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terça-feira, agosto 15, 2023

Poesia e Filosofia


"Toda verdade pronunciada, conforme martelou Nietzsche, deixa atrás de si 'uma multidão movente de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em suma, uma soma de relações humanas poética e retoricamente realçadas, transpostas, ornadas…'" 

(NUNES, Benedito. Poesia e filosofia: uma transa. In: Ensaios Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2010).



The passion of creation | Leonid Pasternak | 1892


domingo, novembro 26, 2017

Alfinetada nietzscheana


Contra a soberba

Não se encha de ar: senão basta
Uma alfinetada para o estourar.



Para quem entende a língua alemã (o que não é o meu caso):

Gegen die Hoffahrt

Blas dich nicht auf: sonst bringet dich
Zum Platzen schon kleiner Stich.

[vich rs]

[Nietzsche | A gaia ciência | "Brincadeira, astúcia e vingança": Prelúdio em rimas alemãs | Tradução de Paulo César de Souza | São Paulo | Cia das Letras, 2001, p. 27]

sábado, agosto 27, 2016

A vida como fenômeno estético

Uma vez comentei com uma amiga sobre algumas obras de arte extremamente belas e delicadas (criação de uma artista grega chamada Mantha Tsialiou) que conheci, por acaso, pelo facebook. Mostrei as fotos de algumas obras à minha amiga que, por sua vez, mostrou-me, ali também pelo facebook, as obras de um amigo dela chamado Ygor Raduy (já publiquei um poema dele aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2016/08/na-borda-da-palpebra.html ). 

Bah... fiquei impressionada! Achei os desenhos e pinturas daquele rapaz, até então desconhecido pra mim, simplesmente maravilhosas, inquietantes, perturbadoras, especialmente suas figuras do abismo.

Não resisti e, completamente seduzida por aquelas obras, num impulso atrevido, enviei a ele uma solicitação de amizade pelo facebook. Digo impulso atrevido porque não costumo enviar convites de amizades a desconhecidos, e quase nem mesmo a conhecidos. Mas queria acompanhá-lo de perto. Tornamo-nos amigos "no face" (expressão engraçada, mas que está na boca de todos os seus usuários) e acabamos trocando algumas ideias numa conversa inbox tipo olá quem é você como chegou e o que faz aqui? Apresentei-me, falei um pouco do que percebia e sentia ao contemplar seus trabalhos e, a partir de então, passei a acompanhar as publicações não apenas de suas pinturas, mas também, para minha agradável surpresa, de seus textos literários e incrivelmente filosóficos.

Não tenho dúvidas de que ele tem uma extraordinária sensibilidade artística e filosófica, eu diria mesmo que ele é um artista genuinamente genial, bem ao modo como Schopenhauer fala da figura do artista-gênio no livro III de O mundo como vontade e representação, e bem ao gosto da tese de Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, segundo a qual a vida só tem sentido e pode ser justificada como fenômeno estético. Há claramente em suas obras uma fusão entre arte, filosofia e vida. Ele não apenas produz belas obras de arte, como também escreve maravilhosamente bem e, ainda, filosofa naturalmente. Tenho acompanhado seu facebook as an experiment, seus relatórios com diversos títulos e temas (relatório sobre nada muito importante, relatório sobre qualquer coisa, relatório com verdades definitivas, relatório sobre coisas esparsas), suas pinturas, desenhos e revisões de cânones, suas histórias esquisitas, seus exercícios de escrita, suas fotografias e reflexões em geral. Tudo é de uma tragicidade, riqueza e profundidade abissais.

Ao pensar sobre um tema caro à filosofia (e à vida de qualquer mortal-comum), isto é, a morte, vejam só o que ele escreve:


"Eu penso sobre a morte. Sem motivo algum, imagino que seja suave. Talvez seja macia como um acalanto é macio na infância. Talvez seja um envolver-se, um devolver-se, um deixar-se. Talvez morrer seja sedoso, como um imenso leito onde se repousa.  Talvez seja tentadora, a morte, como um mergulhar, um abandonar-se, um despir-se.  Para um corpo que vive, não há nada mais obsceno que a morte.  Mas já que sou humano, penso sobre ela. Será  a morte como um corte abrupto? Um baque? Um repentino desligar-se? Imagino a morte aveludada – talvez porque a vida seja tão áspera. A vida, aprendi, é dor. É o budismo que o diz. É a minha carne e o meu coração que o confirmam. Dor e Alegria, simultâneas. Mas a morte - talvez a morte seja a ausência, talvez o silêncio mais puro. Talvez seja o nada, talvez nela nos percamos de nós, talvez nos desliguemos – talvez seja um infinito esquecimento, um cessar, um interromper. A morte, eu imagino, é generosa, pois acolhe todo aquele que nela penetra. Quem está nela, já não sorri, já não goza, já não erra, já não avança, já não ama, já não sangra, já não arde. Meu único desejo é que na morte se possa ouvir Música. Não consigo suportar a ideia de um silêncio tão severo. Mas sei que a Música pertence à Vida. Quando a morte vem, a Música cessa. E há uma outra questão que me intriga: quando a morte vem, para onde vai o amor? É tão doloroso pensar que o amor também cessa quando a morte vem. Justo o amor, pelo qual juramos eterna sujeição, pelo qual derramamos sangue, suor, saliva, lágrima – é insuportável considerar que ele seja aniquilado pela câmara da morte, como um inseto.  Justo o amor, essa tina asquerosa e tóxica, dentro da qual chafurdamos. O amor, parente tão próximo do ódio. Eu pressinto que a morte não poupa nada, nem mesmo o amor, embora me doa esse pressentimento na alma como uma agulha dói quando enfiada na pele sem aviso."

