sexta-feira, dezembro 30, 2022

Tecido de horrores

"É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer dia, mês ou ano, sem descobrir em todas as linhas os traços mais pavorosos da perversidade humana [...] Qualquer jornal, da primeira à última linha, nada mais é do que um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, linchamentos, torturas, as façanhas malignas dos príncipes, das nações, de indivíduos particulares; uma orgia de atrocidade universal. E é com este aperitivo abominável que o homem civilizado diariamente rega o seu repasto matinal".

Charles Baudelaire apud Susan Sontag

In: Diante da Dor dos Outros


Art by Walter Crane | Pandora (1885)


sábado, dezembro 24, 2022

Artigos de luxo

"Temos de reaprender o que é satisfação. Estamos tão desorientados, que achamos que satisfazer-se é ir às compras. Um luxo verdadeiro é um encontro humano, um momento de silêncio diante da criação, fruir de uma obra de arte ou de um trabalho bem-feito. Satisfações verdadeiras são aquelas que embargam a alma de gratidão e nos predispõem ao amor."

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"... nós nos salvaremos pelos afetos. O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria."

[Ernesto Sabato | A Resistência]

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[art by William-Adolphe Bouguereau | Pietà | 1876]

domingo, dezembro 04, 2022

In love

O amor,
Minha gente,
É um poema bem curtinho,
Que na sua incomensurável forma de ser,
Nos fode,
Sem a gente perceber.


(Nelson Alexandre)


By Lucien Waléry [Nude - detail 1920]

sábado, outubro 29, 2022

Grito rubro que pulsa sob minha pele


Mesmo com a garganta
Perfurada pela lâmina do silêncio
O sangue pulsa vermelho

Mesmo que o carrasco
Arranque a língua insubmissa
O sangue grita vermelho

Mesmo sob a face do torturador
O corpo feito em pedaços
O sangue resiste vermelho

Mesmo com os olhos
Vagando na noite sem fim
O sangue brilha vermelho

Mesmo com rumores de ataques
Coturnos, bombas e tanques
O sangue da luta é vermelho

Mesmo com a corda no pescoço
Uma multidão pedindo nossas cabeças
O sangue permanece de pé, vermelho

Mesmo que os lábios toquem a lona
E sintam o gosto áspero da queda
O sangue levantará do chão, vermelho.


(Evilásio Júnior)


The Tomb of the Wrestlers, 1960 by Rene Magritte


sábado, setembro 24, 2022

Les clés

 


"Minha querida, não há nem muros nem jardins secretos para você. Você tem as chaves para todas as portas."

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Albert Camus em carta a Maria Casarès, 12 agosto 1948, in Correspondance: 1944-1959. Paris: Gallimard, 2017. 

sábado, setembro 10, 2022

Tríptico II

I

[...]



II

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.

III

[...]


[Herberto Hélder, Tríptico II | in: A Colher na Boca | 1961]



quarta-feira, agosto 31, 2022

Tempo

"... queria te falar, te falar da morte de Ivan Illich, da solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo."

***

Hilda Hilst | In: "A obscena senhora D" | São Paulo : Globo | 1a edição | 2001




sexta-feira, agosto 26, 2022

Hope


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

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Eugénio de Andrade




quinta-feira, agosto 18, 2022

Chuvosa




chore
chuva
chore seu pranto cinzento
estenda seu manto frio e úmido
sobre a cidade 

chore
chuva
lave bem suas ruas 
seus corpos
corações e calçadas

chore
chuva
derrame suas mágoas geladas
caia torrencialmente
e leve toda miséria 
dessa pobre humanidade.



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marilia côrtes
agosto/2022

quinta-feira, março 31, 2022

Bom dia, deem uma viajadinha no tempo. Remontem aos anos finais do século XVIII — contexto da Revolução Francesa — e vejam o que essa mulher, Olympe de Gouges, ousou declarar em linhas que, dois anos mais tarde, entre outras, custaram-lhe a cabeça.


 

“Homem, você é capaz de ser justo? É uma mulher que lhe faz a pergunta — você não a despojará desse direito, pelo menos. Diga-me, quem lhe deu o poder soberano para oprimir meu sexo? A sua força? Os seus talentos? Observe o criador em sua sabedoria, percorra a natureza em toda a sua grandeza, da qual você parece querer aproximar-se, e dê-me, se você ousa, o exemplo desse império tirânico (n.1).

