domingo, novembro 07, 2021
Oftalmo
sábado, outubro 30, 2021
Frutífera
'Da solidão do fruto'
De meu corpo ofereçoas minhas frutescências,
casca, polpa, semente.
E vazada de mim mesma
com desmesurada gula
apalpo-me em oferta
a fruta que sou.
Mastigo-me
e encontro o coração
de meu próprio fruto,
caroço aliciado,
a entupir os vazios
de meus entrededos.
'Da partilha do fruto'
as minhas frutescências,
e ao leve desejo-roçar
de quem me acolhe,
entrego-me aos suados,
suaves e úmidos gestos
de indistintas mãos e
de indistintos punhos,
pois na maturação da fruta,
em sua casca quase-quase
rompida,
boca proibida não há.
...................................
quinta-feira, outubro 14, 2021
Moi-même
Eu não queria querer
sem ritmo, sem nada.
terça-feira, setembro 21, 2021
O beijo
O beijo fulmina-nos como o relâmpago, o amor passa como um temporal, depois a vida, novamente, acalma-se como o céu, e tudo volta a ser como dantes. Quem se lembra de uma nuvem?
Guy de Maupassant
sábado, setembro 11, 2021
Filhos da época
Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.
Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.
O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.
Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.
Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.
Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discuta por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.
Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.
terça-feira, setembro 07, 2021
7 de setembro
aqui não!
domingo, agosto 15, 2021
Amor de filósofo, filósofo existencialista
"Na cidade de H... viveu há alguns anos um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio. Aqueles que o conheciam um pouco melhor procuravam explicar pela melancolia ou pela paixão sua natureza fechada, que fugia de todo contato permanente com os homens. Os partidários desta última hipótese, de certa maneira, não estavam errados; enganavam-se, porém, ao pensar que era uma jovem o objeto de seus sonhos. Tais sentimentos eram completamente estranhos ao seu coração, e, assim como sua aparência exterior era delicada, etérea, quase transparente, sua alma, no mesmo grau, era por demais determinada pelo intelecto para se deixar cativar pela beleza de uma mulher. Estava apaixonado, ardorosamente apaixonado ─ pelo pensamento, ou, antes, pelo pensar."
"Nenhum jovem apaixonado, diante da passagem incompreensível, na qual o amor desperta no seu peito, diante do relâmpago que acende na amada um amor recíproco, poderia experimentar uma emoção mais profunda do que ele diante da passagem compreensível que um pensamento se encadeia em outro, uma passagem que representava para ele o instante feliz da realização do que pressentira e esperara no silêncio de sua alma. Então sua fronte se inclinava pensativamente, como uma espiga madura, não porque escutasse a voz da amada, mas porque prestava atenção ao murmúrio secreto dos pensamentos; seu olhar tornava-se sonhador, não porque adivinhasse a imagem da amada, mas porque via o movimento do pensamento aparecer diante de si. Seu prazer consistia em começar por um pensamento particular, a partir dele seguir o caminho da consequência, escalando degrau por degrau até um pensamento mais alto; pois a consequência era a seus olhos uma scala paradisi [escala do paraíso], e sua beatitude lhe parecia maior até que a dos anjos. Com efeito, tendo alcançado este pensamento mais alto, ele experimentava uma alegria indescritível, uma voluptuosidade apaixonada em mergulhar sob as mesmas consequências no raciocínio inverso até chegar ao ponto do qual partira. Entretanto..." [...]
ah, entretanto... esse é só o começo, você vai ter que ler pra saber o que vem pela frente dessa magnífica e curiosa obra: uma verdadeira aula de filosofia, de fato, sui generis — escrita numa espécie de romance autobiográfico — repleta de poesia e sabedoria.
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Søren Aabye Kierkegaard (Copenhague 1813-1855).