(em http://streichspielen.blogspot.com.br/2010/05/sobre-morte.html)


Pois bem, posso reconhecer nessa reflexão alguns traços do pensamento de Epicuro (quanto à morte como dissolução e fim da consciência e, portanto, da dor e do sofrimento - um mergulho no nada) e Schopenhauer (no que respeita à sua teoria da prevalência do mal e do sofrimento na vida). E posso reconhecer, além de tudo isso e muito mais, um representante de uma nova geração de filósofos: "os filósofos do perigoso talvez a todo custo" - que Nietzsche prenuncia em Além do bem e do mal § 2, p.10-11).


[todos as obras de arte acima publicadas são de Ygor Raduy]

sábado, fevereiro 13, 2016

That's the point

Eis aí algo em que eu acredito.
Quem é do métier sabe...


Trabalho e tédio. ─ Buscar trabalho pelo salário ─ nisso quase todos os homens dos países civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma boa renda. Mas existem seres raros, que preferem morrer a trabalhar sem ter prazer no trabalho: são aqueles seletivos, difíceis de satisfazer, aos quais não serve uma boa renda, se o trabalho mesmo não for a maior de todas as rendas. A esta rara espécie de homens pertencem os artistas e contemplativos de todo gênero, mas também os ociosos que passam a vida a caçar, em viagens, em atividades amorosas e aventuras. Todos esses querem o trabalho e a necessidade, enquanto estejam associados ao prazer, e até o mais duro e difícil trabalho, se tiver de ser. De outro modo são de uma resoluta indolência, ainda que ela traga miséria, desonra, perigo para a saúde e a vida. Não é o tédio que eles tanto receiam, mas o trabalho sem prazer; necessitam mesmo de muito tédio, para serem bem-sucedidos no seu trabalho. Para o pensador e para todos os espíritos inventivos, o tédio é aquela desagradável “calmaria” da alma, que precede a viagem venturosa e os ventos joviais; ele tem de suportá-la, tem de aguardar em si o seu efeito: ─ é justamente isso o que as naturezas menores não conseguem obter de si! Afastar o tédio a todo custo é vulgar: assim como é vulgar trabalhar sem prazer [...].


[Nietzsche. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, Livro I, Aforismo 42, p. 85].

segunda-feira, agosto 10, 2015

Ventos uivantes

Os ventos estão uivantes, hoje, aqui, nessa cidade que não é minha. Uivaram a noite inteira. Quem leu O Morro dos Ventos Uivantes sabe o que isso significa. Talvez, lá em baixo, nas ruas, eles apenas soprem um ar morno, aquecido por um sol que brilha timidamente num céu de braços abertos. Mas cá, dentro do meu minúsculo e acolhedor apartamento, pelas frestas das janelas, ele uiva geme grita se contorce e chora, anunciando o maior dos pesos, isto é, o eterno retorno do mesmo

Há tempos eu não amaldiçoava, rangendo os dentes, o demônio que volta e meia aparece furtivamente em minha mais desolada solidão dizendo que terei de viver esta vida, como a estou vivendo neste instante e já a vivi outrora, mais uma vez e por incontáveis vezes; e que nada haverá de novo nela, que cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e que tudo que é inefavelmente grande e pequeno em minha vida terá de me suceder de novo, tudo na mesma sequência e ordem, e que a perene ampulheta do existir será sempre virada novamente, e eu, mera partícula de poeira, serei virada e revirada junto com ela (e todas as outras partículas de poeira). Minutos depois, após suspirar e pensar mais um pouco, lembrei-me que já experimentei instantes imensos nessa minha vida (muito maiores, melhores e mais frequentes do que este), nos quais certamente eu poderia dizer que esse demônio, na verdade, é um deus, e que a mensagem que ele assopra agora em meus ouvidos me permite exclamar, com grande contentamento, jamais ter ouvido coisa tão divina.


[quem conhece Nietzsche deve também conhecer (ou ao menos ter ouvido falar) de sua teoria sobre O eterno retorno do mesmo  anunciada no aforismo 341 de A Gaia Ciência, p.230, fonte inspiradora desse post, da edição da Cia. das Letras, 2001, e desenvolvida no Assim falou Zaratustra].

domingo, junho 14, 2015

Amizade Estelar

" ─ Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho, podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos ─ e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido só um destino. Mas então a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo ─ ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos ─ elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. ─ E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra."