Retorne aos animais, consulte os elementos, estude os vegetais, enfim, olhe todas as modificações da matéria organizada, e renda-se à evidência, quando lhe ofereço os meios de fazê-lo. Procure, pesquise e distinga, se você puder, os sexos na administração da natureza. Em toda parte, você encontrará os sexos confundidos, em toda parte eles cooperam com um conjunto harmonioso para essa obra prima imortal.

Somente o homem costurou para si um princípio dessa exceção. Estranho, cego, inflado de ciências e degenerado, neste século de luzes e de sagacidade, na ignorância mais abjeta, ele quer comandar como déspota sobre um sexo que recebeu todas as faculdades intelectuais. Ele [este sexo] pretende usufruir da Revolução e reivindicar seus direitos à igualdade, para nada mais dizer.”

(N.1. De Paris ao Peru, do Japão ao Senegal, o homem é, a meu ver, o mais tolo animal (N.A.)).

[Acima, texto de abertura à Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, 1791].

Olympe de Gouges (1748-1793), dramaturga, ativista política, abolicionista, autora da Declaração dos direitos da mulher e da cidadã (1791), foi acusada de traição e guilhotinada em 03 de novembro de 1793 “por haver esquecido as virtudes que convêm a seu sexo e por haver se intrometido nos assuntos da República” — um destino também compartilhado pela rainha Maria Antonieta da Áustria, esposa de Luís XVI. 

Tal Declaração, dedicada à rainha Maria Antonieta, é composta por um preâmbulo, dezessete artigos, um epílogo e mais algumas linhas sobre a “Forma do contrato social entre o homem e a mulher.” Encontra-se traduzida in: ROVERE, Maxime (Org.). Arqueofeminismo: Mulheres Filósofas e Filósofos Feministas. Séculos XVII e XVIII. São Paulo: n-1 Edições, 2019.

Vale muito a leitura!

segunda-feira, março 21, 2022

O último brinde

Bebo à casa arruinada,
às dores da minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –

aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou
.


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[ А́нна Ахма́това | 1889-1966 | in: “Anna Akhmátova: antologia poética” | seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho | Porto Alegre | L&PM Pocket | 2009 ]

Ilustración | Nicoletta Tomas Caravia | Espagne

http://www.nicoletta.info/

sábado, fevereiro 26, 2022

Louca, mas nem tanto...


Dia desses achei que estava ficando louca. Fui até a cozinha beber água, abri a geladeira e, sem perceber, peguei uma coca. Em seguida, fui buscar um copo. No meio do caminho, fumando um cigarrinho, vi um cinzeiro sobre a mesa. Em vez de pousar o cigarro no cinzeiro, ou simplesmente bater a cinza, abri a coca e quaase a despejei no cinzeiro. Percebi, então, o quanto estava ligada no automático. Bom, ao menos percebi. Pior se tivesse mesmo despejado a coca no cinzeiro e bebido. Ora bolas, ao que tudo indica, concluí, restava ainda um pouco de sanidade na minha cachola.

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imagem: collage surreal space art

quinta-feira, fevereiro 10, 2022

A sós sob o sol

Ontem encontrei em meio à praia quase deserta alguns abutres que voavam numa aerodinâmica belíssima em busca de alimento. Abutres são necrófagos, se alimentam de carniça. Por isso, são muito malvistos. Mas ontem fiquei a observar a beleza do voo dos abutres. Havia alguns poucos peixes mortos na areia. Desses que as ondas trazem naturalmente. Céu azul, sol radiante, água morna, vento fresco. Tudo muito calmo, sincronizado e tranquilo. 

Os abutres voavam lá no alto, organizados num grande círculo. Pareciam inspecionar a área. Faziam uma espécie de ronda. A praia, cuja extensão de 10 km é também muito larga, estava simplesmente paradisíaca. Eles começaram a descer de mansinho, voando num movimento espiral, lento, observando o entorno. E foram se aproximando da areia, pousando de leve, fechando as asas, ao lado dos peixes mortos. 

Nunca havia visto tantos abutres juntos. E de tão perto. Como são grandes e pretos! De asas abertas ficam enormes. Eram cinco. Senti um pouco de medo de que viessem pra cima de mim. Mas eles estavam calmos. Não se sentiram ameaçados pela minha presença, pelo meu olhar. Perdi o fôlego. Meu coração descompassou. Quase saltou do peito. Estupefata, respirei fundo, controlei o medo, e deixei que a natureza seguisse seu curso habitual e uniforme, sem interferir na cena daquele belíssimo fenômeno natural da cadeia alimentar. Fiquei na posição de observadora passiva, paralisada. 