[É preciso duvidar de tudo | Tradução de Sílvia S. Sampaio e Álvaro L. M. Valls | Prefácio e notas de Jacques Lafarge | São Paulo | Martins Fontes | 2003 | pp. 5-7].
domingo, julho 25, 2021
Le son et le sens
entre a pedra e a perda
entre o vidro e o vivido
entre a onda e a sombra
entre o ritmo e o rito
entre o sonho e o sol
não ficou vestígio.
Só o som ficou
entre a letra e o espírito
no instante dito
no ar sumido
e este estar estrito
e este silêncio escrito —
tudo foi sentido.
[Rodrigo Garcia Lopes | O Enigma das Ondas | Iluminuras | 2000]
photo: Alper Durukan
segunda-feira, julho 19, 2021
Ciclo de Palestras 'Hume Filósofo Ensaísta'
David Hume [1711-1776] é considerado um dos espíritos mais luminosos do século XVIII e ocupa lugar de destaque entre os autores de língua inglesa, não somente como filósofo, mas também como ensaísta e historiador. Suas obras exploram uma ampla variedade de temas, que vão desde a epistemologia, a política, a moral e a estética, até a economia, a história e a metafísica. Dentre seus escritos filosóficos de maior envergadura encontra-se o Tratado da Natureza Humana [1739-1740], dividido em três partes: Do entendimento, Das paixões e Da moral — tal obra contém a exposição mais completa e detalhada de seu sistema filosófico, em aproximadamente 700 páginas. Mais tarde ele publicou, entre outros, dois textos mais concisos: a Investigação sobre o Entendimento Humano [1748] e a Investigação sobre os Princípios da Moral [1751], oferecendo, em ambas, exposições mais claras, breves e acessíveis sobre as principais teses do Tratado.
Já os Ensaios Morais, Políticos e Literários [1741], obra que mais nos interessa aqui, apresentam, no estilo e na temática, o modelo criado por Montaigne em 1580 — e que inspirou textos de Francis Bacon, Alexander Pope, Samuel Johnson, Joseph Addison e muitos outros. Numa linguagem mais informal, ainda que culta e referida à République des Lettres, os Ensaios contêm textos curtos, fluentes e dirigidos ao leitor comum. Em Sobre a escrita de ensaios, Hume afirma ser este o gênero de escrita mais adequado à discussão da filosofia da vida comum, em oposição à filosofia abstrata. Ali ele diz considerar-se “uma espécie de representante ou embaixador dos domínios do saber nos domínios da conversação”, e que é seu dever promover “um diálogo fecundo entre esses dois Estados, que dependem inteiramente um do outro” (Essays, p. 535).
Vale destacar a fusão entre estilo fluente e profundidade filosófica operada por Hume nesses Ensaios, assim como o intercâmbio entre os “homens de letras” e os “homens do mundo”. De acordo com ele, seria um erro confinar a filosofia aos tratados e gabinetes das universidades, separando-a do mundo e das boas companhias. Tal aproximação entre filosofia e vida comum constitui-se, pois, numa das principais contribuições dos 49 ensaios reunidos nas também aproximadamente 700 páginas desta imponente obra. Dessa perspectiva, um ciclo de palestras em torno dos Ensaios se apresenta, aqui, como uma excelente ferramenta de articulação entre pesquisa, ensino e extensão, possibilitando a geração de produção científica de qualidade e o aprimoramento da formação dos acadêmicos inseridos na complexidade e diversidade do mundo atual.
PROGRAMAÇÃO
1. Bel Limongi (UFPR) – 28/07/2021: Tema: O caráter político dos Ensaios Econômicos de Hume.
2. Franco Nero Soares (IFRS) – 11/08/2021: Tema: A felicidade é para todos? Hume e os limites da razão na regulação do temperamento.
3. Andreh Sabino (IFRN) - 25/08/2021: Tema: Cultura, polimento e comércio.
4. Stephanie Zahreddine (UFMG) – 08/09/2021: Tema: As "ocorrências irregulares e extraordinárias" do mundo político segundo David Hume.