(Nietzsche. A Gaia Ciência IV §279, p.189-190)



Não me lembro quando li pela primeira vez esse aforismo de A Gaia Ciência. Provavelmente foi quando comecei a estudar Nietzsche, a fim de desenvolver um projeto de iniciação científica (CNPq), na época de minha graduação (idos de 2000-2002). Há algum tempo, ao retomar minhas leituras de partes da obra deste autor perturbador, tropecei várias vezes neste belo e trágico aforismo, já tão lido, relido, trelido, pensado, sentido, interrogado e grifado. Pensei: por que ele me chama tanto a atenção? Por que ele me afeta tanto? Por que meu coração se ressente ao lê-lo? Well, não estabeleci nenhuma relação do que Nietzsche afirma nele com a pessoa para a qual ele destina este aforismo. Pois tal aforismo nunca fez propriamente parte dos temas que me propus a estudar. Minha interpretação sempre foi, num certo sentido, totalmente parcial e descontextualizada do restante de sua obra (se é que me permitem...). Sempre admirei o teor poético, imagético e passional (bem ao estilo amor-fati) do que Nietzsche escreve. Ao lê-lo, sentia em meu coração (e sinto sempre que o leio) uma dorzinha aguda e gelada. Pensava no valor da amizade e lembrava da minha amizade mais cara. Perguntava-me: será que será assim? E repetia a mim mesma, como quem torce fazendo figa: tomara que não, tomara que não! Quero continuar a crer em nossa amizade terrena, ainda que ela possa ser também estelar e celestial.

[Há uma ano e meio li a biografia de Lou Salomé e pensei se Nietzsche teria escrito esse aforismo pensando nela. Eu não havia feito ainda nenhuma pesquisa a respeito. Na época, não fui adiante com minha dúvida. Mas, lendo-o novamente esses dias, fiquei curiosa. E fui conferir. Descobri que Nietzsche escreveu-o de modo a deixar "claro que não poderia atender ao apelo" do grande compositor Richard Wagner "para resgatar uma amizade perdida." Ao menos é o que está dito na sinopse do livro Amizade Estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, de Rosa Maria Dias, que, aliás, ainda não li. Quem sabe um dia. Até lá... (ou talvez para sempre) mantenho minha leitura parcial, ainda que agora eu saiba que a relação de amizade que serviu de mote a este aforismo é outra].

quarta-feira, abril 16, 2014

Oh vida enigmática!


Hino à vida

Claro, como se ama um amigo
Eu te amo, vida enigmática –
Que me tenhas feito exultar ou chorar,
Que me tenhas trazido felicidade ou sofrimento,
Amo-te com toda a tua crueldade,
E se deves me aniquilar,
Eu me arrancarei de teus braços
Como alguém se arranca do seio de um amigo.
Com todas as minhas forças te aperto!
Que tuas chamas me devorem,
No fogo do combate, permite-me
Sondar mais longe teu mistério.
Ser, pensar durante milênios!
Encerra-me em teus braços:
Se não tens mais alegria a me ofertar
Pois bem – restam-te teus tormentos.

[Lou-Andreas Salomé]

Devo confessar, ainda que a contragosto de muitos, que embora eu estude Hume e outros filósofos criticados por Nietzsche, tenho uma forte identificação com este autor, especialmente no que diz respeito ao seu interesse e apreço pela relação entre a arte, a filosofia, a vida e o espírito trágico.

Ora, mas o que tem a ver falar de Nietzsche aqui se o poema é de Lou- Salomé? Pois bem, não estou aqui para falar propriamente de Nietzsche, mas sim e tão-somente apresentar o belo poema da escritora russa Lou Salomé [1861-1937] (o grande amor da vida de Nietzsche), considerada a primeira mulher moderna que existiu na face desse ínfimo planeta chamado Terra.

Lou entregara um exemplar deste poema como presente de despedida a Nietzsche ao deixar Tautenburg  ─ local onde passou as férias de verão com ele e sua irmã Elizabeth Nietzsche. A meu ver, o poema revela que, a despeito da relação Lou-Niezstche não ter dado certo ─ pois embora Lou admirasse Nietzsche em demasia, desejava ser apenas sua amiga ─ eles compartilhavam do mesmo espírito trágico, ou, digamos assim, do mesmo amor fati (revelado no poema acima).



[Aviso aos leitores navegantes que o poema pode ser encontrado em traduções ligeiramente diferentes. Como não entendo bulhufas de alemão nem de russo, tenho que me contentar (e confiar... sempre com aquele ceticismo mais do que recomendado) com a pesquisa que fiz pela internet, pois o poema não aparece completo na biografia que li durante minhas férias de verão 40 graus, em dezembro de 2013. Se algum ser bondoso e versado na língua original do poema, preocupado com a precisão da tradução (que é mesmo importante), quiser fazer alguma correção, sinta-se à vontade].

