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domingo, agosto 09, 2020

Panta rei

Sonhei que o mar levava meu laptop. E, também, minha carteira de documentos. A angústia era a de que o mar levava com ele a minha vida, a minha história, o meu eu - o meu querido e amado eu. Mas, curiosamente, eu ainda permanecia ali, na beira do mar, com os pés na água, a contemplar aflita, e sem poder fazer nada, as ondas agitadas que tragavam a minha vida. 

Não havia sol. O céu estava nublado. E o vento um tanto frio. Sentia também um aperto a mais em meu coração. O de que minhas filhas estavam longe, cada qual numa cidade diferente, tal como de fato elas estavam. Fiz, então, uma espécie de experimento mental. Fechei os olhos, abri os braços e inspirei, profundamente, até estufar o peito de tanto ar. Transportei-me inteira, em corpo e alma, para o centro do meu coração. Foi como se só ele existisse. Mas, de repente, abriu-se uma fenda em meu peito e três veias pulsantes começaram a crescer, feito caules de plantas em busca de luz. Foi um momento de alento e esperança. Um dos caules enraizados em meu peito estendia-se sobre o mar aberto até alcançar o coração da Marina, lá em São Paulo. Um outro buscava o coração da Bibi em Londrina, e outro, bem mais comprido, em razão da longa distância, ia ao encontro do coração da Paulinha, lá em São Francisco, na Califórnia. Meu coração atravessava os mares. As veias entrelaçavam-se aos corações delas. E assim eu as trazia para perto. 

Nem o mar nem o céu eram propriamente sombrios, apenas melancólicos, de uma melancolia poética. Sombria era a angústia pela perda do meu eu que navegava à deriva sobre as ondas revoltas. Sombria era a angústia de ver minha vida arrastada e engolida pelo mar. 

De súbito, meu horizonte empalideceu. Acordei e fiquei ali mesmo, na cama, a rememorar as imagens e sensações vividas naquele sonho. Passados alguns minutos, levantei e fui até minha mesa de trabalho. Abri um de meus moleskines para escrever essas breves notas, antes que tudo se esvaísse de minha memória. Ao folheá-lo, encontrei o seguinte verso: 

"Há mar e mar / há ir e voltar", de Alexandre O'Neill. 

Panta rei... 

(marília côrtes | floripa | março | 2017)

(desconheço o autor dessa imagem)

segunda-feira, agosto 20, 2018

Recordação


E tu esperas, aguardas a única coisa
que aumentaria infinitamente a tua vida;
o poderoso, o extraordinário,
o despertar das pedras,
os abismos com que te deparas.

Nas estantes brilham
os volumes em castanho e ouro;
e tu pensas em países viajados,
em quadros, nas vestes
de mulheres encontradas e já perdidas.

E então de súbito sabes: era isso.
Ergues-te e diante de ti estão
angústia e forma e oração
de certo ano que passou.



Memory | 1948 | Rene Magritte


Erinnerung

Und du wartest, erwartest das Eine,
das dein Leben unendlich vermehrt;
das Mächtige, Ungemeine,
das Erwachen der Steine,
Tiefen, dir zugekehrt.

Es dämmern im Bücherständer
die Bände in Gold und Braun;
und du denkst an durchfahrene Länder,
an Bilder, an die Gewänder
wiederverlorener Fraun.

Und da weißt du auf einmal: das war es.
Du erhebst dich, und vor dir steht
eines vergangenen Jahres
Angst und Gestalt und Gebet.


Rainer Maria Rilke | in Das Buch der Bilder | O livro das imagens | 1902 | tradução de Maria João Costa Pereira | Lisboa | Relógio D’Água | 2005

sábado, outubro 21, 2017

Um álibi


Ele diz..: "É preciso ter um amor - um grande amor na vida, pois esse é um álibi para as angústias sem motivo pelas quais somos acometidos."



Albert Camus | A desmedida na medida | Cadernos 1937-1939 | Tradução de Raphael Araújo e Samara Geske | São Paulo | Hedra | 2014 | p.24

sexta-feira, março 25, 2016

Flutuações anímicas


O encontro havia sido marcado e o assunto anunciado. No exato momento em que ia tocar a campainha, a porta se abriu de repente. Olharam-se, de modo oblíquo, antes que um sorriso contido cintilasse involuntariamente em seus rostos. Ela entrou como um vulto. Sua alma adiantou-se ao corpo, tamanha a ansiedade. 

