“Na manhã em que me levantei para começar este livro tossi. Algo estava a sair-me da garganta, a estrangular-me. Rasguei o cordão que o retinha e arranquei-o. Voltei para a cama e disse: Acabo de cuspir o coração. [...] Aqueles que escrevem sabem o processo. Pensei nisto enquanto cuspia o coração. Só que não estou à espera da morte do meu amor" (p.2-3).
"A casa abria o portão-boca verde e engolia-nos. A cama flutuava. A rua saiu-me da boca como uma fita de veludo, e deixou-se ficar qual serpentina. As casas abriram os olhos. O buraco da fechadura mostrou uma curva irónica como um ponto de interrogação" (p.11)
"A realidade afogara-se e a fantasia sufocava cada uma das horas do dia" (p.24).
Eis aí um livro (A Casa do Incesto, de Anaïs Nin) que se pode chamar de louco: o universo onírico dos sonhos e pesadelos. Ele é intrigante, denso, profundo e sombrio. Ele dói! E te deixa, num primeiro momento, meio sem saber o que pensar. Sendo o livro composto de sonhos e pesadelos, não há, obviamente, um comprometimento com aquilo que poderíamos chamar de nexo, embora não se possa dizer que ele não contém qualquer nexo. É um nexo louco rsr que certamente causará ao leitor um profundo estranhamento.
Creio que se possa dizer que é um livro que bem representaria aquilo que Franz Kafka diz numa carta a Oscar Pollak (1904). Leia-se aqui: http://mariliacortes.blogspot.com.br/2012/06/acho-que-so-devemos-ler-especie-de.html
O livro é tão estranho que já mexi e remexi nesse post algumas vezes, na tentativa de expressar mais claramente o estranhamento que me causou (well, tornar claro aquilo que é estranho é tarefa difícil). Titubeei mil vezes na escolha de alguns excertos para publicar.O livro perturba! Desperta sensações de prazer e dor ao estampar, por meio de sonhos e pesadelos, imagens belas e grotescas na mente do leitor. Como próprio do universo onírico, há nele uma mistura de fantasia, realidade, lucidez e loucura. Ademais, tem um Q de trágico e, como não poderia faltar (em se tratando de Anaïs Nin), algumas doses (sem gelo) de conteúdo erótico. Eu teria muitas coisas a dizer, mas chega de papo! Vamos ao que interessa: um pouco de Anaïs. Ao escrever, ela flutua... (e o que não lhe falta é fertilidade imaginativa e talento literário)!
“Lembro o meu primeiro nascimento na água. À minha volta a transparência sulfurosa e os meus ossos moviam-se como se fossem de borracha. Oscilo e flutuo nas pontas sem ossos dos meus pés atenta aos sons distantes, sons para além do alcance de ouvidos humanos, vejo coisas que são para além do alcance dos olhos. Nasço cheia das memórias dos sinos da Atlântida. Sempre à espera de sons perdidos e à procura de perdidas cores, permanecendo para sempre no limiar como alguém perturbado por recordações, corto o ar a passo largo com largos golpes de barbatana e nado através de quartos sem paredes" (p.3).
Salto algumas páginas!
"Parte-se o desejo que tinha esticado os nervos e cada nervo parece partir-se um por um, em cadeia, provocando incisões, onde ácido corria em vez de sangue. Torço-me dentro da minha própria vida, à procura de um caminho livre para as lágrimas fundidas, para dissolver o sofrimento num caldeirão de palavras onde todos os que procuram nomes para o seu próprio sofrimento pudessem cair. Que enorme caldeirão estou nesta altura a mexer; grandes bocarras estou agora a alimentar de ácido, palavras suficientemente amargas para queimarem toda a amargura" (p.22). Caramba!!! Imaginem só ácido em vez de sangue a circular pelas incisões decorrentes de um desejo que estica seus nervos ao ponto de arrebentá-los. Tudo se parte, o desejo, os nervos...
Salto de novo!
"Passo as esponjas brancas do conhecimento sobre as cordas dos meus nervos. À medida que passo para dentro do meu livro sou cortada por estilhaços, dentes de vidro e garrafas partidas, onde ainda há vestígios de cheiros de espuma e de perfume. Mais páginas foram acrescentadas ao livro, páginas que lembram o vaivém de um prisioneiro num espaço fechado. O que é que me é restrito dizer? Apenas a verdade disfarçada de conto de fadas e este é o conto onde todas as verdades têm olhar fixo como se estivessem por detrás de janelas de grades de um mosteiro. Com véus" (p.44).
Compreende-se bem por que a autora, ao contar seus sonhos e pesadelos, diz : "Há no meu olhar uma ruptura por onde a loucura sempre escoa. Debruça-te sobre mim na cabeceira da minha demência e depois deixa-me de pé sem muletas. Sou uma mulher louca a quem as casas piscam o olho e oferecem a hospitalidade dos seus ventres" (p.27).
(NIN, Anaïs. A Casa do Incesto. Tradução de Isabel Hub Faria. Porto: Assírio & Alvim, 1997)
domingo, janeiro 20, 2013
segunda-feira, dezembro 31, 2012
Um mundo para si mesmo
Enquanto os fogos de artifícios inundam os céus do novo ano, enquanto os champagnes, frisantes e espumantes transbordam as taças que farão tim-tim, encontro-me novamente na companhia de Rainer Maria Rilke. Neste momento, chamam-me à atenção o tom calmo e complacente de sua voz, bem como a profundidade, sabedoria e beleza poética das Cartas a um jovem poeta ─ obra sobre a qual já comentei e transcrevi alguns trechos aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2012/11/o-tic-tac-solitario-do-amor.html.
À corajosa pergunta dirigida a Rilke pelo jovem poeta, qual seja, “se os seus versos são bons”, Rilke revela ter sentido alguma insuficiência ao ler os versos do poeta, sem, no entanto, ser capaz de designá-la pelo nome (p.24). A partir dessa impressão, sucedem-se alguns conselhos de Rilke transcritos aqui em recortes que, a meu ver, são pertinentes a todos aqueles que aspiram à arte, seja por meio da poesia, da literatura, da música, da pintura, enfim, seja lá por qual meio for. Aliás, nem é propriamente preciso aspirar à arte. Como já mencionei no outro post, Rilke fala das profundezas da vida, e seus conselhos podem tocar qualquer ser racional sensível. Ao ler as Cartas de Rilke, cada um saberá apreciar aquilo que lhe diz respeito.