A referência da biografia de Lou-Andreas Salomé é a seguinte:
Peters, H.F. Lou: minha irmã, minha esposa. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, (com prefácio de Anaïs Nin).  

quarta-feira, abril 17, 2013

Nietzsche: o filósofo do perigoso talvez!

ECCE HOMO

[Nietzsche - 2010, by Alexandre Bellei] 


"Com todo o valor que possa merecer o que é verdadeiro, veraz, desinteressado: é possível que se deva atribuir à aparência, à vontade de engano, ao egoísmo e à cobiça um valor mais alto e fundamental para a vida. É até mesmo possível que aquilo que constitui o valor dessas coisas boas e honradas consista exatamente no fato de serem insidiosamente aparentadas, atadas, unidas, e talvez até essencialmente iguais a essas coisas ruins e aparentemente opostas. Talvez! ─ Mas quem se mostra disposto a ocupar-se de tais perigosos "talvezes"? Para isso será preciso esperar o advento de uma nova espécie de filósofos, que tenham gosto e pendor diversos, contrários aos daqueles que até agora existiram ─ filósofos do perigoso "talvez" a todo custo. ─ E, falando com toda a seriedade: eu vejo esses filósofos surgirem" (ABM. Dos preconceitos dos filósofos, § 2, p.10-11).

Escolhi essa passagem de Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro, uma das principais obras de Nietzsche, como ponto de partida e fio condutor do tema do próximo minicurso de Filosofia para Diletantes, promovido pela Aldeia Coworking de Londrina. O tema versa sobre aquilo que se pode encontrar de mais fundamental e saliente na filosofia de Nietzsche, ou seja, sua crítica à cultura. A meu ver, esta passagem já nos dá um pequeno indício do quanto Nietzsche é um autor très polemique, capaz de provocar um verdadeiro bouleversement em nossas cabeças. Posso garantir (e eu vou procurar mostrar) que muito do que ele diz é de revirar o estômago de qualquer cristão (e saibam que é possível dizer que, num certo sentido, é isso mesmo que ele quer). Aliás, nem é preciso ser cristão, basta ser, digamos assim, humano, ainda que alguns humanos escapem, pelo bem ou pelo mal, ao mal-estar que suas ideias podem provocar.

Por outro lado, Nietzsche (dotado de um virtuosismo sem igual no trato com sua língua materna) possui um poder encantatório, capaz de seduzir e enlevar os mais diversos tipos de leitor: filósofos, poetas, literatos, dançarinos, dramaturgos, artistas plásticos, mortais comuns... ora, o que faz com que Nietzsche seja tão lido e difundido? O que faz com que seus leitores oscilem entre o fascínio e a repulsa? Quem é esse filósofo artista dançarino bufão e dinamite, que propõe que transvaloremos nossos valores, se autodenomina o primeiro imoralista (EH, p. 101) e se julga a uma altura em que já não fala “com palavras, mas com raios” (EH, p.102)? Quem é esse autor subversivo que coloca a superação da compaixão entre as virtudes nobres (EH, p.51) e baila ora com ora sobre a nossa moral? Quem é esse virtuose da linguagem que em Assim Falou Zaratustra diz que de tudo o que se escreve aprecia  "somente o que alguém escreve com seu próprio sangue" (p.56)? Quem é esse "cara"  (ops, desculpem-me a intimidade) que diz ter se dado conta de que "Sócrates e Platão são sintomas de declínio" (CI II § 2), e ousa declarar que Leibniz e Kant são "dois grandes entraves à retidão intelectual da Europa" (EH, p.145)? Enfim, para encerrar essa primeira série de perguntas, lá vai... quem é essa nitroglicerina pensante que nos convida a dizer adeus às velhas verdades e anuncia, em A Gaia Ciência, que Deus está morto (GC § 125)? 

Nietzsche afirma: “reconhecer a inverdade como condição de vida: isto significa, sem dúvida, enfrentar de maneira perigosa os habituais sentimentos de valor; e uma filosofia que se atreve a fazê-lo se coloca, apenas por isso, além do bem e do mal” (ABM. Dos preconceitos dos filósofos, § 4, p.11). 

Pois bem, reconhecer a inverdade como condição de vida é, obviamente, reconhecer a mentira (e também, conforme veremos, a ilusão, a aparência, os véus e máscaras) como condição de vida. Hã? Será que ouvi direito? Como assim? O bem pode não ser mais bem e o mal pode não mais ser mal? Ops, sim! não! não é bem assim, talvez... calma... eu explico! ou ao menos arrisco!

Again: Ecce Homo!


