Eu não queria querer
sem ritmo, sem nada.
"Não há amor de viver sem desespero de viver" (Albert Camus em O Avesso e o Direito).
O beijo fulmina-nos como o relâmpago, o amor passa como um temporal, depois a vida, novamente, acalma-se como o céu, e tudo volta a ser como dantes. Quem se lembra de uma nuvem?
Guy de Maupassant
"Na cidade de H... viveu há alguns anos um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio. Aqueles que o conheciam um pouco melhor procuravam explicar pela melancolia ou pela paixão sua natureza fechada, que fugia de todo contato permanente com os homens. Os partidários desta última hipótese, de certa maneira, não estavam errados; enganavam-se, porém, ao pensar que era uma jovem o objeto de seus sonhos. Tais sentimentos eram completamente estranhos ao seu coração, e, assim como sua aparência exterior era delicada, etérea, quase transparente, sua alma, no mesmo grau, era por demais determinada pelo intelecto para se deixar cativar pela beleza de uma mulher. Estava apaixonado, ardorosamente apaixonado ─ pelo pensamento, ou, antes, pelo pensar."
"Nenhum jovem apaixonado, diante da passagem incompreensível, na qual o amor desperta no seu peito, diante do relâmpago que acende na amada um amor recíproco, poderia experimentar uma emoção mais profunda do que ele diante da passagem compreensível que um pensamento se encadeia em outro, uma passagem que representava para ele o instante feliz da realização do que pressentira e esperara no silêncio de sua alma. Então sua fronte se inclinava pensativamente, como uma espiga madura, não porque escutasse a voz da amada, mas porque prestava atenção ao murmúrio secreto dos pensamentos; seu olhar tornava-se sonhador, não porque adivinhasse a imagem da amada, mas porque via o movimento do pensamento aparecer diante de si. Seu prazer consistia em começar por um pensamento particular, a partir dele seguir o caminho da consequência, escalando degrau por degrau até um pensamento mais alto; pois a consequência era a seus olhos uma scala paradisi [escala do paraíso], e sua beatitude lhe parecia maior até que a dos anjos. Com efeito, tendo alcançado este pensamento mais alto, ele experimentava uma alegria indescritível, uma voluptuosidade apaixonada em mergulhar sob as mesmas consequências no raciocínio inverso até chegar ao ponto do qual partira. Entretanto..." [...]
ah, entretanto... esse é só o começo, você vai ter que ler pra saber o que vem pela frente dessa magnífica e curiosa obra: uma verdadeira aula de filosofia, de fato, sui generis — escrita numa espécie de romance autobiográfico — repleta de poesia e sabedoria.
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Søren Aabye Kierkegaard (Copenhague 1813-1855).
[É preciso duvidar de tudo | Tradução de Sílvia S. Sampaio e Álvaro L. M. Valls | Prefácio e notas de Jacques Lafarge | São Paulo | Martins Fontes | 2003 | pp. 5-7].
[Rodrigo Garcia Lopes | O Enigma das Ondas | Iluminuras | 2000]
photo: Alper Durukan
David Hume [1711-1776] é considerado um dos espíritos mais luminosos do século XVIII e ocupa lugar de destaque entre os autores de língua inglesa, não somente como filósofo, mas também como ensaísta e historiador. Suas obras exploram uma ampla variedade de temas, que vão desde a epistemologia, a política, a moral e a estética, até a economia, a história e a metafísica. Dentre seus escritos filosóficos de maior envergadura encontra-se o Tratado da Natureza Humana [1739-1740], dividido em três partes: Do entendimento, Das paixões e Da moral — tal obra contém a exposição mais completa e detalhada de seu sistema filosófico, em aproximadamente 700 páginas. Mais tarde ele publicou, entre outros, dois textos mais concisos: a Investigação sobre o Entendimento Humano [1748] e a Investigação sobre os Princípios da Moral [1751], oferecendo, em ambas, exposições mais claras, breves e acessíveis sobre as principais teses do Tratado.
Já os Ensaios Morais, Políticos e Literários [1741], obra que mais nos interessa aqui, apresentam, no estilo e na temática, o modelo criado por Montaigne em 1580 — e que inspirou textos de Francis Bacon, Alexander Pope, Samuel Johnson, Joseph Addison e muitos outros. Numa linguagem mais informal, ainda que culta e referida à République des Lettres, os Ensaios contêm textos curtos, fluentes e dirigidos ao leitor comum. Em Sobre a escrita de ensaios, Hume afirma ser este o gênero de escrita mais adequado à discussão da filosofia da vida comum, em oposição à filosofia abstrata. Ali ele diz considerar-se “uma espécie de representante ou embaixador dos domínios do saber nos domínios da conversação”, e que é seu dever promover “um diálogo fecundo entre esses dois Estados, que dependem inteiramente um do outro” (Essays, p. 535).
