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sábado, fevereiro 10, 2024

O teu silêncio


O teu silêncio tem grandes pedras,
tem grandes navios.
O teu silêncio de pedra,
o teu escuro silêncio.
Silêncio do tempo,
pesado tempo,
voz dos que já morreram.
Silêncio onde se ausenta minha voz.
Eco do meio da mata,
Eco do fundo de um poço.
Palavra de Deus teu silêncio,
luz na neblina,
Teu grande silêncio de mulher.


(José de Arimatéia Silva)



terça-feira, janeiro 30, 2024

Dois corpos

Dois corpos frente a frente
são às vezes duas ondas
e a noite um oceano

Dois corpos frente a frente
são às vezes duas pedras
e a noite um deserto

Dois corpos frente a frente
são às vezes raízes
na noite enlaçadas

Dois corpos frente a frente
são às vezes navalhas
e a noite um relâmpago

Dois corpos frente a frente
são dois astros que caem
num céu vazio.

................................

[PAZ, Octavio | Grandes vozes líricas hispano-americanas | Seleção e Tradução de Aurélio Buarque de Holanda Ferreira | Rio de Janeiro | Nova Fronteira | 1990].

artwork by
Miriam Dema

domingo, dezembro 31, 2023

to disappear


vou logo ali
tomar um chá
de sumiço

sair de cena
sumir do mapa
dar um tempo

sem rima
sem poesia
sem métrica

nem nada
.
.
.

[marília côrtes]

Lissy Elle's Photography

domingo, maio 14, 2023

Poema antigo


Está tudo planejado:
se amanhã o dia for cinzento,
se houver chuva
se houver vento,
ou se eu estiver cansado
dessa antiga melancolia
cinza fria
sobre as coisas
conhecidas pela casa
a mesa posta
e gasta
está tudo planejado
apago as luzes, no escuro
e abro o gás
de-fi-ni-ti-va-men-te
ou então
visto minhas calças vermelhas
e procuro uma festa
onde possa dançar rock
até cair

..................................................

[Caio Fernando Abreu | Revista Bravo | Fev 2006]




domingo, abril 23, 2023

Vazio



A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

.
.
.

[In: SCHMIDT, Augusto Frederico | Poesias completas | 1928/1955 | Rio de Janeiro | J. Olympio | 1956]

domingo, março 26, 2023

no need


não precisamos
tagarelar sobre
o óbvio.
exaurir sentidos.
exclamar pequenos
momentos.
gastar sentimentos.
podemos ser elegantes.
apenas instantes.
nem precisamos falar
desses dissabores.
desses segredos.
dos nossos amores.
só o silêncio e o vento
falam alguma coisa
noite adentro.

..............................................

[Iara Rossini Lessa (1965 - 2021)]

amiga que partiu,
assim,
de repente,
sem se despedir.

talvez por saber que,
na verdade, 
sua vida se esvaía,
mas ela permaneceria.

Robert Van Vorst Sewell, Nymph [1887]


sexta-feira, fevereiro 10, 2023

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

[Torquato Neto | Cogito | In: Melhores poemas]

sábado, janeiro 07, 2023

O seu santo nome


Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
..........................

Carlos Drummond de Andrade | 'O Seu Santo Nome' | In: Corpo | Editora Record | Rio de Janeiro | 1984

Lying woman 1917 - Egon Schiele

domingo, dezembro 04, 2022

In love

O amor,
Minha gente,
É um poema bem curtinho,
Que na sua incomensurável forma de ser,
Nos fode,
Sem a gente perceber.


(Nelson Alexandre)


By Lucien Waléry [Nude - detail 1920]

sábado, outubro 29, 2022

Grito rubro que pulsa sob minha pele


Mesmo com a garganta
Perfurada pela lâmina do silêncio
O sangue pulsa vermelho

Mesmo que o carrasco
Arranque a língua insubmissa
O sangue grita vermelho

Mesmo sob a face do torturador
O corpo feito em pedaços
O sangue resiste vermelho

Mesmo com os olhos
Vagando na noite sem fim
O sangue brilha vermelho

Mesmo com rumores de ataques
Coturnos, bombas e tanques
O sangue da luta é vermelho

Mesmo com a corda no pescoço
Uma multidão pedindo nossas cabeças
O sangue permanece de pé, vermelho

Mesmo que os lábios toquem a lona
E sintam o gosto áspero da queda
O sangue levantará do chão, vermelho.


(Evilásio Júnior)


The Tomb of the Wrestlers, 1960 by Rene Magritte


sábado, setembro 10, 2022

Tríptico II

I

[...]



II

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.

III

[...]


[Herberto Hélder, Tríptico II | in: A Colher na Boca | 1961]



sexta-feira, agosto 26, 2022

Hope


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

.......................................
Eugénio de Andrade




quinta-feira, agosto 18, 2022

Chuvosa




chore
chuva
chore seu pranto cinzento
estenda seu manto frio e úmido
sobre a cidade 

chore
chuva
lave bem suas ruas, corpos
corações e calçadas

chore
chuva
derrame suas mágoas geladas
caia torrencialmente
e leve toda miséria 
dessa pobre humanidade.



...........................
marilia côrtes
agosto/2022

segunda-feira, março 21, 2022

O último brinde

Bebo à casa arruinada,
às dores da minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –

aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou
.