Não pude deixar de me perguntar: o que seria da carniça sem os abutres ou quaisquer outros animais necrófagos para comê-la? Toda matéria composta está sujeita à corrupção, à decomposição e à morte. Inclusive esse meu olhar fotográfico, que armazena a cena, e guarda um poema, em minha estética e melancólica memória.

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[marília côrtes | ilha do mel | janeiro de 2020].



sábado, janeiro 29, 2022

Triiimmm

Toca o interfone:

Marília? Chegou uma encomenda pra você... 

Desci achando se tratar daquele tênis que ganhei de presente das minhas filhas. Pelo tamanho da caixinha não poderia ser. O peso? leve, muito leve. Olhei o remetente: era do meu amigo Miguel. O sorriso mordeu minhas orelhas. 

Ah... que surpresa! O que seria? Não esperava. Não era meu níver, nem natal, nem nenhuma data comemorativa. Eita! Deve ser uma das peripécias delicadas e criativas do Miguelito. Um mimo para quem tinha acabado de mudar de apartamento. 

Subi apressada, louca de curiosidade, com a caixinha nas mãos. Abri o pacote e encontrei algo envolto em plástico bolha. Inferi que era um objeto sensível, provavelmente de vidro, quebrável. Desembrulhei com cuidado e, eis senão quando, encontrei um copinho pink estampado com a Penélope Charmosa a viajar loucamente pelo mundo afora, numa de suas corridas malucas. 

Quando liguei pra agradecer o presente, Miguelito me contou que ao vê-lo na lojinha pensou: é a cara da Marília. Confesso que também achei rs.

De imediato me lembrei que minha mãe havia dado o nome de Penélope Charmosa à nossa Caravan 76. Miguelito não sabia disso. Era uma Caravan cor de café com leite, 3 marchas, banco inteiro na frente, bem espaçoso, bom pra namorar. 

Meu pai comprou a Penélope zero km, em 1976, e ela ficou em nossa família por 26 anos. Destes, por 6 mais ou menos ela foi só minha. Ganhei de presente no início de 1997. Era bem conhecida. Ao que tudo indicava, na época, só circulavam três daquela cor na cidade. E a nossa nunca passava despercebida. No final de 2002 troquei-a por um Passat prata, mais novo, mas bem usadinho.

Além de Penélope Charmosa, eu a chamava também de Sedenta, já que era difícil satisfazer a sede dela por gasolina (que já custava os olhos da cara). A Sedenta rodava de 5 a 6 km por litro. Era mesmo insaciável. De vez em quando a marcha encavalava e, daí, eu tinha que parar onde estivesse, descer, atrapalhar o trânsito, abrir aquele capô imenso e pesado, e desencavalá-la. Mas essa já é outra história.

Quanto ao copinho, é meu xodó. Um charme!


domingo, janeiro 09, 2022

Domingo poético

Montanhas são frias quando a noite cai

Numa noite sem nome
a severa senhora de olhos escuros
toca-nos a face
com seus dedos de pelica
e vai arrancando, uma a uma,
todas as máscaras
que vestimos

e nessa hora sem hora
até o mais valente dos valentes
sente um tremor,
ainda que leve,
na mão que empunha o revólver

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[ Ademir Assunção | (Pinduca para os amigos e amigas) | RISCA FACA | Poesia | São Paulo | Selo Demônio Negro | 2021 | p. 31 ].




Trato

fiz um trato com o vento,
vamos dar um tempo, um
do outro, escapar deste
cenário viciado, e vagar
sem rumo pelas montanhas,
pradarias e pastagens,
sem deixar rastros nem
postagens, antes que eu
esteja morto, condenado
que sou, desde o nascimento

você não, você sempre estará
por aqui, mudando de cara,
em movimento, ora rugindo
feroz, destelhando casas,
arrastando vacas, ora brisa
suave, acariciando os cabelos
da menina, que caminha pela
praia, quase pronta pra parir,
outra vida, neste redumunho
do mundo em desalinho

fiz um trato com o vento,
você vai por lá, eu por ali,
por deus, por buda, por allah,
pelo nome que tanto faz,
quem sabe a gente volte
a se encontrar, naquela
esquina inesperada, onde
os fantasmas procuram a
paz, e os corvos crocitam
como loucos, antes que eu

esteja morto e você bem
posto, no alto, com sua
farda puída, guardando
as muralhas precárias dessa vida

fiz um trato com o vento
e tudo o que vi foi um aceno,
em silêncio, breve tremular
nas folhas finas do feno


[pp. 15-16]