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domingo, julho 29, 2018

O dia do juízo


"Aviso: a não ser que prefirais o inferno ao céu (pois há gosto para tudo, e o inferno de muitos - ó preciosa liberdade de escolher – é o céu de inumeráveis), de nenhum modo, e nem por isso, deveis descuidar-vos em vida, tendo presente que o vosso reino, este, aquele, ou aqueloutro, começa no lugar em que tiverdes apoiado os pés. Que até lá, a existência vos pese menos que uma pá de cal. 
Saudações e paz." 

Rosário Fusco | in: Dia do Juízo |  Rio de Janeiro | José Olympio | 1961 | p.250


Juízo Final | 1570 | by Marten de Vos



Encontrei a citação acima, por acaso, quando navegava à procura de informações sobre este autor tão interessante e, ao mesmo tempo, tão pouco conhecido. Fusco é considerado um escritor maldito que traz em sua escrita preocupações já discutidas por tantos outros escritores e filósofos: as relações entre o homem e Deus, o bem e o mal, o real e o ilusório, a dor e o sofrimento, o sentimento de culpa, o instinto e a moralidade dos costumes, os infernos psíquicos and so on

Porém, eu ainda nem li o romance, última obra dele, apesar de ter ficado curiosíssima, em virtude da mordacidade da citada passagem e de todas as outras coisas que li a respeito dele e de suas obras. Mas, registre-se, eu nem acredito nesse tal dia do juízo final, embora o tema, como crença muito difundida entre as diversas religiões, seja filosoficamente instigante. That's all!


***

[Ops, mais uma coisa: sobre esse tema, Juízo Final, tratei numa entrevista informal "sobre o fim do mundo", em 2006, tempo em que ideia levava acento e ainda se usava trema. Acesso em http://mariliacortes.blogspot.com/search/label/Ju%C3%ADzo%20Final  São IX questões dispostas em ordem inversa, isto é, deve-se rolar a página até o fim e iniciar a leitura debaixo para cima. Fiz uma revisão, mudei algumas imagens, mas não alterei em nada as minhas respostas ].


terça-feira, maio 10, 2016

Herética


                               que deus me perdoe a heresia, 
                               e os moralistas de plantão também,
                               mas não resisti à ousadia,
                               tão divina e tão mundana, 
                               tão sagrada e tão profana.

                               .........................................

[marília côrtes / 2016]



Lambertz 2012 calendar
photo by Jose Manuel Ferrater Paz Vega

quarta-feira, abril 17, 2013

Nietzsche: o filósofo do perigoso talvez!

ECCE HOMO

[Nietzsche - 2010, by Alexandre Bellei] 


"Com todo o valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, desinteressado: é possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e fundamental para a vida. É até mesmo possível que aquilo que constitui o valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente no fato de serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e talvez até essencialmente iguais a essas coisas ruins e aparentemente opostas. Talvez! ─ Mas quem se mostra disposto a ocupar-se de tais perigosos "talvezes"? Para isso será preciso esperar o advento de uma nova espécie de filósofos, que tenham gosto e pendor diversos, contrários aos daqueles que até agora existiram ─ filósofos do perigoso "talvez" a todo custo. ─ E, falando com toda a seriedade: eu vejo esses filósofos surgirem" (ABM. Dos preconceitos dos filósofos, § 2, p.10-11).

Escolhi essa passagem de Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro, uma das principais obras de Nietzsche, como ponto de partida e fio condutor do tema do próximo minicurso de Filosofia para Diletantes, promovido pela Aldeia Coworking de Londrina. O tema versa sobre aquilo que se pode encontrar de mais fundamental e saliente na filosofia de Nietzsche, ou seja, sua crítica à cultura. A meu ver, esta passagem já nos dá um pequeno indício do quanto Nietzsche é um autor très polemique, capaz de provocar um verdadeiro bouleversement em nossas cabeças. Posso garantir (e eu vou procurar mostrar) que muito do que ele diz é de revirar o estômago de qualquer cristão (e saibam que é possível dizer que, num certo sentido, é isso mesmo que ele quer). Aliás, nem é preciso ser cristão, basta ser, digamos assim, humano, ainda que alguns humanos escapem, pelo bem ou pelo mal, ao mal-estar que suas ideias podem provocar.