Filosofia para Diletantes
Nietzsche Crítico da Cultura

A crítica da cultura empreendida por Nietzsche constitui-se num dos temas mais fundamentais de sua filosofia. Nietzsche pretende demolir os valores da tradição filosófica, em especial, aqueles implantados por Sócrates, isto é, a crença na racionalidade, no bem em si, na unidade do conhecimento, na objetividade e na verdade. No primeiro período de seus escritos, cujas obras compreendem os anos de 1869 a 1876, Nietzsche tematiza uma oposição entre arte e conhecimento deixando clara a sua posição: a arte é mais importante do que a ciência. A primeira direção da reflexão nietzscheana sobre a ciência é uma "investigação sobre as questões afins do conhecimento, do pensamento, do intelecto, da razão, da consciência e, sobretudo, da verdade" (cf. Machado: 1989, p.9). Criticar a ciência é, para Nietzsche, fundamentalmente, criticar a ideia de verdade, considerada como um valor superior, um ideal sagrado. Posteriormente, a reflexão nietzscheana seguirá uma segunda direção: buscará mostrar que, pelo fato de a ciência não estar isenta de juízos de valor, há um certo parentesco, uma relação de continuidade entre ciência e moral, porquanto é a moral que dá valor à ciência, isto é, valor ao conhecimento. A valorização da arte como atividade que dá acesso às questões fundamentais da existência é, para Nietzsche, a alternativa modelar que lhe permite pensar a renovação da cultura alemã de seu tempo.  Um mergulho em suas obras nos faz ver que, em geral, todas elas “incitam a uma inversão das valorações habituais e dos hábitos valorizados” (Humano Demasiado Humano. Prólogo, p.7), quer dizer, a uma transvaloração de todos os valores. Ele inicia sua transvaloração colocando sob suspeita todos os valores consagrados da moral, da religião, da ciência, da metafísica e, portanto, de toda a cultura denominada cultura superior, uma vez que, de acordo com Nietzsche, de uma perspectiva filosófica, todos os problemas da filosofia são problemas de valor. E, para ele, a medida de valor se estriba na pergunta: “Quanta verdade suporta, quanta verdade ousa um espírito” (Ecce Homo, p.39)? É o que vamos ver!

PROGRAMA
MÓDULO II

O minicurso está dividido em quatro encontros nas seguintes quartas-feiras:
08/05 - 15/05 – 22/05 – 05/06, das 20 às 22 horas, na Aldeia Coworking Londrina

1. Introdução: A crítica de Nietzsche aos valores da tradição filosófica (08/05)
1.1. O universo filosófico tradicional criticado por Nietzsche
1.2. Socratismo, Platonismo e Cristianismo

2. A relação entre arte e conhecimento (15/05)
2.1. A justificação da existência como fenômeno estético
2.2. O apolíneo e o dionisíaco

3. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro (22/05)
3.1. A verdade como ideal sagrado da filosofia
3.2. A inversão do platonismo e a metáfora feminina da verdade

4. O projeto transvaloração de todos os valores (05/06).
4.1. Perspectivismo
4.2. Vontade de Poder
4.3. Eterno Retorno e Amor Fati

Abaixo, para os mais sedentos, referências de algumas importantes obras de Nietzsche.

NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
NIETZSCHE, F. Além do Bem e do Mal: Prelúdio a uma Filosofia do Futuro. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.
NIETZSCHE, F. Assim Falou Zaratustra. Tradução de Mário da Silva. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977.
NIETZSCHE, F. Aurora:Reflexão sobre os preconceitos morais. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
NIETZSCHE, F. Cinco Prefácios para cinco livros não escritos. Tradução de Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos Ídolos ou como se filosofa com o martelo. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo. Companhia das Letras, 2006.
NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Tradução de Paulo César de Souza.  2ª. ed. São Paulo: Max Limonad, 1986.
NIETZSCHE, F. Genealogia da Moral.  Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Brasiliense, 1987.
NIETZSCHE, F. Humano, Demasiado Humano I. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 2000.
NIETZSCHE, F. O Anticristo. Ensaio de uma crítica do cristianismo. Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre: L&PM POCKET, 2008.
NIETZSCHE, F. O Livro do Filósofo. Tradução de Ana Lobo. Porto : Rés, s.d.
NIETZSCHE, F O Nascimento da Tragédia ou Helenismo e Pessimismo. Tradução de J. Guinsburg. 2ª ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. 
NIETZSCHE, F. Os Pensadores. Tradução de Rubens Rodrigues Torres Filho. São Paulo: Nova Cultural, 1999.

A LP&M Pocket publicou várias obras importantes de Nietzsche a preços bem acessíveis

A obra citada sobre Nietzsche é de:
MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. São Paulo: Paz e Terra. Graal, 1999.

clique no cartaz para visualizar as informações sobre como se inscrever no curso 

quarta-feira, novembro 11, 2009

Vaidade das vaidades: uma paixão vital


Hoje resolvi fazer aquela brincadeira de abrir um livro numa página qualquer para saber o que ele teria a me dizer de interessante, e que eu pudesse fazer comentários, de preferência, também, interessantes rs. Isso foi às 7:00 hs da manhã, quando me preparava para ir à academia cuidar um pouco, se Platão estiver certo, do cárcere da minha alma. Ora, se tenho de manter minha alma durante toda a minha vida num cárcere, que seja, então, num cárcere bem cuidado e agradável de se habitar.