5. Marcos Balieiro (UFS) – 15/09/2021: Tema: Considerações sobre a polidez em Hume.
6. Luiz Eva (UFABC) – 13/10/2021: Tema: (a definir)
7. Flávio Williges (UFSM) – 27/10/2021: Tema: O lugar das emoções na filosofia moral de Iris Murdoch.
8. Jaimir Conte (UFSC) – 10/11/2021: Tema: Sobre os ensaios póstumos de Hume: Da imortalidade da alma e Do Suicídio.
9. Fernão de Oliveira Salles (UFSCAR) - 24/11/2021: Tema: Comércio e civilização na filosofia de David Hume.
Inscrições e demais informações:
https://ciclodepalestrashu.wixsite.com/website
sábado, junho 05, 2021
Se ...
domingo, maio 23, 2021
Tudo traz, tudo leva, tudo lava
Ela me perguntou o quanto eu a amava.
Reuni em vidro todos os humores vertidos:
sangue, sêmen, lágrimas.
Amo você tantos rios.
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Carla Madeira | Tudo é rio | Record | 2021
sexta-feira, maio 14, 2021
O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação
o peso que carregamos
é o amor.
Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano –
ardendo de pureza –
pois o fardo da vida
é o amor,
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor –
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
– não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho –
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.
...............
terça-feira, abril 20, 2021
Canto
de rosas amarelas
perfumadas de teu suor.
Despregue uma lágrima cinza
de teus olhos oblíquos
e deixe-a quente na lápide
feito pedra judaica,
sem verbos.
Recite silêncio
verso de ninguém
a espremer o caldo
de rimas
jogadas a esmo.
Em ensaio de vida,
descubra o piscar
de estrela entre nuvens, e
no baile cósmico,
colha palavras molhadas.
Sinta meu cheiro
entre páginas
apagadas e
tente resto de sorriso,
quase nada.
..............
(Nilson Monteiro | abril | 2021)
sexta-feira, abril 09, 2021
La musique
LXIX
No encalço de um astro,
Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar,
Iço a vela ao mastro;
O peito para frente e os pulmões enfunados
Tal qual uma tela,
Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados
Que a noite me vela;
Sinto que em mim ecoam todas as paixões
De um navio aflito;
O vento, a tempestade e suas convulsões
No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!
...............................................
BAUDELAIRE, Charles | As Flores do Mal |Tradução de Ivan Junqueira | Rio de Janeiro | Nova Fronteira, 1985 | p. 293.
sábado, março 27, 2021
Just a dream
Acordei quente
doce
e melada.
quarta-feira, março 10, 2021
Pandora
é a face coberta por um pedaço de pano,
é o humano reaprendendo a ser humano.
É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,
é o translúcido azul do céu de Pequim.
É o papa rezando na São Pedro deserta,
são as águas transparentes dos canais de Veneza.
Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,
presos no labirinto com Minotauro e Teseu.
Legiões de desempregados em Teerã, São Paulo, Paris.
As calçadas de Guayaquil estão cheias de cadáveres.
Estão pregando tapumes nas fachadas.
Todas as fronteiras foram fechadas.
Os médicos e coveiros estão exaustos.
Os jornais nem noticiam mais o holocausto.
São pilhas de corpos-números cobertos por um véu,
São poemas que jamais sairão do papel.
Os confinados batem panelas, invocam os magos,
pumas invadem as avenidas de Santiago.
É uma vida pulsando entre a pedra e a espada,
é o prenúncio de uma economia global robotizada.
São velórios e shoppings vazios, praias desertas,
é o começo de um renascimento, é o fim de uma era.
É o silêncio ensurdecedor e o medo de morrer,
é o tempo pra ler toda a obra de Shakespeare,
é a chance de ser o maior experimento
de controle social de todos os tempos.
É um exército branco higienizando as cidades,
é um planeta em quarentena por toda a eternidade.
É um homem que saiu do isolamento e nunca mais foi visto,
são fanáticos gritando O Vírus é o Anticristo.