Por outro lado, Nietzsche (dotado de um virtuosismo sem igual no trato com sua língua materna) possui um poder encantatório, capaz de seduzir e enlevar os mais diversos tipos de leitor: filósofos, poetas, literatos, dançarinos, dramaturgos, artistas plásticos, mortais comuns... ora, o que faz com que Nietzsche seja tão lido e difundido? O que faz com que seus leitores oscilem entre o fascínio e a repulsa? Quem é esse filósofo artista dançarino bufão e dinamite, que propõe que transvaloremos nossos valores, se autodenomina o primeiro imoralista (EH, p. 101) e se julga a uma altura em que já não fala “com palavras, mas com raios” (EH, p.102)? Quem é esse autor subversivo que coloca a superação da compaixão entre as virtudes nobres (EH, p.51) e baila ora com ora sobre a nossa moral? Quem é esse virtuose da linguagem que em Assim Falou Zaratustra diz que de tudo o que se escreve aprecia  "somente o que alguém escreve com seu próprio sangue" (p.56)? Quem é esse "cara"  (ops, desculpem-me a intimidade) que diz ter se dado conta de que "Sócrates e Platão são sintomas de declínio" (CI II § 2), e ousa declarar que Leibniz e Kant são "dois grandes entraves à retidão intelectual da Europa" (EH, p.145)? Enfim, para encerrar essa primeira série de perguntas, lá vai... quem é essa nitroglicerina pensante que nos convida a dizer adeus às velhas verdades e anuncia, em A Gaia Ciência, que Deus está morto (GC § 125)? 

Nietzsche afirma: “reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal” (ABM. Dos preconceitos dos filósofos, § 4, p.11). 

Pois bem, reconhecer a inverdade como condição de vida é, obviamente, reconhecer a mentira (e também, conforme veremos, a ilusão, a aparência, os véus e máscaras) como condição de vida. Hã? Será que ouvi direito? Como assim? O bem pode não ser mais bem e o mal pode não mais ser mal? Ops, sim! não! não é bem assim, talvez... calma... eu explico! ou ao menos arrisco!

Again: Ecce Homo!


Filosofia para Diletantes
Nietzsche Crítico da Cultura

A crítica da cultura empreendida por Nietzsche constitui-se num dos temas mais fundamentais de sua filosofia. Nietzsche pretende demolir os valores da tradição filosófica, em especial, aqueles implantados por Sócrates, isto é, a crença na racionalidade, no bem em si, na unidade do conhecimento, na objetividade e na verdade. No primeiro período de seus escritos, cujas obras compreendem os anos de 1869 a 1876, Nietzsche tematiza uma oposição entre arte e conhecimento deixando clara a sua posição: a arte é mais importante do que a ciência. A primeira direção da reflexão nietzscheana sobre a ciência é uma "investigação sobre as questões afins do conhecimento, do pensamento, do intelecto, da razão, da consciência e, sobretudo, da verdade" (cf. Machado: 1989, p.9). Criticar a ciência é, para Nietzsche, fundamentalmente, criticar a ideia de verdade, considerada como um valor superior, um ideal sagrado. Posteriormente, a reflexão nietzscheana seguirá uma segunda direção: buscará mostrar que, pelo fato de a ciência não estar isenta de juízos de valor, há um certo parentesco, uma relação de continuidade entre ciência e moral, porquanto é a moral que dá valor à ciência, isto é, valor ao conhecimento. A valorização da arte como atividade que dá acesso às questões fundamentais da existência é, para Nietzsche, a alternativa modelar que lhe permite pensar a renovação da cultura alemã de seu tempo.  Um mergulho em suas obras nos faz ver que, em geral, todas elas “incitam a uma inversão das valorações habituais e dos hábitos valorizados” (Humano Demasiado Humano. Prólogo, p.7), quer dizer, a uma transvaloração de todos os valores. Ele inicia sua transvaloração colocando sob suspeita todos os valores consagrados da moral, da religião, da ciência, da metafísica e, portanto, de toda a cultura denominada cultura superior, uma vez que, de acordo com Nietzsche, de uma perspectiva filosófica, todos os problemas da filosofia são problemas de valor. E, para ele, a medida de valor se estriba na pergunta: “Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito” (Ecce Homo, p.39)? É o que vamos ver!