Com a respiração oprimida e o coração descompassado, passou em rápida revista a disposição daquela sala, cujos objetos lhe eram tão familiares. O pequeno sofá eternamente desconfortável. A enorme quantidade de livros, caixas e papéis espalhados pelo chão, mesa e prateleiras.  O móvel de bebidas destiladas. O abat-jour que não funcionava há tempos, assim como o velho aparelho de som igualmente inutilizado a ocupar o espaço, testemunhando, entre outras coisas, a longa história daquela união que constantemente desafiava o improvável. Notou a falta do belo tapete no qual, há mais de 15 anos, rolaram pela primeira vez. O lustre sobre a mesa que, sozinho, de vez em quando, bruxuleava rapidamente, e tantos outros objetos tão bem conhecidos, dentre os quais aqueles que evidenciavam a paixão dele pelo seu glorioso time de futebol.

Após sua alma retornar ao corpo, atravessou a sala como uma flecha. Não deu um beijo nele, um abraço, nada. Disse apenas oi. E sentou-se no sofá. Ele, por sua vez, puxou uma cadeira posicionando-se na diagonal. Sentindo-se incomodada, ela se virou de frente para ele e tirou os sapatos, colocando seus pequenos pés no pequeno e desconfortável sofá. 

Um silêncio opressor pesou sobre eles. Naquele instante, face to face, teve a mesma sensação de Humbert Humbert descrita por Nabokov em sua obra-prima Lolita: o pulso a marcar, num minuto, quarenta pulsações, no outro, cem.

Alguns meses antes, ela esteve madrugadas inteiras a escrever torrencialmente. Ao expressar suas flutuações anímicas diante dos sinais confusos que ele passara a transmitir após o primeiro reencontro, depois da última separação, os dedos crepitavam nos papéis. 

Replicadas à exaustão, propusera a si própria mil questões seguidas de mil respostas diferentes para cada uma. Ordenava-as, desordenava-as, reordenava-as, ruminando toda aquela parafernália de sentimentos, impressões e ideias que se sucediam em sua mente, na tentativa de concebê-las tão claras e distintas quanto as verdades matemáticas ─ uma tarefa inglória, por certo. De qualquer modo, era preciso começar a falar tudo que naquele momento estrangulava-lhe a garganta. Estava resoluta em não mais voltar. E era mister que fosse direta e reta. Porém, na imperiosa presença e argumentação dele, e diante de olhares tão íntimos, suas convicções se afrouxavam, suas dúvidas voltavam a lhe atormentar, e o espelho de sua mente, tantas vezes polido pela reflexão, embaçava novamente devolvendo-lhe a angústia da incompreensão.

Queria entender por que, afinal, ele resolvera quebrar o silêncio terminal que havia decretado três meses antes, depois de alguns reencontros e trocas de cartas que mais trouxeram dor do que propriamente alegria e prazer a ambos, dado o tempo dilatado de separação, no qual um havia aprendido a viver sem o outro, e em virtude do acúmulo de mágoas, rancores, remorsos e arrependimentos que passaram a habitar seus corações indelevelmente feridos? 

Após seis horas de conversas entremeadas por acusações recíprocas e alguns instantes sublimes, nos quais a intimidade e cumplicidade voltaram a reinar, chegaram à conclusão de que a questão não era mais se um havia aprendido a viver sem o outro, mas se a vida de ambos seria melhor, mais rica, prazerosa, promissora e feliz, com ou sem o outro.




sexta-feira, julho 16, 2010

Desencanto

Tenho que me livrar de umas ideias.
It’s now or never !
(acho que never, mas vou tentar).

Estou pela hora da morte com meus estudos, com o prazo apertado pra dar conta de tudo, e alguns pensamentos impostos pelas minhas angústias capturam-me de tal forma que fico a perambular, dia e noite, noite e dia, pela poesia, a procurar, quem sabe, um doce alento.

(e o trabalho a me puxar pelos cabelos...)

Há dias (e noites) comecei a namorar Manuel, Pablo, Federico... Ops... calma! Não se trata de nenhum caso de infidelidade conjugal, poligamia ou traição amorosa. Trata-se apenas de flertes entre mim e alguns poemas de García Lorca, Neruda, Manuel Bandeira e outros que encontro pelo caminho. Mas tudo não passa de uma troca de olhares, angústias e inquietações. Nada carnal...

Art by Nicoletta Tomas


Fico a procurar poemas que olhem pra mim e traduzam minhas aflições mal definidas, aflições de amor e de morte. Encontro muitos que vêm ao meu encontro. Outros que são puros desencontros. Eu abraçaria alguns por inteiro. Outros, apenas poucas linhas ou esparsos versos.