São anjos em polvorosa sobre os céus de Berlim,
são amantes aprendendo a amar enfim.
Já ninguém ouve o que os agonizantes urram,
os metrôs voltaram hoje a circular em Wuhan.
É solidão compulsória, é um estado de sítio,
são coiotes vagando livres por San Francisco,
É uma flor desabrochando durante a tempestade
(pois quando tudo acabar talvez seja tarde).
É a solidão futurista da Times Square,
é o suicida alcançando um revólver.
São navios de cruzeiro proibidos de atracar,
são hospitais abarrotados em Milão, Rio, Dakar.
Pássaros continuam voando, geleiras caindo,
há um pôr do sol distante, solitário e lindo.
É viver entre as paredes dos parênteses
em reticências que se alongam como meses.
É o mundo inteiro em stand-by,
é o corpo lutando por ar.
***
Rodrigo Garcia Lopes
O Enigma das Ondas [Iluminuras | 2020]
quinta-feira, fevereiro 25, 2021
Namorados do Mirante
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
A Remontavam às origens — a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espécie — tudo mais tinha morrido.
Caíam lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas na magma incandescente
Que milénios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito.
Eles eram mais antigos que o silêncio...
sexta-feira, fevereiro 19, 2021
Necrológio dos desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.
Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.
Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.
Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...
Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).
Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho
enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.
quarta-feira, fevereiro 03, 2021
Anuviada
Há um mês não publico nada aqui. Entro, começo a escrever, a preparar a publicação e deixo pra lá. Isso tem sido recorrente. Nesse movimento de acessar o blog e começar a escrever, acabo de constatar que tenho arquivados, só neste espaço, 122 rascunhos de postagens diversas (afora os rascunhos esboçados em meu computador, ou mesmo em minhas cadernetas de anotações). Tudo espalhado, entrecortado, fragmentado e fora de ordem. Poemas, minicontos, crônicas, comentários idiotas, citações literárias, filosóficas, comentadas ou não, ideias soltas, saltitantes. Tenho refletido muito sobre o que me leva a esse movimento de iniciar e abandonar o que escrevo: uma sensação de que precis...
sexta-feira, janeiro 01, 2021
Ano Novo
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.
Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.
E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.
Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).
terça-feira, novembro 03, 2020
Debaixo das Unhas
PUTAS
Elas passam pelas ruas de todas as horas arrastando pedaços de seus corpos anteriores,
pedaços de suas trompas,
suas pontas de astros.
Passam altivas carregando o peso de antigos seios de tantas mamadas,
braços marcados por unhas e barbas,
genitálias explodidas por muitos nãos que foram ditos entre berros,
cabelos enozados por coágulos e vômitos cuspindo dentes.
Caminham juntas, passo a passo, cantando dolorosamente sua elegia da carne viva, enquanto as ruas as observam
quase vivas,
garantidas por um mandado de segurança: cem metros de distância
e maquiagens de alta definição – uma renovação pela graça de grandes laboratórios dirigidos por homens cientistas.
As boas pessoas que assistem ao cortejo rezam de cabeça baixa pedindo
a benção do esquecimento, mas as mulheres seguem
ensanguentadas
em direção ao espaço reservado aos que pagam penitências e culpas: putas!
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Samantha Abreu
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Conheci a Samantha Abreu há mais ou menos um ano. Já conhecia seu nome como escritora londrinense e havia lido um ou outro de seus poemas. Frequentávamos os mesmos espaços, mas nunca havíamos nos esbarrado pessoalmente. Por ocasião da organização de um evento de filosofia na UENP, minha amiga Bah (Bárbara Marques) indicou a Samantha pra falar sobre a escrita de mulheres - tema de seus estudos. Era a primeira vez que em 20 anos de filosofia eu me dirigia, ao menos na academia, ao tema das Mulheres na Filosofia, dado o cânone filosófico ser, até hoje, predominantemente masculino, sobretudo branco, europeu etcétera e tal.
