David Hume [1711-1776], na conclusão do Livro 1 do Tratado da Natureza Humana (T)
encontra-se num estado que tenho (quase) certeza de que, se não todos, ao menos
a maior parte daqueles que estudam filosofia já se encontraram num dado momento
de seus estudos, numa certa hora de seus dias ou de suas noites.
Hume se vê assustado, confuso, e numa solidão desesperadora
diante das reflexões que empreendeu ao escrever e concluir o livro I do Tratado intitulado Do Entendimento.
Logo no § 1 ele confessa, um tanto melancólico e desesperado, além de assustado e confuso, como se sente diante da viagem que
empreendera. Salta, ao menos aos meus olhos, que Hume é, aqui, não apenas um filósofo, mas também um literato muito poético...
“Sinto-me como um homem que, após encalhar em vários bancos
de areia, e escapar por muito pouco do naufrágio ao navegar por um pequeno
esteiro, ainda tem a temeridade de fazer-se ao mar na mesma embarcação avariada
e maltratada pelas intempéries, levando sua ambição a tal ponto que pensa em cruzar
o globo terrestre em circunstâncias tão desfavoráveis. A memória de meus erros
e perplexidades passados me faz desconfiar do futuro. A condição desoladora, a
fraqueza e desordem das faculdades que sou obrigado a empregar em minhas
investigações, aumentam minhas apreensões. E a impossibilidade de melhorar ou
corrigir essas faculdades me reduz quase ao desespero, fazendo-me preferir
perecer sobre o rochedo estéril em que ora me encontro a me aventurar por esse
ilimitado oceano que se perde na imensidão. Essa súbita visão do perigo a que
estou exposto me enche de melancolia; e como costumamos ceder a esta paixão
mais que a todas as outras, não posso me impedir de alimentar meu desespero com
todas essas reflexões desalentadoras, que o presente tema me proporciona em
tamanha abundância” (T 1.4.7 §1).
Caminhando do prazer à dor, Hume hesita entre a inclinação
natural a buscar diversões e companhias e a inclinação natural a devanear solitariamente.
“A visão intensa
dessas variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal
maneira, e inflamou minha mente a tal ponto, que estou prestes a rejeitar toda
crença e raciocínio, e não consigo considerar uma só opinião como mais provável
ou verossímil que as outras. Onde estou, o que sou? De que causas derivo minha
existência, e a quem devo temer? Que seres me cercam? Sobre quem exerço
influência, e quem exerce influência sobre mim? Todas essas questões me
confundem, e começo a me imaginar na condição mais deplorável, envolvido pela
mais profunda escuridão, e inteiramente privado do uso de meus membros e
faculdades (T 1.4.7 §8). Felizmente ocorre que, sendo a razão incapaz de
dissipar essas nuvens, a própria natureza o faz, e me cura dessa melancolia e
delírio filosóficos, tornando mais branda essa inclinação da mente, ou então
fornecendo-me alguma distração e alguma impressão sensível mais vívida, que
apagam todas essas quimeras. Janto, jogo uma partida de gamão, converso e me
alegro com meus amigos; após três ou quatro horas de diversão. Quando quero
retomar essas especulações, elas me parecem tão frias, forçadas e ridículas,
que não me sinto mais disposto a levá-las adiante” (T 1.4.7.§9).
Nesse momento, Hume se encontra “absoluta e necessariamente
determinado a viver, a falar e a agir como as outras pessoas, nos assuntos da
vida corrente”, e se diz pronto a lançar ao fogo todos os seus livros e papéis,
bem como disposto a nunca mais renunciar “aos prazeres da vida em benefício do
raciocínio e da filosofia” (T 1.4.7.§10).
Em seguida, ele pergunta a si mesmo: “... seguir-se-á
que devo lutar contra a corrente da natureza, que me conduz à indolência e ao
prazer? Que devo me isolar, em alguma medida, do comércio e da sociedade dos
outros homens? E que tenho de torturar meu cérebro com sutilezas e
sofisticarias, no momento mesmo em que não sou capaz de me convencer da
razoabilidade de uma aplicação tão penosa, nem tenho qualquer perspectiva
tolerável de, por seu intermédio, chegar à verdade e à certeza (T 1.4.7.§10)?
E então? Deverá Hume continuar “a vagar em meio a tão
lúgubres solidões e atravessar mares tão bravios quanto os que até agora” (T
1.4.7.§10) ele encontrou?
E eu? Deverei...?
[HUME, David. Tratado da
Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de
raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Débora Danowski. — São Paulo:
UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001].