quinta-feira, agosto 13, 2015

Expectativas


Ele passava o dia esperando uma ligação dela, uma mensagem, uma iniciativa que o trouxesse ou o levasse de volta ao seu lugar. Sofria o silêncio dela. E quebrava-o escrevendo-lhe uma carta, apenas para dizer que ele não sabia mais onde estava, e que gostaria muito de sabê-lo. Dissera-lhe que gostaria de saber ainda mais se seu lugar fosse estabelecido por ela, ao lado dela. Mas se ela preferia o silêncio, que fosse então o silêncio a dizer que o lugar dele era ali, do outro lado do mar, ou melhor, naquela ilha em que a tirania do seu triste eu governava anarquicamente.

Ela respondera-lhe que não preferia o silêncio, mas que de algum modo ele se impusera entre eles. Acordava em prantos, passava boa tarde da manhã em prantos, lembrando-se das coisas que ele dissera. Lembrava-se e chorava também pelos descuidos que ela havia cometido com ele. Tentava escrever para ele o que realmente sentia. Escrevia bastante, chorava mais ainda. Perdida, congestionada, passava o resto do dia de cama, numa tristeza e infelicidade profundas, alquebrada, perseguida pelas boas e más lembranças, subjugada pelas dúvidas, asfixiada pelas dores, dominada pelo medo. 

Ela também esperava uma ligação, uma mensagem que a levasse até ele ou que o trouxesse até ela. Um turbilhão de questões constrangia seus pensamentos. Ela não tinha respostas. Temia pelas respostas. Conjeturava. Tinha a impressão de que haviam se perdido completamente neles mesmos. Ele, em sua casmurrice e misantropia. Ela, em sua sociabilidade natural. Ele, naquele ponto fixo, naquela linha reta. Ela, naquela difusão de pontos e linhas. Ele, na vida pacata e pouco diversa. Ela, na vida agitada e multifacetada. E não parecia haver culpados. Apenas seus tristes eus ilhados e perdidos em suas próprias tiranias.

art by Mantha Tsialiou
ink on paper

terça-feira, agosto 11, 2015

Guess Who?


Ele, atraído pela música, caminha até a sala, passa por ela e, com um ar sugestivo, pergunta-lhe: tá romântica hoje?
Ela, com aquele conhecido sorrisinho no rosto - uma mistura de discrição e malícia - responde-lhe: as always...





Someone really loves you
Guess who
Someone really cares
Guess who
S'open your heart
Oh, then surely you'll see
Oh, that the someone who really cares is me

Someone will wait eternally
Someone who'll want your love
Oh so desp'rately
Open your heart
Oh, then surely you'll see
Oh, that the someone who really cares
Who really cares is me

segunda-feira, agosto 10, 2015

Ventos uivantes

Os ventos estão uivantes, hoje, aqui, nessa cidade que não é minha. Uivaram a noite inteira. Quem leu O Morro dos Ventos Uivantes sabe o que isso significa. Talvez, lá em baixo, nas ruas, eles apenas soprem um ar morno, aquecido por um sol que brilha timidamente num céu de braços abertos. Mas cá, dentro do meu minúsculo e acolhedor apartamento, pelas frestas das janelas, ele uiva geme grita se contorce e chora, anunciando o maior dos pesos, isto é, o eterno retorno do mesmo

Há tempos eu não amaldiçoava, rangendo os dentes, o demônio que volta e meia aparece furtivamente em minha mais desolada solidão dizendo que terei de viver esta vida, como a estou vivendo neste instante e já a vivi outrora, mais uma vez e por incontáveis vezes; e que nada haverá de novo nela, que cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e que tudo que é inefavelmente grande e pequeno em minha vida terá de me suceder de novo, tudo na mesma sequência e ordem, e que a perene ampulheta do existir será sempre virada novamente, e eu, mera partícula de poeira, serei virada e revirada junto com ela (e todas as outras partículas de poeira). Minutos depois, após suspirar e pensar mais um pouco, lembrei-me que já experimentei instantes imensos nessa minha vida (muito maiores, melhores e mais frequentes do que este), nos quais certamente eu poderia dizer que esse demônio, na verdade, é um deus, e que a mensagem que ele assopra agora em meus ouvidos me permite exclamar, com grande contentamento, jamais ter ouvido coisa tão divina.


[quem conhece Nietzsche deve também conhecer (ou ao menos ter ouvido falar) de sua teoria sobre O eterno retorno do mesmo  anunciada no aforismo 341 de A Gaia Ciência, p.230, fonte inspiradora desse post, da edição da Cia. das Letras, 2001, e desenvolvida no Assim falou Zaratustra].

sábado, agosto 08, 2015

Afinal, por que não?

Pensei em escrever sobre algumas declarações, frases e expressões que li e ouvi nos últimos dias. Elas suscitaram vários temas interessantes (que vou elencar abaixo) sobre os quais eu poderia escrever, assim, numa ordem que não alteraria o resultado, pois todos levariam a um mesmo ponto.