Escolhi abrir o livro das citações de Eduardo Gianetti, já que ali se encontram boas e interessantes citações, especialmente, de filósofos e literatos. Perguntei a mim mesma: o que este belo e bom livro tem a me dizer right now? Abri, assim, ao acaso, na página 226, capítulo III.8 sobre “Ética pessoal: vícios, virtudes, valores”, intitulado, Vanitas Vanitatum, et Omnia Vanitas (Vaidade das vaidades, tudo é vaidade). Aliás, devo confessar, sem cerimônia, um título muito apropriado à ocasião, à minha própria pessoa e, conforme a opinião da maioria das mais eminentes figuras deste mundo, muito apropriado a qualquer pessoa; poder-se-ia mesmo dizer: a vaidade é própria da natureza humana.

É claro que ela deve variar em grau ou intensidade de pessoa para pessoa, mas, ao fim e ao cabo, o que eles dizem é que somos todos seres vaidosos (je suis d’accord). E isso, pelo que se vê, ocorre tanto pelo bem quanto pelo mal. Porém, em geral, fala-se da vaidade como algo muito negativo, uma guerra entre egos obesos (sabe-se que o desejo de admiração, reconhecimento e glória, quando levado ao exagero, transforma-se num dos sete pecados capitais). Todos se vangloriam de perceber a vaidade nos outros, mas quase ninguém a percebe em si próprio (o que não é o meu caso: percebo nos outros e em mim própria haha). Embora possamos mesmo constatar a existência de uma verdadeira guerra de vaidades entre as pessoas, num sentido negativo, por outro lado, penso que a vaidade, numa certa medida e, de preferência, na medida certa (quem sabe qual é?) é uma característica positiva da nossa natureza: uma paixão vital!


Ao que tudo indica, Malebranche (La recherche de la verité) concordaria comigo (rs, na verdade, eu é que concordo, em parte, com ele), pois eis o que o eminente padre diz: “Os homens não estão cientes do calor que emana de seu coração, embora ele dê vida e movimento a todas as outras partes do seu corpo. [...] O mesmo se dá com a vaidade: ela é tão natural para o homem que ele não a percebe. E, embora seja isso que dê, por assim dizer, vida e movimento à maioria dos seus pensamentos e desígnios, isso ocorre de um modo que é imperceptível para o sujeito”. Bom, eu diria quase imperceptível, tanto que na sequência Malebranche usa o termo ‘suficientemente’. “[...] Os homens não percebem suficientemente que é a vaidade que dá ímpeto à maioria de suas ações” (p.224). Não sei se na sequência da obra Malebranche depreciará o valor da vaidade (pois a citação se encerra aí), mas, a partir do que foi dito acima, pode-se reconhecer que a vaidade é, no mínimo, um elemento essencial em nossa vida.

La Rochefoucauld (Maxims), por sua vez, ao que parece, também concebe de modo positivo a presença da vaidade em nossa natureza quando afirma: “a virtude não iria longe se a vaidade não lhe fizesse companhia” e que “se alguma vez chegamos a admitir as nossas deficiências, fazemos isso por vaidade” (p.226).

Adam Smith (The theory of moral sentiments) segue mais ou menos a mesma linha quando assinala: “o desejo de obter a estima e a admiração de outras pessoas, quando se dá por meio de qualidades e talentos que são objetos naturais e apropriados da estima e da admiração, é o amor real da verdadeira glória; uma paixão que, se não é a melhor da natureza humana, está certamente entre as melhores. A vaidade é com freqüência nada mais que a tentativa de usurpar prematuramente essa glória antes que seja devida. Embora seu filho, antes dos vinte e cinco anos, não passe de um pretensioso, não desespere, por isso, de que ele se torne, antes de chegar aos quarenta, um homem sábio e valoroso, com real aptidão para todos os talentos e virtudes em relação aos quais não passa, no presente, de um vazio e exibido dissimulador. O grande segredo da educação reside em direcionar a vaidade para os objetos apropriados” (p.232-233).

Hugh Blair (On the proper estimate of human life) pensa que “embora todos os homens estejam de acordo sobre a doutrina geral da vaidade do mundo, tal é a sedução do amor-próprio que, não obstante, quase todos se vangloriam de que o seu próprio caso é uma exceção à regra comum” (p.224).

Na linha dessas reflexões, Nietzsche (Human, all too human), talvez o mais assumido vaidoso de todos os vaidosos, aquele que explica, em Ecce Homo, por que ele é tão sábio, tão inteligente e por que escreve livros tão bons, dá a velha e habitual alfinetada: “Aquele que nega possuir vaidade normalmente a possui de forma tão brutal que instintivamente ele fecha os olhos diante dela para não se ver obrigado a desprezar a si mesmo” (p.226).

Carlos Drummond de Andrade (Passeios da ilha), por seu turno, fala de si próprio do seguinte modo: “por muito que examine a minha vaidade, não lhe vejo o mesmo tom desagradável da dos outros. O que é uma vaidade suplementar” (p.224).

