o caminho que os nossos pés
Juntos percorreram
Choram a saudade
De ter morrido o amor
Quando dissemos adeus."

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Ana Brilha | A Morte do Amor | in A Apologia do Silêncio | Edição de Autor | Cascais | Portugal | 2012


photo by Virginia Rota

quinta-feira, julho 02, 2020

Epílogo


"Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada aguenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cartas! Não se sabe... Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca... Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade."


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[Mario Quintana | in: Sapato Florido | 1948 | p.60]



sexta-feira, junho 26, 2020

Untitled


enquanto seu corpo movente
move-se lentamente
sua mente pensante
pensa sistematicamente

o país está um caos
no mundo a barbárie reina

entre vales e abismos
estradas vazias e horizontes perdidos 
ele vagueia enlutado
como quem se perdeu nas coisas
que se perderam no tempo
tal qual poeira ao vento.

restam-lhe apenas
rastros, sopros
e nuvens de existência.

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[Marília Côrtes | 2018]


René Magritte
The Thought Which Sees


domingo, junho 14, 2020

Mortalha


Onde está o vento? Este peso nas costas, no pensamento – vem do teto ou das nuvens assim paradas, invisíveis me vendo.: sinto que estão ali paradas, AQUI, bem sobre o meu corpo também imóvel – eu e o meu corpo paralisado e talvez já morto: mas ainda eu.

Se ao menos houvesse o vento – nem que fosse o ruído do vento, o rumor do vento como há o rumor do mar ou da chuva, ou qualquer rumor que não seja este silêncio, o deste silêncio! – Mas apenas ouço, vejo, o peso destas nuvens e do que está ainda mais em cima, de todo esse ar que me falta e que me traz esta asfixia, esta paralisia – como se me houvessem enterrado e eu estivesse enterrado: dentro desta mortalha.

Mas ainda não estou morto, sei que não estou, SEI: isto é o importante. E este silêncio, e agora este frio – antes não havia este frio – este silêncio neste frio, e este peso sobretudo este peso sobre a minha cabeça, tudo isso então é que estou sendo a vítima de algum mistério, não de um engano ou de uma alucinação mas de algum mistério, nem mesmo de um sonho ou de um pesadelo, pois me conheço e sei que estou sonhando: SEI. 

"Campos de Carvalho | 1916-1998 | In: A Chuva Imóvel | Belo Horizonte | Autêntica | 2018


Igor Mitoraj [1944-2014]

terça-feira, junho 02, 2020

Youth


The Mirror | 1902 | by Edward Steichen



(...) Ah, juventude! Juventude! Você parece não ligar para nada, parece possuir todos os tesouros do universo, até a tristeza lhe traz contentamento, até o desgosto lhe cai bem, você é confiante e ousada, você diz: "Só eu vivo", mas cuidado, para você os dias correm e somem, sem conta e sem deixar vestígio, e tudo em você desaparece, como a cera sob o sol, como a neve. E talvez todo o segredo de seu encanto consista não na possibilidade de fazer tudo, mas na possibilidade de pensar que você fará tudo [...] "Ah, quanta coisa eu faria se não tivesse desperdiçado meu tempo!"

[...] e agora, quando em minha vida já começam a baixar as sombras do entardecer, o que me restou de mais fresco, de mais caro, do que as lembranças daquela tempestade primaveril, matutina, que passou tão depressa?

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[Ivan Turgueniev | Primeiro Amor | Cap. XXII]

domingo, maio 24, 2020

Lovers



Foi um processo longo e difícil, como sempre o são as aproximações entre duas pessoas habituadas a estarem sozinhas. Primeiro parece fácil, é o coração que arrasta a cabeça, a vontade de ser feliz que cala as dúvidas e os medos. Mas depois é a cabeça que trava o coração, as pequenas coisas que parecem derrotar as grandes, um sufoco inexplicável que parece instalar-se onde dantes estava a intimidade. É preciso saber passar tudo isso e conseguir chegar mais além, onde a cumplicidade – de tudo, o mais difícil de atingir – os torna verdadeiramente amantes.

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[Miguel Sousa Tavares | In: Não te deixarei morrer, David Crockett | Oficina do Livro | Lisboa | 2001 | p.4]


Galatea In Acis Arms | Medici Fountain In The Luxembourg Gardens | Paris
Sculptor: Auguste Ottin (1811-1890).


domingo, maio 17, 2020

Baudelaire-ando



XCIII

A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!




photo by Brett Walker

XCIII

A une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais
peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!


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BAUDELAIRE, Charles | As flores do mal | Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira | Edição biligue | Rio de Janeiro | Nova Fronteira | 1985.