PROGRAMA
MÓDULO II

O minicurso está dividido em quatro encontros nas seguintes quartas-feiras:
08/05 - 15/05 – 22/05 – 05/06, das 20 às 22 horas, na Aldeia Coworking Londrina

1. Introdução: A crítica de Nietzsche aos valores da tradição filosófica (08/05)
1.1. O universo filosófico tradicional criticado por Nietzsche
1.2. Socratismo, Platonismo e Cristianismo

2. A relação entre arte e conhecimento (15/05)
2.1. A justificação da existência como fenômeno estético
2.2. O apolíneo e o dionisíaco

3. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro (22/05)
3.1. A verdade como ideal sagrado da filosofia
3.2. A inversão do platonismo e a metáfora feminina da verdade

4. O projeto transvaloração de todos os valores (05/06).
4.1. Perspectivismo
4.2. Vontade de Poder
4.3. Eterno Retorno e Amor Fati

Abaixo, para os mais sedentos, referências de algumas importantes obras de Nietzsche.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
NIETZSCHE, F. Aurora:Reflexão sobre os preconceitos morais. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
NIETZSCHE, F. Cinco Prefácios para cinco livros não escritos. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das Letras, 2006.
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Tradução de Paulo César de Souza.  2ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 1986.
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral.  Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.
NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano I. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
NIETZSCHE, F. O Anticristo. Ensaio de uma crítica do cristianismo. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2008.
NIETZSCHE, F. O Livro do Filósofo. Tradução de Ana Lobo. Porto : Rés, s.d.
NIETZSCHE, F O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 
NIETZSCHE, F. Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

A LP&M Pocket publicou várias obras importantes de Nietzsche a preços bem acessíveis

A obra citada sobre Nietzsche é de:
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra. Graal, 1999.

clique no cartaz para visualizar as informações sobre como se inscrever no curso 

terça-feira, setembro 18, 2012

Filosofia para Diletantes



Eis um título que, por um lado, considero perfeito para um curso voltado àqueles que desejam estudar filosofia por amor à sabedoria. Aliás, amor à sabedoria vem diretamente ao encontro da origem da palavra filosofia, malgrado se possa dizer que esta palavra tomou significados diversos, de acordo com as teorias dos diversos filósofos. 

Como se sabe, o diletante é aquele que tem interesse e se dedica a uma arte ou ofício, digamos assim, como amador, quer dizer, por amor e deleite, e não por ofício ou obrigação. 

Nesse sentido, o título se ajusta perfeitamente à proposta inicial deste curso, qual seja, a de oferecer um programa extra-acadêmico dirigido a um público que deseja exercer a atividade filosófica não por obrigação curricular, mas simplesmente por prazer e amor aos estudos.

Eu disse por um lado... por quê? Porque, de outro, o título pode suscitar um sentido pejorativo que o termo "diletante", sinônimo de amador, tomou na linguagem ordinária - a de que o diletante não leva as coisas muito a sério. Nada a ver, pois do fato de que alguém possa exercer uma atividade apenas por amor e prazer não se segue que esse alguém é descuidado ou não leva as coisas (no caso aqui os estudos) a sério. Uma pessoa pode muito bem se dedicar aos estudos, a qualquer arte ou ofício, de modo diligente, como um autoditada, por exemplo. Algumas pessoas fazem isso naturalmente, outras, talvez, necessitem aprender a estudar sozinhas, ou seja, precisam de um empurrãozinho, de alguém que as introduza no universo filosófico e as oriente.

Desde que comecei a estudar filosofia, há quatorze anos (fiz e faço isso cumprindo as exigências da academia, mas também como diletante, no sentido original da palavra, ou seja, por paixão e deleite), acredito que existe um tipo de público que adoraria estudar filosofia, mas que não está nem um pouco disposto a calçar o "sapato apertado" da erudição acadêmica. Esse público, obviamente, não se pretende graduado, mestre, doutor ou pós-doutor em filosofia, tampouco deseja ser professor de filosofia. Todavia, ele tem sede, curiosidade, interesse, vontade e desejo de conhecer, ainda que não com o rigor da academia, o universo da filosofia.