Paris, 17 de fevereiro de 1903
“O senhor olha para fora, e é isso sobretudo que não devia fazer agora. Ninguém pode aconselhá-lo e ajudá-lo, ninguém. Há apenas um meio. Volte-se para si mesmo. Investigue o motivo que o impele a escrever; comprove se ele estende as raízes até o ponto mais profundo do seu coração, confesse a si mesmo se o senhor morreria caso fosse proibido de escrever. Sobretudo isto: pergunte a si mesmo na hora mais silenciosa da madrugada: preciso escrever? Desenterre de si mesmo uma resposta profunda. E, se ela for afirmativa, se o senhor for capaz de enfrentar essa pergunta grave com um forte e simples ‘Preciso’, então construa sua vida de acordo com tal necessidade; sua vida tem de se tornar, até na hora mais indiferente e irrelevante, um sinal e um testemunho desse impulso (p.24-25) [...] E se, desse ato de se voltar para dentro de si, desse aprofundamento em seu próprio mundo, resultarem versos, o senhor não pensará em perguntar a alguém se são bons versos" (p.26).
[...]
"Uma obra de arte é boa quando surge de uma necessidade. É no modo como ela se origina que se encontra seu valor, não há nenhum outro critério. Por isso, prezado senhor, eu não saberia dar nenhum conselho senão este: voltar-se para si mesmo e sondar as profundezas de onde vem a sua vida; nessa fonte o senhor encontrará a resposta para a questão de saber se precisa criar. [...] Talvez ela revele que o senhor é chamado a ser um artista. Nesse caso, aceite sua sorte e a suporte, com seu peso e sua grandeza, sem perguntar nunca pela recompensa que poderia vir de fora. Pois o criador tem de ser um mundo para si mesmo e encontrar tudo em si mesmo e na natureza, da qual se aproximou” (p.26-27).
“Mas talvez, depois desse mergulho em si mesmo e em sua solidão, o senhor tenha de renunciar a ser um poeta (basta, como foi dito, sentir que seria possível viver sem escrever para não ter mais o direito de fazê-lo). Seja como for, sua vida encontrará a partir dele caminhos próprios” (p.27). [...] Por fim, gostaria apenas de aconselhá-lo a passar com serenidade e seriedade pelo período de seu desenvolvimento. Não há meio pior de atrapalhar esse desenvolvimento do que olhar para fora e esperar que venha de fora uma resposta para questões que apenas seu sentimento íntimo talvez possa responder, na hora mais tranquila" [p.27-28].
Viareggio perto de Pisa, 5 de abril de 1903
“Pois, no fundo, e justamente quanto aos assuntos mais profundos e mais importantes, estamos indizivelmente sozinhos, de modo que muita coisa precisa acontecer para que um de nós seja capaz de aconselhar ou mesmo ajudar o outro, muitos êxitos são necessários, toda uma constelação de acontecimentos tem de se alinhar para que isso dê certo alguma vez (p.29-30). [...] Assim, se o senhor seguir seu caminho à beira do que é grandioso, pergunte-se também se esse modo de compreender o mundo corresponde a uma necessidade do seu ser” (p.30).
Viareggio perto de Pisa, 23 de abril de 1903
[...] “Obras de arte são de uma solidão infinita...” (p.35). “Ser artista significa: não calcular nem contar; amadurecer como uma árvore que não apressa a sua seiva e permanece confiante durante as tempestades da primavera, sem o temor de que o verão não possa vir depois. Ele vem apesar de tudo. Mas só chega para os pacientes, para os que estão ali como se a eternidade se encontrasse diante deles, com toda a amplidão e serenidade, sem preocupação alguma. Aprendo isto diariamente, aprendo em meio a dores às quais sou grato: a paciência é tudo” (p.36)!
Rilke, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Pedro Sussekind. Porto Alegre: L&PM, 2010.
[escultura de Camile Claudel: The Danaid, 1885]
quarta-feira, dezembro 05, 2012
Artigos do III Encontro Hume
Encontra-se disponível a primeira edição comemorativa aos 300 anos de David Hume publicada pela Revista Controvérsia (2011/3). Trata-se de uma edição especial que reúne alguns artigos apresentados no III Encontro Hume, ocorrido na UNISINOS em 11-13/05/2011. Essa edição conta com os artigos de André Luiz Olivier da Silva, Fábio Augusto Guzzo, Franco Nero Antunes Soares, José Oscar de Almeida Marques, Marco Antonio Oliveira de Azevedo e Marília Côrtes de Ferraz, e pode ser acessada diretamente no endereço http://revistas.unisinos.br/index.php/controversia/article/view/5234
Em breve será publicada a próxima edição (2012/1) contendo os demais artigos aprovados no III Encontro. No que se refere ao meu artigo, eis o resumo:
A voz articulada proveniente das nuvens e a biblioteca natural de Cleanthes nos Diálogos sobre a Religião Natural de Hume
RESUMO: Meu objetivo neste artigo visa a um exame dos curiosos exemplos que o personagem Cleanthes apresenta na parte III dos Diálogos Sobre a Religião Natural de Hume, a saber, i) o da voz articulada proveniente das nuvens (D 3 §2: 48) e, ii) o da biblioteca natural repleta de livros que se perpetuam da mesma maneira que os animais e vegetais, isto é, por descendência e propagação (D 3 §4: 49). Tais exemplos são, conforme veremos, experimentos mentais que Cleanthes oferece como réplica às primeiras objeções que Philo apresenta ao argumento do desígnio. Entre os comentadores de Hume, William Morris os toma como bizarros, irrelevantes e inconsistentes com a metodologia experimental de Cleanthes. E. Rabbitte afirma que os exemplos mostram que Cleanthes perdeu o ponto central da crítica de Philo, e se mostra simpático à interpretação de Kemp Smith segundo a qual o primeiro exemplo serve para ilustrar o fracasso de Cleanthes em reconhecer o ponto e a força da crítica de Philo à analogia implicada no argumento do desígnio, e o segundo para preparar o caminho de Philo para entrar com sua artilharia de contra-argumentos às teses de Cleanthes. Keith Yandell, por sua vez, defende que a estratégia de Cleanthes quanto a estes exemplos parece bastante apropriada. Diante deste cenário de interpretações diversas, além de tentar esclarecer o significado e relação desses exemplos com a crítica de Philo ao argumento do desígnio, pretendo mostrar que eles cumprem um papel crucial na estratégia argumentativa de Philo e Hume nos Diálogos como um todo, conforme Smith e Yandell sugerem.