Já Hume abre sua autobiografia “My Own Life” escrevendo: “é difícil para um homem falar por muito tempo de si mesmo sem vaidade, portanto serei breve” (p.233).

Para encerrar, deixo aqui as palavras de Pascal (Pensées) a respeito do assunto:

“A vaidade está tão arraigada no coração do homem que um soldado, o ajudante de um soldado, um cozinheiro, um porteiro, todos vivem a se gabar e a procurar admiradores, e mesmo os filósofos [eu diria que, em geral, principalmente os filósofos] desejam tê-los. E aqueles que escrevem contra a vaidade desejam ter a glória de escrever bem; e aqueles que leem o que estes escreveram desejam a glória de ter lido isso; e eu, que escrevo este ataque à vaidade, talvez alimente também o mesmo anseio de glória: e talvez também os que leem isto” (colchetes meus, p.228).


(Citações extraídas de GIANETTI, Eduardo. O livro das citações: um breviário de ideias replicantes. São Paulo: Companhia das Letras, 2008 [cap. III8]. As páginas referem-se às citações encontradas no livro de Gianetti, e não às encontradas nas obras dos autores citados).

terça-feira, abril 21, 2009

Apetite de viver e vontade de potência

Caro Aguinaldo, obrigada pelo comentário... sempre provocador!!! E já que rendeu interpretações diversas, resolvi publicar minha resposta nesse outro post.

Não acho que você interpretou mal. Mas sim de uma perspectiva unilateral. Acredito que o desespero pode ser entendido negativamente e associado à ausência de esperança, como algo que retira o amor de viver, como você falou. Mas também pode ser associado à esperança desesperada de vida, ou desespero de viver, de amar, de desejar e de ser feliz.

Posso dizer que fiz a associação que você fez em raríssimas situações em minha vida. O que me chamou a atenção na frase de Camus (e que me fez concordar com ele, por entendê-la a partir da minha vida, e não da dele) é a perspectiva, bem ao gosto nietzscheano (sorry rs), da Vontade de Potência, e, às vezes, mas só quando estou pessimista, ao gosto schopenhaueriano. No caso de Schopenhauer, refiro-me àquela vontade de vida insaciável, autofágica, sem direção e fim que nos leva a pendular do tédio à necessidade numa insatisfação desesperada. É um apetite desordenado, um desespero, mas não no sentido que geralmente eu entendo.

Meus desesperos não foram e não são raros, mas são desesperos que, em geral, aumentam o meu apetite de viver. Por isso simpatizo-me mais com a teoria nietzscheana (e aqui não quero entrar no mérito ou demérito de se Nietzsche é filósofo, poeta, bufão, louco ou dinamite) da Vontade de Potência, segundo a qual viveríamos (desesperadamente, a meu ver, se o quantum de vontade de potência for grande e forte) para ultrapassar limites, vencer desafios, culpas e ressentimentos – um auto superar-se, mas não naquele sentido piegas que a gente vive criticando rs.

Sendo mais radical, penso num desespero de poder vencer a morte. Não só a grande morte, no caso de a vida estar em risco, devido a uma doença fatal, um acidente grave, uma catástrofe, tragédia, ou apenas uma depressão profunda que, no extremo, te leve ao suicídio; como as pequenas mortes que vivemos em vida, ou seja, toda e qualquer perda que nos custe caro - como a de um amor, por exemplo.

Antes de associar desespero à falta de esperança, associo-o à esperança desesperada de superar (ou não ter que passar por) tudo isso aí que eu falei. É a idéia do náufrago que diante da consciência da morte iminente, agonizante, agarra-se a uma palha (ou tábua) na esperança de permanecer vivo: é desespero, mas é desespero de vida, de amor pela vida e por si próprio.

Você mesmo já me falou em algumas situações: nossa! como você ama a vida! não se desespere! Numa dessas vezes eu estava mesmo desesperada... e de medo! Voltávamos de Passo Fundo e na estrada despencou aquela chuva torrencial que tornou a viagem extremamente tensa e perigosa. Não enxergávamos um palmo adiante do nariz, não dava pra parar nos acostamentos, verdadeiras correntezas se formavam nas baixadas e curvas.

Enquanto isso, do outro lado do Estado do Paraná, minhas filhas mais novas também estavam na estrada, voltando de São Paulo com o pai, e eu, ali, com aquele espírito terrivelmente trágico, sofria desesperadamente com a idéia de que eles poderiam estar numa mesma (ou pior) situação, e que, portanto, alguma tragédia poderia ocorrer, fosse com eles ou conosco. O que me restava? Uma esperança desesperada de ultrapassar tudo aquilo e viver (apesar de tudo, pra mim, la vita è bella rsrs).

Quero (e acho que todo mundo quer) viver bem, feliz, com satisfação e prazer. Mas você sabe... não me agrada viver mornamente (não que eu goste de passar pela situação acima descrita). Como sou imperfeita, transbordo pelas tampas e peco, naturalmente, e na maioria das vezes, pelo excesso: excesso de intensidade rsrs. É isso que faz com que eu me identifique com o apetite desordenado, desespero e amor de viver de que Camus fala. Tá certo que com a experiência consegui ordenar melhor esse meu apetite, mas ainda faço muita desordem nessa vida hehehe.