Eu poderia escrever sobre valores e referências sagradas. Sobre jogar com ambiguidades de sentimentos. Sobre a inteireza nas relações amorosas, o silêncio necessário, o silêncio excessivo e cruel, a hora de falar, a hora de calar e a hora de jogar a toalha. 

Eu poderia escrever sobre o significado e importância das pessoas em nossas vidas. Sobre estratégias ocultas e a busca de satisfação do nosso querido e amado eu. Sobre nos colocarmos no lugar e nas mãos do outro. Sobre estilo, intuição e abandono. Gosto, falta de gosto, filosofia e olhos nos olhos. 

Eu poderia escrever sobre ciúmes, posses e palavras sopradas em ouvidos sensíveis. Sexo, literatura, perdão, abismos e pirilampos. Sobre desejos, sinais confusos, corações quentes, frios, feridos, sobressaltados e algo mais. 

Eu poderia escrever sobre decisões frágeis, negligências, filmes, afetos e atenções. Sobre versos tristes, rir e passear de mãos dadas. Meias-verdades, facebook, beijos e desculpas esfarrapadas. Sobre carências, carinhos, explicações, dedicatórias, teses e dissertações.

Eu poderia escrever sobre enredar pessoas nas teias pérfidas da manipulação. Sobre histórias de amor e ilusões perdidas. Sobre sermos ou não indiferentes aos sentimentos dos outros. Sobre choros e compulsões. Etta James, Van Morrison, zelo, emails, telefonemas, mensagens, cigarros e aviões.  

Eu poderia escrever sobre moleskines, olhos cansados e mentes turvas. Viagens mentais e a inexorabilidade do tempo. Sobre contar e não contar com o outro em nossas vidas. O significado de lutar por um amor, conservar e proteger esse amor. Sobre o ato de ludibriar com palavras, ter a posse do coração de alguém, e BB King quando canta Guess Who, Waiting for you call e Come rain or come shine

Eu poderia escrever sobre dedicação e capacidade de amar. Johnny Winter e Johnny Cash in Hurtin' So Bad. Temores e tremores. Sobre sussurros, persuasão, solidão e silêncio confortável. Sonhos, cumplicidade, Eric Clapton, mágoas e rancores. Sobre melancolia, dores, ironia, o valor das palavras e a responsabilidade com o que dizemos.

Eu poderia escrever sobre Piazzolla e ideias que se desfiam. Sobre bons e maus argumentos. Sobre talentos e a falta deles. Ray Charles e palavras ao vento. Sobre culpa, lealdade, proteção, Robert Cray e Imelda May. Tolices e corações que sangram. Mentiras e enrolações. 

Eu poderia escrever sobre pedidos de espera, direitos e sinceridade. Sorrisos e estrelas apagadas. Sobre cartas, declarações de amor, bolhas de sabão e crueldade. Céu nublado, migalhas, hesitações, garantias vãs e tentativas frustradas. Sobre riscos, estranhos amores, leveza e felicidade. Sobre ventanias, prazeres e arrependimentos solenes. 

Eu poderia escrever, também, sobre loucuras, voragens e castelos de areia. Ella Fitzgerald, Schopenhauer e Leonard Cohen. Sobre pressa, ânsia, urgência e peças que não se encaixam. Abraços, contradições e flutuações anímicas. Sobre sangue, caráter e formação. Ressentimentos, Tom Waits, blues and rock’n’roll

Eu poderia escrever, ainda, sobre o que há de mais importante na vida. Sobre prosas, poesias e facadas no peito. Tangos e frequências eletromagnéticas. Raridades, belezas e economia de vida. Sobre Hume, almas leves, ternura, Lorca e Neruda. 

Eu poderia escrever sobre instinto, drogas e remédios para dormir. Sobre a morte, reclusão, apetites e deliberações. Sarah Vaughan, Allan Poe, feelings e maturidade. Sobre consistência, raízes, solo firme e profundidade. 

Eu poderia escrever sobre o ato de aliviar um coração, Montaigne, black coffee, viagens e aventuras. Sobre confiança, história e aprendizado. O amor, a amizade, ventos uivantes e promessas não cumpridas. Sobre dúvidas, incertezas e Georgia on my mind. Sobre compreender e não compreender. A franqueza, Kafka, Zweig, admiração, miséria, pequenez e borboletas azuis. 

Eu poderia escrever sobre whatsApp, egoísmo, Camus e altivez. Sobre protestos, omissões e lamentações diversas. Atitudes, prazos e tensões amorosas. Sobre o futuro, Balzac, Willie Nelson cantando Crazy, e Nina Simone Let it be me

Enfim (sei que já me excedi), eu poderia escrever sobre imagens distorcidas, Dostoiévski, comparações e angústias. Águas pantanosas e areias-movediças. Móveis ocultos, mensagens codificadas, esperanças, decepções, cálculos, escolhas, doçura, paixão, liberdade e muito mais, bem como, para encerrar, um conto de fadas que pode dar certo. Afinal, por que não?