Palavras-chave: religião natural, argumento do desígnio, crítica, analogia
quarta-feira, novembro 28, 2012
Amor Fati
O título do post, amor fati, refere-se à expressão latina "amor ao destino" ou "amor ao fado". Significa, de uma perspectiva nietzscheana, a aceitação integral do destino, mesmo em seus aspectos mais trágicos, cruéis e dolorosos. Eis o poema:
Importuna Razão, não me persigas;
Cesse a ríspida voz que em vão murmura;
Se a lei de Amor, se a força da ternura
Nem domas, nem contrastas, nem mitigas;
Se acusas os mortais, e os não abrigas,
Se (conhecendo o mal) não dás a cura,
Deixa-me apreciar minha loucura,
Importuna Razão, não me persigas.
É teu fim, seu projecto encher de pejo
Esta alma, frágil vítima daquela
Que, injusta e vária, noutros laços vejo.
Queres que fuja de Marília bela,
Que a maldiga, a desdenhe; e o meu desejo
É carpir, delirar, morrer por ela.
Há quem rejeite as fortes paixões em nome de uma alma tranquila e bem equilibrada. Essa é a receita de felicidade dos sábios ─ uma receita razoável (e sábia). De fato, quando a paixão chega às raias da loucura e do dilaceramento, tendemos a evocar as mais retas e sóbrias razões para extirpá-la.
Ora, mas como esperar que a reta razão tenha algum poder sobre nós se estamos subjugados aos movimentos violentos de nossas paixões? Ah... isso requer um lento, longo e doloroso exercício de persuasão e autocontrole. A dificuldade é: sob turbulentas paixões, somos naturalmente fracos e insensatos. O "murmúrio da razão se mostra vão", como diz o poèt maudit.
Subjugado, tal como um vassalo, à impiedosa lei do amor e da ternura, Bocage deprecia os mecanismos racionais e, num ato de temeridade blasfematória, esconjura a razão a calar sua ríspida voz. À mercê do amor e da amada, ele clama à razão deixá-lo apreciar sua loucura: prefere arrancar os cabelos e delirar... delirar... delirar... até se entregar, de uma vez por todas, à total consumação de si próprio. Bocage não quer maldizer Marília, não quer desdenhá-la, tampouco fugir dela. O que ele quer mesmo é "morrer por ela". E é culpado, dizem alguns, de escolher não resistir a seu amor fatal. Pobre Bocage, pobre Marília, pobre raça de efêmeros mortais!
[marília côrtes | novembro |2012]
quarta-feira, novembro 21, 2012
Agir bem para bem viver
“... a prudência é o princípio e o supremo bem,
razão pela qual ela é mais preciosa do que a própria filosofia;
é dela que originaram todas as demais virtudes;
é ela que nos ensina que não existe vida feliz sem prudência, beleza e justiça,
e que não existe prudência beleza e justiça sem felicidade” (Epicuro. Carta sobre a felicidade, p. 45).
Aristóteles, por sua vez, ao procurar “o mais alto de todos os bens que se podem alcançar pela ação” diz, na Ética a Nicômaco, que “quase todas as pessoas estão de acordo quanto ao fato de que esse bem mais alto é a felicidade", pois “identificam o bem viver e o bem agir com o ser feliz”; mas adverte que eles diferem “quanto ao que seja a felicidade” (EN I 4: 1095a 20).
Se quisermos saltar séculos à frente, para o período humanista da filosofia moderna, podemos encontrar, nos Ensaios de Montaigne, afirmações semelhantes: "A meu ver, a felicidade do homem consiste em bem viver" (Essays II) e “não há nada mais belo e mais legítimo do que o homem agir bem e devidamente” (Essays III).
E se remontarmos mais uma vez à antiguidade, encontraremos na Carta sobre a felicidade de Epicuro, além da epígrafe acima, a afirmação segundo a qual “as virtudes estão intimamente ligadas à felicidade, e a felicidade é inseparável delas” (Epicuro. Carta sobre a felicidade, p. 47).
Sêneca, dois séculos após Epicuro, por seu turno, declara que “a vida feliz apoia-se, estável e imutavelmente, sobre a retidão e certeza do juízo”, e que é “feliz quem confia à razão a gerência de toda a sua vida” (Sêneca. A Vida Feliz, p. 30-31).
Em sua apresentação à obra de Sêneca, Diderot observa que, de acordo com o estoico, “para alcançar a felicidade é necessária a liberdade: a felicidade não é para quem possui outros senhores além do próprio dever. Mas [pergunta Diderot], não será o dever um patrão arrogante? E na condição de serviência que importa a qual senhor se sirva? Importa demasiado: o dever é um senhor do qual não se pode libertar sob pena de tornar-se infeliz” (Sêneca. A Vida Feliz, introdução, p. 12).
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segunda-feira, novembro 12, 2012
O tic-tac solitário do amor
Este é um daqueles momentos em que escrevo para evitar que uma granada exploda em meu peito. Yesterday, passei horas e horas a ler e escrever sobre as Cartas a um jovem poeta de Rainer Maria-Rilke [1875-1926]. Elas são de uma beleza e profundidade abissais. Tais Cartas (publicadas em 1929, três anos após a morte de Rilke) foram escritas originalmente como respostas às inquietações de um jovem, Franz Xaver Kappus, que ambicionava ser poeta. Rilke, após algumas observações prévias, responde à primeira carta começando do seguinte modo: “O senhor me pergunta se os seus versos são bons. [...] Agora (como me deu licença de aconselhá-lo) ...”