Se considerarmos os 2.500 anos de história da filosofia, as mulheres começaram a figurar com uma certa sobressalência no cenário filosófico (científico, político e literário também) há pouquíssimo tempo, ainda que a história estivesse repleta de mulheres escritoras, tradutoras, filósofas, cientistas, artistas, bruxas e o escambau. Há quem não queira que elas figurem em todos os espaços e áreas, principalmente, com absoluta independência. Não é o caso da Samantha Abreu. Nem o meu.
Fiz, então, o contato com ela. Expus a proposta do evento. E ela, embora trabalhasse o tema de uma perspectiva mais literária, topou dar um minicurso sobre as mulheres na filosofia. Estudou, pesquisou, refletiu, organizou, ligou os pontos entre a escrita filosófica e a escrita literária (uma das misturas mais finas que existe), foi lá e, simplesmente, arrasou.
Samantha Abreu é daquelas powerful girls que despertam paixões à primeira vista e a todas as outras vistas. Sua escrita também. Não sou crítica de arte e não entendo nada de poesia. Minha apreciação estética, literária e poética é totalmente passional e primária. Passa na ponta dos pés pelo entendimento. Não me cabe, portanto, teorizar sobre seus belos, sensíveis e fodásticos poemas. Quero apenas dizer que recebi há mais ou menos um mês o livro Debaixo das Unhas e, claro, simplesmente amei 💘.
quinta-feira, outubro 08, 2020
hiatos
Somos feitos das mesmas bibliotecas
dos mesmos jardins suspensos
dos mesmos tapetes urdidos em tramas de lã
Somos desabrigados
e nossos tetos respingam um vapor goticulado
Somos como os hiatos
de uma palavra não dita
perdida nos vãos das pedras moventes
Por vezes, nos olhamos
do alto daquela montanha sem chão
e te mato sem querer
te afogo lá onde o mergulhador não chega
Mas te lembro que os hiatos são valentes
aceitam o não-lugar dos exílios
da fenda
da origem do tudo e do nada
Não há litígio para os feitos-seres-hiatos
eles somente se habitam
entrelaçam suas cavernas
afaimadas
Negligenciam o canto absoluto
ao perfurarem a superfície das coisas
e se deixarem pertencer a dois mundos
Revelo
[nesse amor hiato]
todas as fuligens levadas de meu corpo
quando escolhi fazer a travessia das pedras
e te encontrar deitado sobre os trilhos
para sentir o ar frio vindo das serras
vemos juntos a agitação do mar
ao esticarmos nossos corpos na cama febril
E na dobra de nossos joelhos
ralados da curva de tantas esquinas
lembramos dos nós que não cabem em hiatos.
quinta-feira, setembro 10, 2020
Sonambulando
De repente, ela se viu diante da porta de uma casa noturna. Parecia uma porta de saída de emergência. Porta corta-fogo, dessas que a gente vê em filmes americanos. Seus passos eram firmes, sua velocidade estonteante. Estava decidida a sabe-se lá o quê! No fundo, não sabia de nada. Era levada por um impulso ─ um impulso irresistível. Rolava um zum zum zum na entrada do night club, mas, diante dela, as portas se abriram de imediato. E logo atrás se fecharam. Num piscar de olhos, a cena tornou-se completamente outra. O que ela via não tinha nada a ver com qualquer tipo de casa noturna. Era um quarto enorme, muito escuro, frio, úmido, silencioso, repleto de camas enfileiradas - uma espécie de abrigo, no qual pessoas dormiam indistintas. No momento que entrou na cena, não mais pisou no chão. Seus passos tornaram-se flutuantes, largos, quase etéreos, apesar da atmosfera sombria. A mudança fora brusca. Impactante. A expectativa era uma, a realidade era outra. Não se deteve. Seguiu flutuando num ballet em linha reta. De repente, a cena mudou novamente. Havia entrado, sem saber como, num romance secreto. Romance de olhares que sussurram, e que na vida ordinária os mortais costumam chamar de amor ─ amor platônico.