Vale destacar a fusão entre estilo fluente e profundidade filosófica operada por Hume nesses Ensaios, assim como o intercâmbio entre os “homens de letras” e os “homens do mundo”. De acordo com ele, seria um erro confinar a filosofia aos tratados e gabinetes das universidades, separando-a do mundo e das boas companhias. Tal aproximação entre filosofia e vida comum constitui-se, pois, numa das principais contribuições dos 49 ensaios reunidos nas também aproximadamente 700 páginas desta imponente obra. Dessa perspectiva, um ciclo de palestras em torno dos Ensaios se apresenta, aqui, como uma excelente ferramenta de articulação entre pesquisa, ensino e extensão, possibilitando a geração de produção científica de qualidade e o aprimoramento da formação dos acadêmicos inseridos na complexidade e diversidade do mundo atual.
PROGRAMAÇÃO
1. Bel Limongi (UFPR) – 28/07/2021: Tema: O caráter político dos Ensaios Econômicos de Hume.
2. Franco Nero Soares (IFRS) – 11/08/2021: Tema: A felicidade é para todos? Hume e os limites da razão na regulação do temperamento.
3. Andreh Sabino (IFRN) - 25/08/2021: Tema: Cultura, polimento e comércio.
4. Stephanie Zahreddine (UFMG) – 08/09/2021: Tema: As "ocorrências irregulares e extraordinárias" do mundo político segundo David Hume.
5. Marcos Balieiro (UFS) – 15/09/2021: Tema: Considerações sobre a polidez em Hume.
6. Luiz Eva (UFABC) – 13/10/2021: Tema: (a definir)
7. Flávio Williges (UFSM) – 27/10/2021: Tema: O lugar das emoções na filosofia moral de Iris Murdoch.
8. Jaimir Conte (UFSC) – 10/11/2021: Tema: Sobre os ensaios póstumos de Hume: Da imortalidade da alma e Do Suicídio.
9. Fernão de Oliveira Salles (UFSCAR) - 24/11/2021: Tema: Comércio e civilização na filosofia de David Hume.
Inscrições e demais informações:
https://ciclodepalestrashu.wixsite.com/website
Ela me perguntou o quanto eu a amava.
Reuni em vidro todos os humores vertidos:
sangue, sêmen, lágrimas.
Amo você tantos rios.
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Carla Madeira | Tudo é rio | Record | 2021
LXIX
Há um mês não publico nada aqui. Entro, começo a escrever, a preparar a publicação e deixo pra lá. Isso tem sido recorrente. Nesse movimento de acessar o blog e começar a escrever, acabo de constatar que tenho arquivados, só neste espaço, 122 rascunhos de postagens diversas (afora os rascunhos esboçados em meu computador, ou mesmo em minhas cadernetas de anotações). Tudo espalhado, entrecortado, fragmentado e fora de ordem. Poemas, minicontos, crônicas, comentários idiotas, citações literárias, filosóficas, comentadas ou não, ideias soltas, saltitantes. Tenho refletido muito sobre o que me leva a esse movimento de iniciar e abandonar o que escrevo: uma sensação de que precis...
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Conheci a Samantha Abreu há mais ou menos um ano. Já conhecia seu nome como escritora londrinense e havia lido um ou outro de seus poemas. Frequentávamos os mesmos espaços, mas nunca havíamos nos esbarrado pessoalmente. Por ocasião da organização de um evento de filosofia na UENP, minha amiga Bah (Bárbara Marques) indicou a Samantha pra falar sobre a escrita de mulheres - tema de seus estudos. Era a primeira vez que em 20 anos de filosofia eu me dirigia, ao menos na academia, ao tema das Mulheres na Filosofia, dado o cânone filosófico ser, até hoje, predominantemente masculino, sobretudo branco, europeu etcétera e tal.
Se considerarmos os 2.500 anos de história da filosofia, as mulheres começaram a figurar com uma certa sobressalência no cenário filosófico (científico, político e literário também) há pouquíssimo tempo, ainda que a história estivesse repleta de mulheres escritoras, tradutoras, filósofas, cientistas, artistas, bruxas e o escambau. Há quem não queira que elas figurem em todos os espaços e áreas, principalmente, com absoluta independência. Não é o caso da Samantha Abreu. Nem o meu.