Sucedem-se daí dez cartas repletas de considerações sobre vários temas, dentre os quais, a arte a crítica o artista e o ato de criar; a quietude a solidão o silêncio e a grandeza; o amor o sexo e o instinto; a felicidade a beleza e a tristeza; a infância a inquietude do jovem e a maturidade; a coragem a covardia e a dúvida; a existência, Deus e a morte. What else?
Rilke fala das profundezas da vida com toda a densidade poética que o caracteriza. Ao tocar nesses temas, Rilke oferece diversos conselhos a seu jovem interlocutor. Estes vão muito além da dimensão pessoal e interpessoal de suas Cartas ─ tocam qualquer ser racional sensível. E tocam ainda mais, creio eu, aqueles seres racionais sensíveis cujos corações ardem e explodem de amor.
E por falar em amor, transcrevo abaixo trechos da sétima carta, escrita em Roma (no dia 14 de maio de 1904). A propósito, precisamente 58 anos antes do exato dia de meu nascimento. Ao escrever esta carta Rilke tinha apenas 29 anos. Nela, ele estabelece uma indissociável relação entre amor e solidão. Pois bem...
“Não se deixe enganar em sua solidão só porque há algo no senhor que deseja sair dela. Justamente esse desejo o ajudará, caso o senhor o utilize com calma e ponderação, como um instrumento para estender sua solidão por um território mais vasto. As pessoas (com o auxílio de convenções) resolveram tudo da maneira mais fácil e pelo lado mais fácil da facilidade; contudo é evidente que precisamos nos aferrar ao que é difícil; tudo o que vive se aferra ao difícil, tudo na natureza cresce e se defende a seu modo e se constitui em algo próprio a partir de si, procurando existir a qualquer preço e contra toda resistência. Sabemos muito pouco, mas que temos de nos aferrar ao difícil é uma certeza que não nos abandonará. É bom ser solitário, pois a solidão é difícil; o fato de uma coisa ser difícil tem de ser mais um motivo para fazê-la.”
“Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e unir-se com uma outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?). O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmo (‘escutar e bater dia e noite’), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado" (Rilke 2010: 64-66). Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac...
“Amar também é bom: pois o amor é difícil. Ter amor, de uma pessoa por outra, talvez seja a coisa mais difícil que nos foi dada, a mais extrema, a derradeira prova e provação, o trabalho para o qual qualquer outro trabalho é apenas uma preparação. Por isso as pessoas jovens, iniciantes em tudo, ainda não podem amar: precisam aprender o amor. Com todo o seu ser, com todas as forças reunidas em seu coração solitário, receoso e acelerado, os jovens precisam aprender a amar. Mas o tempo de aprendizado é sempre um longo período de exclusão, de modo que o amor é por muito tempo, ao longo da vida, solidão, isolamento intenso e profundo para quem ama. A princípio o amor não é nada do que se chama ser absorvido, entregar-se e unir-se com uma outra pessoa. (Pois o que seria uma união do que não é esclarecido, do inacabado, do desordenado?). O amor constitui uma oportunidade sublime para o indivíduo amadurecer, tornar-se algo, tornar-se um mundo, tornar-se um mundo para si mesmo por causa de uma outra pessoa; é uma grande exigência para o indivíduo, uma exigência irrestrita, algo que o destaca e o convoca para longe. Apenas neste sentido, como tarefa de trabalhar em si mesmo (‘escutar e bater dia e noite’), as pessoas jovens deveriam fazer uso do amor que lhes é dado" (Rilke 2010: 64-66). Tic-tac-tic-tac-tic-tac-tic-tac...
Rilke, Rainer Maria. Cartas a um jovem poeta. Tradução de Pedro Sussekind. Porto Alegre: L&PM, 2010.
[Saatchi Online Artist Patrick Palmer; Painting, "Crying Lightly"].
segunda-feira, outubro 29, 2012
Adeus à racionalidade
Há alguns anos publiquei num post intitulado Operações do Universo Mental uma passagem da obra de Hume, intitulada Investigação sobre o Entendimento Humano, na qual ele chama a atenção para os poderes e limites do pensamento humano. Vou repetir o que escrevi ali para alcançar o ponto que me interessa aqui.
Diz Hume: “Nada, à primeira vista, pode parecer mais ilimitado que o pensamento humano, que não apenas escapa a todo poder e autoridade dos homens, mas está livre até mesmo dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar as mais incongruentes formas e aparências não custa à imaginação mais esforço do que conceber os objetos mais naturais e familiares. E enquanto o corpo está confinado a um único planeta, sobre o qual rasteja com dor e dificuldade, o pensamento pode instantaneamente transportar-nos às mais distantes regiões do universo, ou mesmo para além do universo, até o caos desmedido onde se supõe que a natureza jaz em total confusão. Aquilo que nunca foi visto, ou de que nunca se ouviu falar, pode ainda assim ser concebido; e nada há que esteja fora do alcance do pensamento, exceto aquilo que implica uma absoluta contradição” (IEH 2 § 4: 25).
Creio que essa passagem pode ser explicada do seguinte modo: nossa mente, “constituída unicamente de percepções sucessivas” (TNH 1.4.6.4), tem em seu aparato cognitivo duas faculdades fundamentais: a da imaginação e a da memória. Com elas, a mente opera da seguinte forma: copia as ideias fornecidas pelos sentidos, armazena-as na memória - que funciona como um arquivo de dados (que se oferecem à mente), no caso aqui, como um arquivo de ideias. Daí a faculdade da imaginação serve-se dessas ideias armazenadas (e também daquelas que a mente constantemente copia das impressões e sensações), estabelecendo certas relações que, num jogo de reflexões e/ou associações, mistura, combina, separa, divide, transpõe, reduz ou estende essas ideias que, por sua vez, dão origem a novas impressões e ideias. Assim, mas evidentemente não de maneira tão simples, Hume nos mostra como a mente opera na aquisição do conhecimento das coisas e do mundo e, ainda, como ela ultrapassa “os limites da natureza e realidade” criando deuses, formando monstros e, se se quiser, as mais diversas barbaridades.