Mas como satisfazer a esse público se levarmos em conta a (por certo controversa) distância que (dizem) separa os filósofos acadêmicos dos mortais comuns? (Ops... eles não são mortais comuns?) Será mesmo possível diminuir esse suposto abismo? Qual seria a ponte que tornaria possível ascender ao conhecimento filosófico? Algo me diz que grande parte dos acadêmicos de plantão pensa que isso não seria possível fora dos altos muros da academia. E embora eu seja também uma acadêmica de plantão, estranhamente (e a contragosto rsr) mortal e comum (sorry, não resisti), penso que seria sim possível, e só há uma maneira d'eu me certificar disso: colocando-me like a bridge over troubled water.

Pensando em atender a este suposto público (que acredito ser um público seleto, pois não creio que o estudo da filosofia possa atrair um grande público); e pensando também em satisfazer a minha necessidade de falar sobre filosofia, estruturei (numa parceria com a Aldeia Coworking Londrina), o primeiro módulo de um curso de filosofia para diletantes.

Por meio da leitura e comentários de textos de alguns grandes filósofos, historiadores e intérpretes da filosofia, o programa pretende oferecer uma visão introdutória e panorâmica da história da filosofia, a partir da origem e do significado de conceitos fundamentais do pensamento ocidental - conceitos que atravessaram séculos e ainda hoje permanecem atuais. 

Eis o cartaz e o programa deste primeiro módulo (que começa amanhã, às 20 hs):





MÓDULO I

1. Introdução (quarta-feira: 19/09)
1.1. Visão introdutória e panorâmica da história da filosofia
1.2. Divisão dos períodos e áreas da filosofia
1.3. Principais autores e temas
1.4. Perspectivas e correntes filosóficas

2. Gênese, natureza e desenvolvimento da filosofia e dos problemas especulativos da antiguidade (quarta-feira: 26/09)
2.1. As formas da vida espiritual grega que prepararam o nascimento da filosofia
2.2. Religião, misticismo e filosofia
2.3. Problemas e características da filosofia antiga
2.4. Os pré-socráticos: os problemas da physis, do ser e do cosmo

(textos de referência: REALE, Giovanni. Pré-Socráticos e Orfismo. História da Filosofia Grega e Romana. Vol.I Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2009.
BORNHEIM, Gerd A. (org.). Os Filósofos Pré-Socráticos (15a. ed.). São Paulo: Cultrix, 2010.
KENNY, Anthony. Uma Nova História da Filosofia Ocidental. Vol. I (Filosofia Antiga). Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Loyola, 2011).

3. Platão (quarta-feira: 03/10)
3.1. Conceitos fundamentais da teoria da ideias
3.2. Características distintivas da metafísica de Platão
3.3. A compreensão de conhecimento
3.4. A imortalidade da alma

4. Platão (quarta-feira: 10/10)
4.1. A Justiça
4.2. O Estado justo
4.3. Justiça e concepção de alma
4.4. A analogia entre a alma e a polis

(textos de referência: PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999 e PLATÃO. Fédon. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Abril Cultural, 1972).



[Pintura de Catherine Chauloux]

segunda-feira, outubro 27, 2008

XIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste/Toledo


Entre os dias 27 e 31 de outubro acontece o XIII Simpósio de Filosofia Moderna e Contemporânea da Unioeste de Toledo, e eu estarei lá!!!
Eis o resumo da minha comunicação:

