terça-feira, dezembro 31, 2019

Corsário




Meu coração tropical 
está coberto de neve
mas ferve em seu cofre gelado
a voz vibra e a mão escreve mar

bendita lâmina grave 
que fere a parede e traz
as febres loucas e breves 
que mancham o silêncio e o cais

Roserais
Nova Granada de Espanha
por você, eu, teu corsário preso
vou partir a geleira azul da solidão
e buscar a mão do mar
me arrastar até o mar
procurar o mar

Mesmo que eu mande em garrafas
mensagens por todo o mar
meu coração tropical
partirá esse gelo e irá
com as garrafas de náufragos
e as rosas partindo o ar
Nova Granada de Espanha
e as rosas partindo o ar.


***


[ compositores: João Bosco & Aldir Blanc ]


Ouça aqui uma das mais belas versões dessa música, com João Bosco e Marie So.




segunda-feira, dezembro 30, 2019

À tua porta


Egoísmo

Fui sozinho à minha entrevista,
Quem é esse que me segue
na escuridão calada?

Afasto-me para ele passar,
mas não passa.

Seu andar soberbo
levanta poeira,
sua voz forte
duplica a minha palavra.

É o meu pobre eu!
Ele não se importa com nada.
Mas como sinto vergonha
por ter de vir com ele
à tua porta!

(TAGORE, Rabindranath | 1861-1941 | in: O Coração da Primavera | Lisboa | A. O. | 1990 | Tradução de Manoel Simões).


sábado, dezembro 14, 2019

Missivas


Meu querido,

Resisti à tentação de te escrever desde que soube seres tu o autor dessas missivas ardentes que, há duas semanas, vêm enchendo esta casa de chamas, de alegria, de saudade e de esperança, e meu coração e minhas entranhas, do doce fogo que abrasa sem queimar, e do amor e do desejo unidos em casamento feliz.

Por que assinarias umas cartas que só poderiam ter saído de tuas mãos? Quem me estudou, me formou, me inventou, como fizeste? Quem podia falar dos pontinhos vermelhos de minhas axilas, das rosadas nervuras das cavidades ocultas entre os dedos dos meus pés, desta “franzida boquinha rodeada por uma mini circunferência de alegres ruguinhas de carne viva, entre azulada e plúmbea, à qual se chega escalando as lisas e marmóreas colunas de tuas pernas”? Só tu, meu amor.

Desde as primeiras linhas da primeira carta, eu soube que eras tu. Por isso, antes de terminar a leitura, obedeci às tuas instruções. Despi-me e posei para ti, diante do espelho, imitando a Dânae de Klimt. E recomecei, como em tantas noites de que tenho saudade em minha atual solidão, a voar contigo por aqueles reinos da fantasia que exploramos juntos, ao longo daqueles anos compartilhados que agora são, para mim, fonte de consolo e de vida na qual volto a beber com a memória, para suportar a rotina e o vazio que vieram substituir aquilo que, ao teu lado, foi aventura e plenitude. [...]
.
.

[Llhosa, Mario Vargas |  Os cadernos de dom Rigoberto | Tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo | Rio de Janeiro | Objetiva |2009 | p. 186].

Dânae | 1907 | Gustav Klimt | óleo sobre tela

domingo, dezembro 01, 2019

Identificação


Eu me diluí na alma imprecisa das coisas.
Rolei com a Terra pela órbita do infinito,
jorrei das nuvens com a torrente das chuvas
e percorri o espaço no sopro do vento;
marulhei na corrente inquietadora de rios,
penetrei a mudez milenária das montanhas;
desci ao vácuo silencioso dos abismos;
circulei na seiva das plantas,
ardi no olhar das feras,
palpitei nas asas das pombas;
fui sublime n'alma do homem bom
e desprezível no coração do mesquinho;
inebriei-me da alegria do venturoso
e deslizei dolorosamente na lágrima do infeliz.

Nada encontrei mais doloroso,
mais eloquente,
mais grandioso
do que a tragédia cotidiana
escrita em cada vida humana.

[Helena Kolody | Infinita Sinfonia | p. 119]




Man Bending Down Deeply by Egon Schiele (1890-1918, Australia) 
Museum Art Reproductions Egon Schiele