Pois bem, chamo agora a atenção para a afirmação de que não existe “nada que esteja fora do alcance do pensamento, exceto aquilo que implica uma absoluta contradição” (IEH 2 § 4: 25). Ora, como assim? O que é que implica absoluta contradição e que, por isso, está irremediável e decididamente fora do pensamento humano? Um exemplo esclarecedor (sarcástico e muito bem humorado) pode ser encontrado num livro sui generis intitulado: O porco filósofo: 100 experiências de pensamento para a vida cotidiana. A experiência de pensamento que vem aqui ao encontro dessa passagem é um diálogo entre Deus e um filósofo, cujo título é O círculo quadrado. Vamos lá:
“E Deus falou para o filósofo:
- Eu sou o Senhor teu deus, e sou Todo-poderoso. Não há coisa alguma que você possa dizer que não possa ser feita. É fácil!
E o filósofo falou para o Senhor:
- OK, oh, poderoso. Transforme tudo que é azul em vermelho e tudo o que é vermelho em azul.
O Senhor disse:
- Que se faça a inversão de cores! - E a inversão de cores foi feita, deixando completamente confusos os porta-bandeiras da Polônia e de São Marino.
Então o filósofo falou ao Senhor:
- Se quer me impressionar, faça um círculo quadrado.
E o Senhor falou:
- Faça-se um círculo quadrado. - E foi feito.
Mas o filósofo protestou.
- Isso não é um círculo quadrado, isso é um quadrado.
O Senhor ficou com raiva.
- Se eu digo que é um círculo, é um círculo. Cuidado com essa sua impertinência, ou posso parti-lo em pedacinhos.
Mas o filósofo insistiu.
- Eu não pedi para mudar o significado da palavra ‘círculo’ só para que ela passasse a significar ‘quadrado’. Eu queria um verdadeiro círculo quadrado. Admita... isso é algo que não pode fazer.
O Senhor pensou um pouco, então resolveu responder lançando sua vingança poderosa sobre a cabeça do filósofo metido a esperto” (Baggini: 2006: 77).
Conforme explica o autor desse diálogo zombeteiro (e que, para alguns, certamente soará profano), “o problema com coisas como círculos quadrados é que são logicamente impossíveis. Como um círculo é por definição uma forma de um lado, e o quadrado de quatro, e uma forma de quatro lados e de um lado é uma contradição de base [eu diria contradição nos/dos ou em termos], então um círculo quadrado é uma contradição de base e é impossível em todos os mundos possíveis. A racionalidade exige isso. Então, se quisermos dizer que a onipotência de Deus significa que ele pode criar formas como quadrados redondos”, teremos necessariamente de dar “adeus à racionalidade” (Baggini: 2006: 78).
Referências das obras aqui citadas:
HUME. Uma Investigação Sobre o Entendimento Humano (IEH). Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Unesp, 1999. HUME. Tratado da Natureza Humana (TNH). Tradução de Déborah Danowski. São Paulo: Unesp, 2001. BAGGINI, Julian. O porco filósofo: 100 experiências de pensamento para a vida cotidiana. Tradução de Edmundo Barreiros. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2006. CHAGALL, Marc. Il cantico dei cantici IV (1958).
sexta-feira, outubro 19, 2012
A ruína dos meus castelos
Perdi meus fantásticos castelos
Como névoa distante que se esfuma
Quis vencer, quis lutar, quis defendê-los
Quebrei as minhas lanças uma a uma!
Perdi minhas galeras entre os gelos
Que se afundaram sobre um mar de bruma
- Tantos escolhos! Quem podia vê-los? -
Deitei-me ao mar e não salvei nenhuma!
Perdi a minha taça, o meu anel,
A minha cota de aço, o meu corcel,
Perdi meu elmo de ouro e pedrarias
Sobem-me aos lábios súplicas estranhas
Sobre o meu coração pesam montanhas
Olho assombrada as minhas mãos vazias...
Espanca, Florbela. A mensageira das violetas: antologia: Seleção e edição de Sergio Faraco. Porto Alegre: L&PM, 1999 (Pocket)
[A View of Crookston Castle]
[Sidney Richard Percy - (1821-1886)]
quinta-feira, setembro 20, 2012
Tormenta
(Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Joana Angélica d'Avila. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.281)
(arte de Mario Sanchez Nevado)
terça-feira, setembro 18, 2012
Filosofia para Diletantes
Eis um título que, por um lado, considero perfeito para um curso voltado àqueles que desejam estudar filosofia por amor à sabedoria. Aliás, amor à sabedoria vem diretamente ao encontro da origem da palavra filosofia, malgrado se possa dizer que esta palavra tomou significados diversos, de acordo com as teorias dos diversos filósofos.
Como se sabe, o diletante é aquele que tem interesse e se dedica a uma arte ou ofício, digamos assim, como amador, quer dizer, por amor e deleite, e não por ofício ou obrigação.
Nesse sentido, o título se ajusta perfeitamente à proposta inicial deste curso, qual seja, a de oferecer um programa extra-acadêmico dirigido a um público que deseja exercer a atividade filosófica não por obrigação curricular, mas simplesmente por prazer e amor aos estudos.
Eu disse por um lado... por quê? Porque, de outro, o título pode suscitar um sentido pejorativo que o termo "diletante", sinônimo de amador, tomou na linguagem ordinária - a de que o diletante não leva as coisas muito a sério. Nada a ver, pois do fato de que alguém possa exercer uma atividade apenas por amor e prazer não se segue que esse alguém é descuidado ou não leva as coisas (no caso aqui os estudos) a sério. Uma pessoa pode muito bem se dedicar aos estudos, a qualquer arte ou ofício, de modo diligente, como um autoditada, por exemplo. Algumas pessoas fazem isso naturalmente, outras, talvez, necessitem aprender a estudar sozinhas, ou seja, precisam de um empurrãozinho, de alguém que as introduza no universo filosófico e as oriente.