RELIGIÃO E MORALIDADE NA FILOSOFIA DE HUME


Penso que a crítica de Hume à religião insere-se em seu projeto maior de construir uma filosofia moral, ou ciência da natureza humana, ao mesmo tempo em que visa destruir a má metafísica ou metafísica das escolas, conforme distinção que ele mesmo apresenta em algumas passagens espraiadas por suas obras. No § 12 da seção I da Investigação sobre o Entendimento Humano (IEH), por exemplo, Hume diz: “devemos dedicar algum cuidado ao cultivo da verdadeira metafísica a fim de destruir aquela que é falsa e adulterada”. Para realizar esse objetivo, Hume debruça-se sobre o tema da religião natural e revelada a fim de examinar a validade dos argumentos em favor da existência de Deus (ou Deuses), seus atributos e plano providencial. Nesse sentido, a seção XI da IEH, acredito, pode e deve ser vista como uma importante peça introdutória da crítica que Hume faz ao argumento do desígnio ─ segundo o qual a existência de um criador infinitamente benevolente, justo e sábio pode ser inferida a partir da ordem e da beleza do mundo ─ bem como um componente de sua crítica à Religião Natural em geral. Podemos encontrar nesta seção muitos argumentos que serão desenvolvidos de maneira mais profunda e completa nos Diálogos sobre a Religião Natural (DRN). Todavia, embora Hume se sirva nesta seção do argumento do desígnio como um instrumento de sua crítica à religião em geral, seu alvo principal é, conforme o título indica, discutir a existência de uma providência particular e de um estado vindouro. O ponto de Hume é mostrar que não temos boas razões para argumentar em favor de uma providência particular e de um estado vindouro com base neste argumento, embora revele que não está, propriamente, a negar a existência divina. Ao contrário, ele enfatiza que o principal ou único argumento aceitável em favor dela deriva da ordem natural. Mas a seção abrange também aspectos ulteriores. Hume defende que negar a providência divina e uma vida pós-morte não ameaça a ordem social e política, uma vez que a moral, entendida aqui especialmente como um dos pré-requisitos para a manutenção da paz da sociedade e segurança do governo, pode, conforme algumas teses defendidas por ele, ser fundamentada ao longo de linhas laicas, sem qualquer apelo a mandamentos morais divinos. No Tratado da Natureza Humana (TNH), ao tratar do tema da liberdade e responsabilidade moral, Hume diz que a religião tem sido desnecessariamente envolvida nessa questão. Ali ele assinala um péssimo expediente em discussões filosóficas “tentar refutar uma hipótese a pretexto de suas conseqüências perigosas para a religião e a moral”. A hipótese da qual Hume fala neste contexto é sua teoria da necessidade, conforme nos mostra a seguinte passagem: “a doutrina da necessidade, segundo a minha explicação, é não apenas inocente, mas vantajosa para religião e a moral” (TNH 2.3.2.§ 3-4). Como podemos perceber, Hume alega que suas críticas são inocentes à religião e à moral. Não obstante, sua crítica não só foi vista como prejudicial à religião em geral, mas de maneira tal que nenhum antecessor seu a empreendeu. Em relação à seção XI da IEH, pode-se dizer que o problema de Hume gira em torno de saber o quanto as questões religiosas dizem respeito ao interesse público. A seção é escrita na forma de um diálogo entre Hume e um amigo. Esse amigo assumirá o papel de Epicuro e fará de Hume “a parcela mais filosófica” do povo de Atenas. Note-se que ao proceder assim, Hume desloca a discussão no tempo e no espaço, o que pode ser particularmente importante à medida que se discute a necessidade que Hume tinha de servir-se de estratagemas literários para proteger-se da censura de seu tempo àqueles que criticavam a religião. Ironia, recursos literários e retóricos, afirmações contraditórias, todos esses elementos podem ser encontrados em seus textos, o que torna particularmente difícil identificar as intenções e real posição de Hume em relação à religião. Na narrativa da seção XI da IEH, por exemplo, Hume transfere a responsabilidade dos argumentos a personagens históricos (no caso de Epicuro) e imaginários (como a “parcela mais filosófica do povo de Atenas”, representada pelo próprio Hume). Mutatis mutandis a mesma estratégia aparecerá nos DRN, obra em que o autor não se exprime em seu próprio nome, dando lugar, assim, ao afrontamento de teses e argumentos concorrentes.  Vale lembrar que a seção XI da IEH foi escrita originalmente em forma de Ensaio cujo título era Das Conseqüências Práticas da Religião Natural. Mas, conforme pretendo mostrar, Hume ─ na voz do amigo que defende princípios epicuristas ─ argumentará que não ocorre, de fato, nenhuma das supostas conseqüências corrosivas para moral, a sociedade e segurança do governo.

terça-feira, outubro 31, 2006

Sobre o fim do mundo III (continuação)





III - De onde você acredita que vem a necessidade de se acreditar no fim do mundo?