Fiz, então, o contato com ela. Expus a proposta do evento. E ela, embora trabalhasse o tema de uma perspectiva mais literária, topou dar um minicurso sobre as mulheres na filosofia. Estudou, pesquisou, refletiu, organizou, ligou os pontos entre a escrita filosófica e a escrita literária (uma das misturas mais finas que existe), foi lá e, simplesmente, arrasou.
Samantha Abreu é daquelas powerful girls que despertam paixões à primeira vista e a todas as outras vistas. Sua escrita também. Não sou crítica de arte e não entendo nada de poesia. Minha apreciação estética, literária e poética é totalmente passional e primária. Passa na ponta dos pés pelo entendimento. Não me cabe, portanto, teorizar sobre seus belos, sensíveis e fodásticos poemas. Quero apenas dizer que recebi há mais ou menos um mês o livro Debaixo das Unhas e, claro, simplesmente amei 💘.
De repente, ela se viu diante da porta de uma casa noturna. Parecia uma porta de saída de emergência. Porta corta-fogo, dessas que a gente vê em filmes americanos. Seus passos eram firmes, sua velocidade estonteante. Estava decidida a sabe-se lá o quê! No fundo, não sabia de nada. Era levada por um impulso ─ um impulso irresistível. Rolava um zum zum zum na entrada do night club, mas, diante dela, as portas se abriram de imediato. E logo atrás se fecharam. Num piscar de olhos, a cena tornou-se completamente outra. O que ela via não tinha nada a ver com qualquer tipo de casa noturna. Era um quarto enorme, muito escuro, frio, úmido, silencioso, repleto de camas enfileiradas - uma espécie de abrigo, no qual pessoas dormiam indistintas. No momento que entrou na cena, não mais pisou no chão. Seus passos tornaram-se flutuantes, largos, quase etéreos, apesar da atmosfera sombria. A mudança fora brusca. Impactante. A expectativa era uma, a realidade era outra. Não se deteve. Seguiu flutuando num ballet em linha reta. De repente, a cena mudou novamente. Havia entrado, sem saber como, num romance secreto. Romance de olhares que sussurram, e que na vida ordinária os mortais costumam chamar de amor ─ amor platônico.
(marília côrtes | setembro | 2020)
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[Painting by Giuseppe Cali | Woman in the moon | 1912]
ai ai ai
as borboletas na barriga já estão agitadas...
e o coração disparado para não parar.
Live, hoje, às 20h!
Sonhei que o mar levava meu laptop. E, também, minha carteira de documentos. A angústia era a de que o mar levava com ele a minha vida, a minha história, o meu eu - o meu querido e amado eu. Mas, curiosamente, eu ainda permanecia ali, na beira do mar, com os pés na água, a contemplar aflita, e sem poder fazer nada, as ondas agitadas que tragavam a minha vida.
Não havia sol. O céu estava nublado. E o vento um tanto frio. Sentia também um aperto a mais em meu coração. O de que minhas filhas estavam longe, cada qual numa cidade diferente, tal como de fato elas estavam. Fiz, então, uma espécie de experimento mental. Fechei os olhos, abri os braços e inspirei, profundamente, até estufar o peito de tanto ar. Transportei-me inteira, em corpo e alma, para o centro do meu coração. Foi como se só ele existisse. Mas, de repente, abriu-se uma fenda em meu peito e três veias pulsantes começaram a crescer, feito caules de plantas em busca de luz. Foi um momento de alento e esperança. Um dos caules enraizados em meu peito estendia-se sobre o mar aberto até alcançar o coração da Marina, lá em São Paulo. Um outro buscava o coração da Bibi em Londrina, e outro, bem mais comprido, em razão da longa distância, ia ao encontro do coração da Paulinha, lá em São Francisco, na Califórnia. Meu coração atravessava os mares. As veias entrelaçavam-se aos corações delas. E assim eu as trazia para perto.
Nem o mar nem o céu eram propriamente sombrios, apenas melancólicos, de uma melancolia poética. Sombria era a angústia pela perda do meu eu que navegava à deriva sobre as ondas revoltas. Sombria era a angústia de ver minha vida arrastada e engolida pelo mar.
De súbito, meu horizonte empalideceu. Acordei e fiquei ali mesmo, na cama, a rememorar as imagens e sensações vividas naquele sonho. Passados alguns minutos, levantei e fui até minha mesa de trabalho. Abri um de meus moleskines para escrever essas breves notas, antes que tudo se esvaísse de minha memória. Ao folheá-lo, encontrei o seguinte verso:
"Há mar e mar / há ir e voltar", de Alexandre O'Neill.
Panta rei...
(marília côrtes | floripa | março | 2017)
(desconheço o autor dessa imagem)