(marília côrtes | setembro | 2020)
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[Painting by Giuseppe Cali | Woman in the moon | 1912]
sexta-feira, setembro 04, 2020
A filosofia na modesta província da vida comum
ai ai ai
as borboletas na barriga já estão agitadas...
e o coração disparado para não parar.
Live, hoje, às 20h!
domingo, agosto 09, 2020
Panta rei
Sonhei que o mar levava meu laptop. E, também, minha carteira de documentos. A angústia era a de que o mar levava com ele a minha vida, a minha história, o meu eu - o meu querido e amado eu. Mas, curiosamente, eu ainda permanecia ali, na beira do mar, com os pés na água, a contemplar aflita, e sem poder fazer nada, as ondas agitadas que tragavam a minha vida.
Não havia sol. O céu estava nublado. E o vento um tanto frio. Sentia também um aperto a mais em meu coração. O de que minhas filhas estavam longe, cada qual numa cidade diferente, tal como de fato elas estavam. Fiz, então, uma espécie de experimento mental. Fechei os olhos, abri os braços e inspirei, profundamente, até estufar o peito de tanto ar. Transportei-me inteira, em corpo e alma, para o centro do meu coração. Foi como se só ele existisse. Mas, de repente, abriu-se uma fenda em meu peito e três veias pulsantes começaram a crescer, feito caules de plantas em busca de luz. Foi um momento de alento e esperança. Um dos caules enraizados em meu peito estendia-se sobre o mar aberto até alcançar o coração da Marina, lá em São Paulo. Um outro buscava o coração da Bibi em Londrina, e outro, bem mais comprido, em razão da longa distância, ia ao encontro do coração da Paulinha, lá em São Francisco, na Califórnia. Meu coração atravessava os mares. As veias entrelaçavam-se aos corações delas. E assim eu as trazia para perto.
Nem o mar nem o céu eram propriamente sombrios, apenas melancólicos, de uma melancolia poética. Sombria era a angústia pela perda do meu eu que navegava à deriva sobre as ondas revoltas. Sombria era a angústia de ver minha vida arrastada e engolida pelo mar.
De súbito, meu horizonte empalideceu. Acordei e fiquei ali mesmo, na cama, a rememorar as imagens e sensações vividas naquele sonho. Passados alguns minutos, levantei e fui até minha mesa de trabalho. Abri um de meus moleskines para escrever essas breves notas, antes que tudo se esvaísse de minha memória. Ao folheá-lo, encontrei o seguinte verso:
"Há mar e mar / há ir e voltar", de Alexandre O'Neill.
Panta rei...
(marília côrtes | floripa | março | 2017)
(desconheço o autor dessa imagem)
sexta-feira, julho 31, 2020
Notas do day by day
sábado, julho 18, 2020
A morte do amor
"Se eu pudesse voltar atrás
Não te amava.
É tão mais fácil
Manter o coração quieto no peito
Como se todos os dias
E todas as horas fossem iguais.
A inquietação de me faltares
Deixa os meus olhos tristes
Esperando que aceites
A mão que te estendo.
Mas tu não estás.
Eu parti com a última onda
Sem saber se voltarei um dia,
E o caminho que os nossos pés
Juntos percorreram
Choram a saudade
De ter morrido o amor
Quando dissemos adeus."
quinta-feira, julho 02, 2020
Epílogo
"Não, o melhor é não falares, não explicares coisa alguma. Tudo agora está suspenso. Nada aguenta mais nada. E sabe Deus o que é que desencadeia as catástrofes, o que é que derruba um castelo de cartas! Não se sabe... Umas vezes passa uma avalanche e não morre uma mosca... Outras vezes senta uma mosca e desaba uma cidade."
sexta-feira, junho 26, 2020
Untitled
enquanto seu corpo movente
move-se lentamente
sua mente pensante
pensa sistematicamente
tal qual poeira ao vento.
restam-lhe apenas
rastros, sopros
e nuvens de existência.