Eu não diria que a crença no fim do mundo é necessária, embora eu perceba que a maioria das pessoas pensa a respeito e acaba formando uma opinião sobre o assunto. A idéia de necessidade aí me parece muito forte. Necessário é aquilo que, em geral, não pode deixar de ser ou acontecer, tal como é ou acontece. Mas nem todos acreditam no fim do mundo. É preciso distinguir entre conhecer, pensar, opinar e crer no fim do mundo. Aqueles que abraçam as explicações religiosas geralmente têm crenças bem arraigadas (e provavelmente equivocadas) sobre esse suposto fim. Mas eu mesma não referendo esses discursos. A mim o fim do mundo se apresenta como um tema instigante que serve de mote para especulações que excedem os limites do nosso entendimento, haja vista a mente ter capacidade finita para conhecê-lo (em sentido estrito). Mas nem por isso eu saio por aí apelando a crenças mal fundamentadas. Prefiro colher dados e informações a respeito do tema a fim de formar opiniões plausíveis. É importante determinar como e até onde podemos conhecer os fenômenos. No caso do "possível" fenômeno do fim do mundo, a impossibilidade de conhecê-lo é patente, pois, como disse, diz respeito ao futuro. Todavia, podemos pensar, opinar e formar crenças a respeito, de acordo com as informações disponíveis. 

Li em algum lugar (desculpe-me a imprecisão, mas não me lembro onde) que o medo do fim do mundo é, digamos assim, uma versão cósmica do temor da morte individual. A explicação é interessante. Quer dizer, a partir da consciência de nossa finitude e experiência da finitude de outros seres, ampliamos (por analogia) essa idéia até alcançarmos a idéia de fim de mundo. 

Mas veja bem, ter medo da morte não leva necessariamente a crer no fim do mundo. Certamente não tememos somente as coisas que são certas e infalíveis como a morte é (ao menos até que tenhamos a experiência de algum ser imortal). Temos de fato medo de coisas que são apenas possíveis e contingentes, mas nem sempre nossos medos são suficientes para produzirem crenças consolidadas. Eu (como quase todos os mortais comuns) tenho medo da morte (talvez mais de como ela ocorrerá do que dela propriamente dita). Ela ocorrerá certa e infalivelmente. Mas eu não vivo torturando meu cérebro pensando nela (se assim fosse acho que a vida tornar-se-ia insuportável), muito menos no fim do mundo (ao menos enquanto essa possibilidade se apresentar como relativamente distante). Até que se prove o contrário, o fim do mundo não é certo e infalível, e mesmo que abracemos teorias que afirmem isso, não passarão de conjeturas, umas mais plausíveis, outras menos plausíveis. 

Ademais (lembrando Hume), conhecemos mui imperfeitamente uma parte mínima desse grande sistema chamado mundo, e durante um intervalo de tempo muito curto. Como então podemos nos pronunciar com certeza acerca de um mundo que tem aproximadamente dez bilhões de anos (com formas de vida completamente desconhecidas) e que dependendo de seu desenrolar poderá ainda viver (mesmo que em condições deploráveis), mais tantos bilhões de anos? Se pensarmos nessas proporções, como formar uma idéia adequada, ou uma sólida crença (para voltar à questão), deste suposto fim?

domingo, outubro 29, 2006

Sobre o fim do mundo II (continuação)



O Juízo Final | Michelangelo

II - Baseado em que você pode reforçar sua opinião?


Em favor de que o mundo terá um fim temos algumas teorias disponíveis. É importante distinguir a qualidade dessas teorias e em que medida elas oferecem bons argumentos, ou qual delas oferece uma melhor explicação.

Assinalo aqui duas vertentes bem difundidas e distintas: as explicações científicas e as religiosas (estas últimas de cunho profético). As famosas (e a meu ver, lendárias) profecias de Nostradamus (escritas há mais de quatro séculos) são bem conhecidas e muita gente acredita nelas. Porém, o exercício da profecia sempre está associado a elementos místicos e/ou religiosos (estes, no caso do cristianismo, encontrados nas narrativas bíblicas como, por exemplo, o dia do Juízo Final). Tais pressuposições me parecem obscuras, fantasiosas, arbitrárias e frágeis. Quer dizer, em geral, não considero argumentos proféticos e místicos consistentes, embora, confesso, as acaloradas discussões acerca da filosofia da religião me interessam bastante. Não há como negar que a existência de Deus, a natureza de seus atributos, as crenças que efetivamente sustentamos e vários outros objetos dessa natureza são temas fecundos e verdadeiramente dignos de investigação filosófica.