Eis aí somente um daqueles que eu abraçaria por inteiro.

Desencanto

Eu faço versos como quem chora
De desalento... de desencanto...
Fecha o meu livro, se por agora
Não tens motivo nenhum de pranto.

Meu verso é sangue. Volúpia ardente...
Tristeza esparsa... remorso vão...
Dói-me nas veias. Amargo e quente,
Cai, gota a gota, do coração.

E nestes versos de angústia rouca
Assim dos lábios a vida corre,
Deixando um acre sabor na boca.
- Eu faço versos como quem morre.

Manuel Bandeira. Em A Cinza das Horas (1917)

(e é assim, como quem morre, que eu acabo de ler e transcrever esses versos...)

domingo, agosto 03, 2008

Gosto Estranho


[Desenho: Graciliano Ramos, de Hugo Enio Braz]


Uma de minhas manias, ao pensar numa palavra, numa simples palavra, é seguir as trilhas de seus subseqüentes significados. Angústia, esta é a palavra! Para onde me levas? Há alguns anos fui atraída pelo peso do sentimento, e da própria palavra, a ler Angústia de Graciliano Ramos. Há, ali, litros e litros de angústia. Eis um golinho dela!


"Levantei-me há cerca de trinta dias, mas julgo que ainda não me restabeleci completamente. Das visões que me perseguiam naquelas noites compridas umas sombras permanecem, sombras que se misturam à realidade e me produzem calafrios. Há criaturas que não suporto. [...] Certos lugares que me davam prazer tornaram-se odiosos [...] Vivo agitado, cheio de terrores, uma tremura nas mãos, que emagreceram. [...] Impossível trabalhar. Dão-me um ofício, um relatório, para datilografar, na repartição. Até dez linhas vou bem. Daí em diante a cara balofa de Julião Tavares aparece em cima do original, e os meus dedos encontram no teclado uma resistência mole de carne gorda. E lá vem o erro. Tento vencer a obsessão... À noite fecho as portas, sento-me à mesa da sala de jantar, a munheca emperrada, o pensamento vadio longe do artigo que me pediram para o jornal. Em duas horas escrevo uma palavra: Marina. Depois, aproveitando letras deste nome, arranjo coisas absurdas: ar, mar, rima, arma, ira, amar. Uns vinte nomes. Quando não consigo formar combinações novas, traço rabiscos [...] e disparates. Penso em indivíduos e em objetos que não têm relação com os desenhos: processos, orçamentos, o diretor, o secretário, políticos, sujeitos remediados que me desprezam porque sou um pobre diabo. Tipos bestas. [...] O artigo que me pediram afasta-se do papel. É verdade que tenho o cigarro e tenho o álcool, mas quando bebo demais ou fumo demais, a minha tristeza cresce. Tristeza e raiva. Ar, mar, ria, arma, ira. Passatempo estúpido."

Pois bem, isso é só o começo! Bom mesmo é mergulhar naquela angústia. É claro que alguém poderia pensar: - mas que conselho esquisito... e eu lá quero isso pra mim? Que gosto estranho! Pode ser... so what?

Pra quem não conhece, mas quer conhecer, o protagonista de Angústia é Luís da Silva, um cara de 35 anos que, como vocês podem ver, tem um humor demasiado sensível. Ele é cáustico. Sua existência, de um lado, é completamente ordinária, mas seu mundo interior, aquele outro lado, está bem longe de ser frívolo. É mesmo de uma profundidade abissal!

Como bem nos conta Maurício Santana Dias, "narrador de sua própria história, Luis da Silva vive ruminando frustrações intelectuais, memórias de infância, o desejo desesperado pela vizinha Marina e o ódio pelo bem-sucedido Julião Tavares, que lhe rouba a pretendente". “A loquacidade de Julião Tavares aborrecia-me. Uma voz líquida e oleosa que escorria sem parar”.


"Escrito num andamento de pesadelo, mas com a concretude do pequeno detalhe cotidiano que é a marca do estilo de Graciliano Ramos, Angústia faz uma lenta imersão na consciência desse personagem complexo e atormentado, que afunda no inferno do ciúme [eu já cheguei lá também] e do ressentimento até o ponto de cometer um ato extremo".

“Afinal tudo desaparece. E, inteiramente vazio, fico tempo sem fim ocupado em riscar as palavras e os desenhos. Engrosso as linhas, suprimo as curvas, até que deixo no papel alguns borrões compridos, umas tarjas muito pretas”.