Desde que comecei a estudar filosofia, há quatorze anos (fiz e faço isso cumprindo as exigências da academia, mas também como diletante, no sentido original da palavra, ou seja, por paixão e deleite), acredito que existe um tipo de público que adoraria estudar filosofia, mas que não está nem um pouco disposto a calçar o "sapato apertado" da erudição acadêmica. Esse público, obviamente, não se pretende graduado, mestre, doutor ou pós-doutor em filosofia, tampouco deseja ser professor de filosofia. Todavia, ele tem sede, curiosidade, interesse, vontade e desejo de conhecer, ainda que não com o rigor da academia, o universo da filosofia.
Mas como satisfazer a esse público se levarmos em conta a (por certo controversa) distância que (dizem) separa os filósofos acadêmicos dos mortais comuns? (Ops... eles não são mortais comuns?) Será mesmo possível diminuir esse suposto abismo? Qual seria a ponte que tornaria possível ascender ao conhecimento filosófico? Algo me diz que grande parte dos acadêmicos de plantão pensa que isso não seria possível fora dos altos muros da academia. E embora eu seja também uma acadêmica de plantão, estranhamente (e a contragosto rsr) mortal e comum (sorry, não resisti), penso que seria sim possível, e só há uma maneira d'eu me certificar disso: colocando-me like a bridge over troubled water.
Pensando em atender a este suposto público (que acredito ser um público seleto, pois não creio que o estudo da filosofia possa atrair um grande público); e pensando também em satisfazer a minha necessidade de falar sobre filosofia, estruturei (numa parceria com a Aldeia Coworking Londrina), o primeiro módulo de um curso de filosofia para diletantes.
Por meio da leitura e comentários de textos de alguns grandes filósofos, historiadores e intérpretes da filosofia, o programa pretende oferecer uma visão introdutória e panorâmica da história da filosofia, a partir da origem e do significado de conceitos fundamentais do pensamento ocidental - conceitos que atravessaram séculos e ainda hoje permanecem atuais.
Eis o cartaz e o programa deste primeiro módulo (que começa amanhã, às 20 hs):
MÓDULO I
1. Introdução (quarta-feira: 19/09)
1.1. Visão introdutória e panorâmica da história da filosofia
1.2. Divisão dos períodos e áreas da filosofia
1.3. Principais autores e temas
1.4. Perspectivas e correntes filosóficas
2. Gênese, natureza e desenvolvimento da filosofia e dos problemas especulativos da antiguidade (quarta-feira: 26/09)
2.1. As formas da vida espiritual grega que prepararam o nascimento da filosofia
2.2. Religião, misticismo e filosofia
2.3. Problemas e características da filosofia antiga
2.4. Os pré-socráticos: os problemas da physis, do ser e do cosmo
(textos de referência: REALE, Giovanni. Pré-Socráticos e Orfismo. História da Filosofia Grega e Romana. Vol.I Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2009.
BORNHEIM, Gerd A. (org.). Os Filósofos Pré-Socráticos (15a. ed.). São Paulo: Cultrix, 2010.
KENNY, Anthony. Uma Nova História da Filosofia Ocidental. Vol. I (Filosofia Antiga). Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Loyola, 2011).
3. Platão (quarta-feira: 03/10)
3.1. Conceitos fundamentais da teoria da ideias
3.2. Características distintivas da metafísica de Platão
3.3. A compreensão de conhecimento
3.4. A imortalidade da alma
4. Platão (quarta-feira: 10/10)
4.1. A Justiça
4.2. O Estado justo
4.3. Justiça e concepção de alma
4.4. A analogia entre a alma e a polis
(textos de referência: PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999 e PLATÃO. Fédon. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Abril Cultural, 1972).
[Pintura de Catherine Chauloux]
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quarta-feira, setembro 12, 2012
A leitura dos leitores
"Um romance é como o arco, e a alma do leitor é como o corpo do violino que emite o som."
Stendhal. The life of Henry Brulard. Tradução de John Sturrock. Nova York, 2002, p.184. In: Gianetti, Eduardo. O livro das citações. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.22.
segunda-feira, julho 30, 2012
Das profunduras da tua existência
O
Poço
Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.
Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?
Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.
Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.
Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.
Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.
(Pablo Neruda)
Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.
Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?
Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.
Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.
Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.
Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.
(Pablo Neruda)
sábado, julho 21, 2012
Rendido
Outro dia, ao tomar um café num café, ouvi por acaso duas amigas conversando: uma delas deixava escorrer pela boca as seguintes palavras:
- ah... ele me mandou uma mensagem na madrugada, todo apaixonado, de quem não resistiu...
A outra, com um piscar de asas de borboleta, perguntou cheia de curiosidade:
- E o que dizia a mensagem?
- Ah... (ela respondeu) tipo assim: boa nooite... e blablablá...
Depois, com ar de deboche, acrescentou:
- E eu? nem respondi, tava morrendo de sono! Mas logo cedo liguei pra ele e tirei um sarrinho malicioso. Eu disse: Ahammm... pensando em mim na madrugada, né? e riu... toda satisfeita.
Imediatamente me lembrei daquele observação de dom Rigoberto, todo encantado, seduzido e rendido, à sua voluptuosa esposa Lucrécia:
"Você o manejava com o dedo mindinho"
Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Ana Angélica d'Avila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.46.
segunda-feira, julho 16, 2012
quinta-feira, junho 28, 2012
Para quebrar o mar de gelo
[Mark Ryden]
"Acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, por que o estamos lendo? ... nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, como a morte de alguém a quem amávamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para uma floresta longe de todos. Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós. É nisso que eu creio."
[Trecho da carta escrita por Franz Kafka a Oscar Pollak (1904)]
quarta-feira, junho 20, 2012
In versos
[ Art by Dean Mcdowell ]
queria um verso
que versasse
sobre meu universo
esse verso único
que atravessa
meu coração
transverso.