Talvez fosse interessante que antes de pensarmos em formar uma concepção do fim do mundo, pensássemos em formar uma concepção da origem do mundo (cosmogonia), pois a concepção do fim do mundo dependerá da idéia que temos de sua origem. Se eu acredito que Deus criou o mundo (teoria criacionista) e que a Bíblia é uma fonte sagrada, confiável e veraz, provavelmente acreditarei num fim de mundo aos moldes do Juízo Final. Se eu acredito na teoria do Big-Bang, provavelmente terei uma concepção de fim completamente diferente. Muita gente acredita que Deus criou o mundo sem se interrogar muito se Ele existe mesmo (pois a existência de Deus é indemonstrável) e como, de fato, fez isso (apenas aceitam as narrativas transmitidas e já consagradas). Mas por que dar crédito a Deus na criação do mundo e não à própria matéria? Algumas respostas confortam facilmente certas mentes, outras dão origem às mais profundas inquietações, por serem muito complexas e fugidias. Mas, em geral, os homens permanecem submersos em incertezas e perplexidades quanto a esse assunto.

Por outro lado, se trilharmos o caminho das teorias científicas (apoiadas no solo mais firme de alguns dados empíricos, mas nem por isso teorias infalíveis), temos disponíveis (estou a supor) aquelas que apontam para um fim de mundo de aniquilação total e irreversível, ocasionado por várias causas concorrentes: a partir de princípios de desintegração e degradação naturais, catástrofes em série e de dimensões gigantescas (secas, maremotos, terremotos, tsunamis, choques de meteoritos ou planetas, uma nova explosão térmica, ou ainda a morte do sol). Algumas destas catástrofes (dizem) aconteceriam em virtude de certas ações humanas, outras pela própria natureza. Todavia, é difícil conceber a idéia de aniquilação total.

Veja só, existem teorias que sustentam que o mundo pensado como aniquilação total e irreversível não teria um fim propriamente dito, mas apenas grandes transformações que se dariam através de fenômenos que, no fundo, são auto-organizativos. Para afirmar uma aniquilação total do mundo, que inclua todos os seres vivos, toda a natureza orgânica e também a inorgânica, temos de negar a Lei da Conservação da Matéria [1774 – Lavoisier] que reza que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” (não sei se essa lei já caiu por terra, mas acredito que não). Se todos esses fenômenos catastróficos não forem suficientes para destruir a matéria inorgânica, a ponto de fazê-la desaparecer, parece possível que essa matéria inorgânica venha a gerar nova matéria orgânica, e daí novas formas de vida. Acho que a teoria do Big Bang (pela qual guardo bastante simpatia) segue essa linha. Parece-me uma teoria bastante plausível para se pensar a origem do universo, bem como o seu “possível” fim. Esta teoria afirma que o Universo surgiu há pelo menos dez bilhões de anos em virtude de uma explosão térmica resultante da compressão de energia. Portanto, o Universo teria sua origem nessa explosão e a matéria orgânica (a vida), por sua vez, teria sua origem na matéria inorgânica. Ora, se o fim do mundo ocorrer devido a uma nova e imensa explosão, podemos acreditar que ele não acabará de fato, mas sim que sofrerá grandes transformações, e que, talvez, sejam necessários mais alguns bilhões de anos para o mundo tomar uma forma tal qual ou apenas próxima a que conhecemos hoje. Também é lícito supor que será totalmente diferente, que jamais se organize nestes moldes, enfim, qualquer suposição a esse respeito que não esteja nem possa ser assentada na experiência (e não temos experiência da origem dos mundos, tampouco do fim), permanecerá no plano das hipóteses. É claro que numa explosão assim a raça humana não teria condições de sobreviver, mas note, da extinção da raça humana não se segue o fim do mundo. Podemos pensar em relação ao exemplo acima que um processo de desorganização e degeneração da matéria participaria de um processo de reorganização e regeneração. A desorganização tornar-se-ia um dos traços fundamentais da organização do sistema. Cabe perguntar: qual das hipóteses disponíveis é mais plausível? A ciência com suas descobertas e capacidade de predição torna-se aqui indispensável para responder mais satisfatoriamente a essa questão.