sexta-feira, junho 26, 2020

Untitled


enquanto seu corpo movente
move-se lentamente
sua mente pensante
pensa sistematicamente

o país está um caos
no mundo a barbárie reina

entre vales e abismos
estradas vazias e horizontes perdidos 
ele vagueia enlutado
como quem se perdeu nas coisas
que se perderam no tempo
tal qual poeira ao vento.

restam-lhe apenas
rastros, sopros
e nuvens de existência.

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[Marília Côrtes | 2018]


René Magritte
The Thought Which Sees


domingo, junho 14, 2020

Mortalha


Onde está o vento? Este peso nas costas, no pensamento – vem do teto ou das nuvens assim paradas, invisíveis me vendo.: sinto que estão ali paradas, AQUI, bem sobre o meu corpo também imóvel – eu e o meu corpo paralisado e talvez já morto: mas ainda eu.

Se ao menos houvesse o vento – nem que fosse o ruído do vento, o rumor do vento como há o rumor do mar ou da chuva, ou qualquer rumor que não seja este silêncio, o deste silêncio! – Mas apenas ouço, vejo, o peso destas nuvens e do que está ainda mais em cima, de todo esse ar que me falta e que me traz esta asfixia, esta paralisia – como se me houvessem enterrado e eu estivesse enterrado: dentro desta mortalha.

Mas ainda não estou morto, sei que não estou, SEI: isto é o importante. E este silêncio, e agora este frio – antes não havia este frio – este silêncio neste frio, e este peso sobretudo este peso sobre a minha cabeça, tudo isso então é que estou sendo a vítima de algum mistério, não de um engano ou de uma alucinação mas de algum mistério, nem mesmo de um sonho ou de um pesadelo, pois me conheço e sei que estou sonhando: SEI. 

"Campos de Carvalho | 1916-1998 | In: A Chuva Imóvel | Belo Horizonte | Autêntica | 2018


Igor Mitoraj [1944-2014]

terça-feira, junho 02, 2020

Youth


The Mirror | 1902 | by Edward Steichen



(...) Ah, juventude! Juventude! Você parece não ligar para nada, parece possuir todos os tesouros do universo, até a tristeza lhe traz contentamento, até o desgosto lhe cai bem, você é confiante e ousada, você diz: "Só eu vivo", mas cuidado, para você os dias correm e somem, sem conta e sem deixar vestígio, e tudo em você desaparece, como a cera sob o sol, como a neve. E talvez todo o segredo de seu encanto consista não na possibilidade de fazer tudo, mas na possibilidade de pensar que você fará tudo [...] "Ah, quanta coisa eu faria se não tivesse desperdiçado meu tempo!"

[...] e agora, quando em minha vida já começam a baixar as sombras do entardecer, o que me restou de mais fresco, de mais caro, do que as lembranças daquela tempestade primaveril, matutina, que passou tão depressa?

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[Ivan Turgueniev | Primeiro Amor | Cap. XXII]