[marília côrtes / 2012]
segunda-feira, maio 07, 2012
Devagar a divagar
Outro dia uma amiga minha me definiu como um mar de águas
plácidas, isto é, um mar sem ondas. Achei engraçado, pois dentro de mim, como
diria Stendhal, “minha alma é um fogo que sofre se não arde”.
Ela fez referência a essa minha placidez com base (segundo
ela, e eu concordo em parte) no modo como eu lido, em geral, com as pessoas.
Exclui-se aqui o modo como eu lido com minhas filhas, para as quais, segundo
elas mesmas (e eu concordo em parte), sou uma mãe dramática, neurótica e
estressada.
Essa minha amiga e mais algumas outras dizem que um traço
característico meu é ser emocionalmente muito equilibrada e bem resolvida.
Achei engraçado de novo, pois volta e meia, enredada em dilemas, contradições e
paradoxos, sinto que meu coração é uma granada cujo
pino está prestes a saltar, e eu, tragicamente, prestes a explodir. Por
paixões, tais como as do amor, do medo, da cólera, da audácia, do orgulho, da
esperança ou desespero, sou capaz de transitar do céu ao inferno e do inferno
ao céu em poucos segundos.
Another day, uma outra amiga me disse que nasci plugada.
Esta me traduz como uma mulher agitada, capaz de ferver, fazer e coordenar
várias coisas ao mesmo tempo. Mas embora eu me considere uma pessoa que
funciona bem (sob pressão, of course), ninguém há de estranhar se me encontrar
devagar... devagar... a divagar... divagar...
Por essas e outras, talvez não seja à toa que amo a
filosofia, a literatura e a poesia; que me apaixono por princípios, palavras, ideias,
gestos, imagens, expressões e movimentos; e que adoro a música, a pintura, o
cinema e, numa palavra, a arte. No fundo, acho que sou uma esteta, porém, sem
ser propriamente uma artista.
[Arte by Edward Zentshik]
sábado, abril 14, 2012
Amortevidavidamorte
Há tempos que não escrevo aqui.
Ensaiei muitas vezes, travei, desisti,
and now
"aqui estou eu tentando viver, ou melhor, tentando ensinar a morte dentro de mim a viver"
Jean Cocteau
[1889-1963]
Bust of Jean Cocteau in Villefranch-sur-Mer
Sculptor Jacques Lipchitz
[1891-1973]
Bust of Jean Cocteau in Villefranch-sur-Mer
Sculptor Jacques Lipchitz
[1891-1973]
sexta-feira, janeiro 06, 2012
Diligência como um poder da alma
Sem querer ir muito fundo na questão (pois ela não
caberia nesse tempinho que tenho agora, tampouco no espaço desse mero post), sempre que me debato com as
dificuldades de levar a cabo a árdua tarefa de concluir minha tese, lembro de
uma passagem em que Philo (o personagem cético dos Diálogos de Hume), ao discorrer sobre as quatro circunstâncias das
quais “dependem todos ou a maior parte dos males que afligem as criaturas
sensíveis” (D 11 §§ 5-13: 107: 113), afirma que, para remediar esses males, ele
não exigiria que os seres humanos possuíssem as asas da águia, a velocidade do
cervo, a força do boi, as garras do leão, a couraça do crocodilo ou do
rinoceronte; e muito menos a sabedoria de um anjo ou querubim. Ele diz que
ficaria contente em escolher a intensificação de um único poder ou faculdade de
suas almas, ou seja, uma maior propensão para a operosidade e o trabalho, uma
motivação e atividade mental mais vigorosa, e uma inclinação mais constante
para o desempenho e a concentração (D 11 § 10: 110).
Caramba! Eu também ficaria bem contente. Sinto que o maior demônio da produção acadêmica é a inclinação natural à
dispersão da mente (motivos não nos faltam), e que um poder maior de
concentração seria uma verdadeira dádiva para as mentes daqueles que se
encontram diante da necessidade de realizar tal tarefa.
[Hume, David. Dialogues Concerning Natural Religion. Edited by J. C. A. Gaskin. New York. Oxford University Press, 2008]
quarta-feira, janeiro 04, 2012
A leitora
tem hora
que só a literatura me consola
não tem beijinho
não tem abracinho
tampouco filosofia
[ Federico Faruffini (1833-1869). A Leitora (1864) - óleo sobre tela]
que só a literatura me consola
não tem beijinho
não tem abracinho
tampouco filosofia
[ Federico Faruffini (1833-1869). A Leitora (1864) - óleo sobre tela]
quinta-feira, dezembro 15, 2011
Incita-me
"É a sua vez, agora, de empunhar este pesado remo e esforçar-se para defender suas sutilezas filosóficas contra os ditames da simples razão e experiência" (D X # 37, p.42)
(Hume. Diálogos sobre a Religião Natural. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Martins Fontes, 1992).
[imagem: Monet. Rock Arch West of Etretat - The Manneport (1883)
quarta-feira, novembro 23, 2011
A debilidade, cegueira e estreiteza da razão humana
Putz... tá difícil!
Penso, estudo, penso, penso, estudo, penso, e o máximo que consigo produzir são dúvidas, incertezas e infindáveis contradições...
[inspirada em Hume, David | Dialogues Concerning Natural Religion | Edited by J. C. A. Gaskin | New York | Oxford University Press | 2008]
[ O Pensador | Auguste Rodin | 1840-1917 ]
quinta-feira, outubro 20, 2011
Ah... Rigoberto Rigoberto Rigoberto...
O FETICHISMO DOS NOMES
Tenho o fetichismo
dos nomes e o teu me empolga e me enlouquece. Rigoberto! É viril, é elegante, é
brônzeo, é italiano. Quando o pronuncio, em voz baixa, de mim para mim, uma
cobrinha me percorre as costas e se me gelam os calcanhares rosados que Deus me
deu (ou se preferires, descrente, a Natureza). Rigoberto! Risonha cascata de
águas transparentes. Rigoberto! Amarela alegria de pintassilgo celebrando o
sol. Onde estiveres, estou eu. Quietinha e apaixonada, bem ali. Assinas uma
letra de câmbio, uma conta a pagar, com teu nome tetrassílabo? Eu sou o
pontinho em cima do i, o rabinho do g e o chifrinho do t. A manchinha de tinta
que fica no teu polegar. Te alivias do calor com um copinho de água mineral?