..........................................
[ А́нна Ахма́това | 1889-1966 | in: “Anna Akhmátova: antologia poética” | seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho | Porto Alegre | L&PM Pocket | 2009 ]

Ilustración | Nicoletta Tomas Caravia | Espagne

http://www.nicoletta.info/

sábado, dezembro 25, 2021

apocalyptic news


a gente assiste ao jornal, lê, vê e ouve cada coisa:

a cada notícia, um soco na boca do estômago,
uma facada no peito, um golpe no pescoço.

apocalypse now
apocalyptic news

tragédias, catástrofes, epidemias,
calamidades de toda ordem.

apocalypse now
apocalyptic news

desgostos, tormentos, misérias,
uma bala no meio da testa.

apocalypse now
apocalyptic news

(mas o sol ainda reina, resta algum oxigênio no ar,
sopra uma brisa fresca e o céu está azul).

apocalypse now
apocalyptic news

a ventania começa, o céu escurece, 
o raio anuncia, tempestade à vista.

apocalypse now
apocalyptic news


..............................
[marília côrtes]



 

domingo, dezembro 12, 2021

Yourself


Amor depois de amor

Virá o tempo
em que você, exaltado,
vai saudar a si mesmo chegando
à sua própria porta, em seu próprio espelho,
e vão trocar sorrisos de boas-vindas,

você vai dizer, sente-se. Coma.
Vai amar o estranho que um dia você foi.
Dê vinho. Dê pão. Devolva seu coração
pra ele mesmo, o estranho que o amou

por toda a sua vida, e a quem você ignorou
por outro alguém, que o conhece de cor.
Pegue da estante as cartas de amor,

as fotografias, as anotações desesperadas,
descasque seu reflexo do espelho.
Sente-se. Sirva-se da vida.

..................................

Derek Walcott (poeta e dramaturgo). 
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes.




Love after love

The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,

and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you

all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,

the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.

sábado, outubro 30, 2021

Frutífera

'Da solidão do fruto'

De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
casca, polpa, semente.
E vazada de mim mesma
com desmesurada gula
apalpo-me em oferta
a fruta que sou.

Mastigo-me
e encontro o coração
de meu próprio fruto,
caroço aliciado,
a entupir os vazios
de meus entrededos.


'Da partilha do fruto'

De meu corpo ofereço
as minhas frutescências,
e ao leve desejo-roçar
de quem me acolhe,
entrego-me aos suados,
suaves e úmidos gestos
de indistintas mãos e
de indistintos punhos,
pois na maturação da fruta,
em sua casca quase-quase
rompida,
boca proibida não há.

...................................

[Conceição Evaristo | in: Poemas da recordação e outros movimentos | Belo Horizonte | Nandyala | 2008]


strawberry
close-up the fruit
[desconheço o/a autor/a]

quinta-feira, outubro 14, 2021

Moi-même


painting by Richard Kuhn


Eu não queria querer
mas quero assim mesmo
desse jeito: sem querer.

Quero uma prosa, assim,
sem verso, sem rima,
sem ritmo, sem nada.

......................
[marília côrtes / 2021]

sábado, setembro 11, 2021

Filhos da época


Wisława Szymborska, poetisa polonesa, ganhadora do Nobel de Literatura de 1996.
Wisława Szymborska, poetisa polonesa,
ganhadora do Nobel de Literatura de 1996.




Somos filhos da época
e a época é política.

Todas as tuas, nossas, vossas coisas
diurnas e noturnas,
são coisas políticas.

Querendo ou não querendo,
teus genes têm um passado político,
tua pele, um matiz político,
teus olhos, um aspecto político.

O que você diz tem ressonância,
o que silencia tem um eco
de um jeito ou de outro político.

Até caminhando e cantando a canção
você dá passos políticos
sobre um solo político.

Versos apolíticos também são políticos,
e no alto a lua ilumina
com um brilho já pouco lunar.
Ser ou não ser, eis a questão.
Qual questão, me dirão.
Uma questão política.

Não precisa nem mesmo ser gente
para ter significado político.
Basta ser petróleo bruto,
ração concentrada ou matéria reciclável.
Ou mesa de conferência cuja forma
se discuta por meses a fio:
deve-se arbitrar sobre a vida e a morte
numa mesa redonda ou quadrada.

Enquanto isso matavam-se os homens,
morriam os animais,
ardiam as casas,
ficavam ermos os campos,
como em épocas passadas
e menos políticas.

............................

Filhos da época | In: Wislawa Szymborska | Poemas | Seleção, tradução e prefácio de Regina Przybycien | São Paulo | Companhia das Letras | 2011.

domingo, julho 25, 2021

Le son et le sens


Nada foi perdido
nada jamais tido
entre a pedra e a perda
entre o vidro e o vivido
entre a onda e a sombra
entre o ritmo e o rito
entre o sonho e o sol
não ficou vestígio.

Só o som ficou
entre a letra e o espírito
no instante dito
no ar sumido
e este estar estrito
e este silêncio escrito — 

tudo foi sentido.

[Rodrigo Garcia Lopes | O Enigma das Ondas | Iluminuras | 2000]


photo: Alper Durukan