quarta-feira, dezembro 28, 2016

Notas sobre uma episódio banal


O calor está infernal. Quem me conhece sabe que sou uma das mulheres mais friorentas desse planeta lindo e miserável. Gosto do sol, do calor e do céu aberto. Mas não desse ar abafadiço, desse bafo quente e sufocante.

De uns anos pra cá passei a apreciar também dias nublados e levemente frios. Eles combinam com o ensimesmamento, a solidão e a melancolia (um trio que também aprecio). Ademais, com um pouco de frio, dormir coberta é bem gostoso. E posso usar minhas botinhas no dia a dia.

Acabo de folhear um romance e me deparei com uma passagem, dentre tantas, daquelas que a gente grifa. Como alguém já observou um dia, eu deixo rastros e pistas em meus livros. E tenho um código próprio de grifos e sinais. Volta e meia eu mesma sigo as pistas que deixei assinaladas. Na que se segue, trata-se de apenas um banho. Um episódio banal.



"Deve haver um bocado de coisas que um banho quente não cura, mas não conheço muitas delas. Sempre que fico triste pensando que um dia vou morrer, ou perco o sono de tão nervosa, ou estou apaixonada por alguém que não verei por uma semana, me deixo sofrer até certo ponto e então digo: 'vou tomar um banho quente'. Eu medito no banho. A água tem que estar muito quente, tão quente que você mal consegue colocar o pé. Então você vai entrando, centímetro por centímetro, até estar com a água na altura do pescoço. [...] acho que vejo o banho quente do jeito que as pessoas religiosas veem a água benta" Sylvia Plath | A Redoma de Vidro | p.27-28]. 

A sensação é lenitiva. Tenho, digamos, "uma pira" com banhos quentes. E saudosas lembranças de meus banhos de banheira quando criança. Porém, em mim, o efeito curador não se dá apenas num banho de banheira. Basta-me um bom chuveiro de água quente. Não preciso ficar triste pensando na morte (embora eu pense nela correntemente). Também não necessito perder o sono por qualquer motivo (ainda que às vezes o perca por algum). Tampouco estar apaixonada (conquanto...) . Basta-me estar com muito frio (o que já me deixa doente) para que eu diga: "vou tomar um banho quente'. Ele aquece meu sangue e me cura do enorme desconforto do frio por ao menos duas horas, quando passo, novamente, a me sentir gelada, mesmo que bem agasalhada, em dias de muito frio.

Mas é verão. E hoje está muito calor. O dia pede um banho frio. Como detesto água fria, vou tomar um longo banho morno. E de chuveiro. Lugar sob o qual adoro pensar na vida e ver meus pensamentos escorrerem  pelo ralo.

fonte da imagem: Nicholas Nixon | Cultura Inquieta30

segunda-feira, dezembro 12, 2016

Ah... essa dor





O Grito

Se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos

se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse

se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
[...]

se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas

se ao menos esta dor sangrasse


[Renata Pallottini 1931- ... | A faca e a pedra | 1961]