Eu, a bolhinha que te refresca o paladar e o cubinho de gelo que arrepia tua
linguinha de víbora. Eu, Rigoberto, sou o cordão dos teus sapatos e a pastilha
de extrato de ameixa que tomas a cada noite contra a constipação. Como sei esse
detalhe de tua vida gastrenterológica? Quem ama sabe, e tem por sabedoria tudo
o que concerne ao seu amor, sacralizando o detalhe mais trivial da pessoa. Diante
de teu retrato, eu me persigo e rezo. Para conhecer tua vida tenho teu nome, a
numerologia dos cabalistas e as artes divinatórias de Nostradamus. Quem sou?
Alguém que te ama como a espuma à onda e a nuvem ao rosicler. Procura, procura
e encontra-me, amado.
Tua, tua, tua
A fetichista dos nomes
Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.22.
quinta-feira, setembro 29, 2011
Fugitivamente
"Ele sente na face o contato da sua mão, mais exatamente o contato da ponta de três
dedos, e é uma sensação de frio, como o toque de uma rã. Suas carícias sempre
eram lentas, calmas, parecia que queriam dilatar o tempo. Ao passo que aqueles
três dedos pousados fugitivamente em sua face não eram uma carícia, mas um
apelo. Como se aquela que é colhida por uma tempestade, por uma onda que a
carrega, só dispusesse de um gesto fugaz para dizer: 'E, no entanto, estive
aqui! Passei por aqui! Apesar de tudo o que vai acontecer, não me esqueça.'"
.................................................
(KUNDERA, Milan. A Identidade. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p.109).
.............................
Ele: Jean-Marc.
Ela: Chantal.
💔
quinta-feira, setembro 08, 2011
Imperativos do sedento viajante
Eis abaixo um excerto de Os cadernos de dom Rigoberto, de Mario Vargas Llosa, prêmio nobel de literatura (2011). Um romance sobre a arte de amar em suas mais variadas e profundas formas: erotismo, beleza e sensualidade de arrancar o fôlego! Um deleite para os amantes do amor, dos prazeres, da sofisticação e beleza literárias.
O título deste excerto é o que intitula o post: Imperativos do sedento viajante, e a obra de Klimt não se encontra aí por acaso.
"Esta é uma
ordem do teu escravo, amada.
Diante do espelho, sobre uma cama ou
sofá engalanado com sedas da Índia pintadas à mão ou batique indonésio de olhos
circulares, te reclinarás de costas, despida, e teus longos cabelos negros
soltarás.
Levantarás a perna esquerda
recolhida até formar um ângulo. Apoiarás a cabeça em teu ombro direito,
entreabrirás os lábios e, amassando com a destra uma ponta do lençol, baixarás
as pálpebras, simulando dormir. Fantasiarás que um rio amarelo de asas de
borboleta e estrelas em pó desce do céu sobre ti e te fende.
Quem és?
A Dânae de Gustav Klimt, naturalmente. Não importa quem o inspirou
para pintar esse óleo (1907-1908), o mestre te antecipou, te adivinhou, te viu,
tal como virias ao mundo e serias, do outro lado do oceano, meio século depois.
Acreditava recriar com seus pincéis uma dama da mitologia helênica e eras tu
que ele precriava, beleza futura, esposa amante, madrasta sensual.
Só tu, entre todas as mulheres, como
nessa fantasia plástica, reúnes a pulcra perfeição do anjo, sua inocência e sua
pureza, a um corpo atrevidamente terreno. Hoje, prescindo da firmeza de teus
seios e da beligerância de teus quadris para prestar uma homenagem exclusiva à
consistência de tuas coxas, templo de colunas onde eu quisera ser atado e
açoitado por me comportar mal.
Tu inteira celebras meus sentidos.
Pele de veludo, saliva de aloé,
delicada dama de cotovelos e joelhos incorruptíveis, desperta, olha-te no
espelho, diga a ti mesma: ‘Sou reverenciada e admirada como nenhuma outra, sou
lembrada com saudade e desejada como as miragens líquidas dos desertos pelo
sedento viajante.’
Lucrecia-Dânae, Dânae-Lucrecia.
Esta é uma súplica do teu amo,
escrava."
Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, pp. 37-38.
[imagem: Danaë (1907), óleo sobre tela; Gustav Klimt]
domingo, setembro 04, 2011
Amor
"Como eu a amo (e eu a amo, sua tolinha, como o mar ama a rocha em suas profundezas, é assim que meu amor engole você – e possa eu ser a rocha dentro de você, se o céu me permitir, amo o mundo inteiro e isso inclui o seu ombro esquerdo, não, primeiro o direito, de modo que o beijo se sentir vontade (e se for bastante boazinha para afastar um pouco a blusa) inclui também seu ombro esquerdo e seu rosto por cima de mim na floresta e o meu repouso em seu peito quase descoberto" (Franz Kafka. Cartas a Milena. p.94).
segunda-feira, agosto 29, 2011
O Beijo
"Inclina teus lábios sobre mim
E que ao sair de minha boca
Minha alma repasse em ti"
(Diderot. Oeuvres Complètes III, Club Français du Livre, apud Barthes)
[Imagem: O beijo. Gustav Klimt]
domingo, agosto 21, 2011
Louca de Linguagem
Não sei se persigo o discurso amoroso ou se o discurso amoroso me persegue. Pensando bem, acho que perseguimos um ao outro: buscamos as mesmas coisas e, ao encontrarmo-nos, seguimos a mesma trilha. Não é à toa que encontro aqui ao meu lado, pela milésima vez, os Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes. Eu olho pra ele, ele olha pra mim. Estamos, mais uma vez, enamorados (e eu? completamente louca de linguagem!).
"A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contato: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que é "eu te desejo", e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação."
[Barthes, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989, p.64].
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