quinta-feira, fevereiro 25, 2021

Namorados do Mirante


Eles eram mais antigos que o silêncio
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
A Remontavam às origens — a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espécie — tudo mais tinha morrido.
Caíam lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas na magma incandescente
Que milénios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito.

Eles eram mais antigos que o silêncio...


[ Vinicius de Moraes | 1913-1980 | Nova antologia poética | Cia de Bolso]


by Shira Barzilay

sexta-feira, fevereiro 19, 2021

Necrológio dos desiludidos do amor


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.

Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho

enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.



Carlos Drummond de Andrade
Antologia Poética
Companhia das Letras

quarta-feira, fevereiro 03, 2021

Anuviada

Há um mês não publico nada aqui. Entro, começo a escrever, a preparar a publicação e deixo pra lá. Isso tem sido recorrente. Nesse movimento de acessar o blog e começar a escrever, acabo de constatar que tenho arquivados, só neste espaço, 122 rascunhos de postagens diversas (afora os rascunhos esboçados em meu computador, ou mesmo em minhas cadernetas de anotações). Tudo espalhado, entrecortado, fragmentado e fora de ordem. Poemas, minicontos, crônicas, comentários idiotas, citações literárias, filosóficas, comentadas ou não, ideias soltas, saltitantes. Tenho refletido muito sobre o que me leva a esse movimento de iniciar e abandonar o que escrevo: uma sensação de que precis... 



photographic art by Teresa Freitas