Um beijo.


domingo, abril 12, 2009

O apetite desordenado de viver


No prefácio que Albert Camus (1913-1960) escreve em O Avesso e o Direito, ele mesmo se refere à frase "Não há amor de viver sem desespero de viver", revelando que na época em que a escreveu (aos 22 anos), "não sabia a que ponto dizia a verdade" pois "não tinha atravessado, ainda, os tempos do verdadeiro desespero." A frase se encontra no ensaio Amor pela Vida.

É engraçado, a primeira vez que li essa frase (bom... eu já tinha 39 anos), meu coração disparou e nunca mais parou de disparar por ela.

Ela está duplamente grifada: no prefácio e no ensaio. Cada vez que a leio sinto-me profundamente tocada. Verdade ou não, ao rememorar meus 22 anos, lembrei-me que eu já havia experienciado sim, algumas vezes (e não poucas), o verdadeiro desespero, não só já aos 22 anos, como a todos os que se seguiram e se seguiam...

Alguém poderia pensar agora: NOSSA! O que será que ela viveu tanto assim para falar em verdadeiro desespero? Eu diria, eu vivi muitas coisas que não vêm aqui ao caso (uma hora dessas eu conto... rs, em partes, é claro!). O ponto não é o quê (o quid), mas como eu vivi cada segundo dessa minha vida, com que intensidade: dúvidas, incompreensões, erros, euforias, alegrias, dores e dilemas morais, desejos, frustrações, medo, amor, ódio, algumas dores físicas... ah... como briguei comigo e com o mundo, como quis que o universo se ajustasse aos meus desejos, como chorei, como virei do avesso, como tentei me endireitar (em algumas coisas eu consegui haha), como ri, como me regozijei, como me desesperei!

Camus diz que estes tempos chegaram e conseguiram destruir tudo nele, "exceto, justamente, o apetite desordenado de viver." Eis outra frase que me arrebata, pois isso nada mais é do que paixão, um tema que eu persigo e que me persegue: esse apetite desordenado de viver.

Camus revela ainda sofrer dessa paixão, "ao mesmo tempo fecunda e destrutiva, que explode até nas páginas mais sombrias de O Avesso e o Direito". Ele fala em "ardor esfomeado", no que a vida tem de melhor e pior. Isso me faz lembrar o amor fati de que Nietzsche fala, de seu reclame à retomada do espírito trágico. Depois, Camus cita Stendhal: "Mas a minha alma é um fogo que sofre se não arde."

Os ensaios reunidos em O Avesso e o Direito foram escritos entre 1935 e 1936 e publicados em 1937, na Argélia, em tiragem muito reduzida. A edição foi rapidamente esgotada e Camus se recusou a reimprimi-la por 20 anos. Quem quiser saber por que terá de ler o prefácio que o autor adicionou à sua reedição. Só o prefácio já vale a obra. E a obra... ah... a obra, você terá de ler também. E acho que não é preciso dizer por que...

quarta-feira, junho 14, 2006

Sobre o quadro "Ser ou não ser?" do Fantástico


Foi ao ar no programa Fantástico do último domingo [11.06.06] o quadro pretensamente filosófico “Ser ou não Ser?”, apresentado por Viviane Mosé. O tema do programa configurou-se em torno da concepção de Disputa, Guerra ou Conflito. Viviane Mosé apresentou algumas situações criadas pelos homens, nas quais se dão a disputa, o conflito, ou mesmo a guerra. Entre essas situações pudemos ver algumas competições que fazem parte do contexto de certas culturas indígenas, dos jogos olímpicos e copas do mundo. A concepção de disputa escolhida para desenvolver o tema foi aquela encontrada nas teorias do filósofo Nietzsche. Várias outras concepções de conflito foram ali salpicadas, em especial, a dos gregos em geral (generalização inapropriada a meu ver) e a de Sócrates. Porém, é preciso distinguir bem cada uma delas. Mas isso eu só conseguiria fazer em aulas, ou com um texto de no mínimo 50 páginas (acho que vocês prefeririam aulas rsrsrsrsrs). Do modo como as concepções foram apresentadas, pareceu que Nietzsche e Sócrates convergem em seus pensamentos. Contudo, entre Nietzsche e Sócrates há mais divergências do que convergências. Vale lembrar que Sócrates era um apologista do logos e Nietzsche um contundente crítico do logos (Cadê o dicionário, moçadinha?).

De fato, o tema é bastante instigante, mas confesso que fiquei com uma sensação de frustração. Apesar de se poder considerar a proposta do programa válida, na medida em que, no mínimo, contribui para despertar a curiosidade de alguns (provavelmente poucos) interessados, uma coisa é certa: ele peca por induzir o telespectador à superficialidade e confusão. Esse é o problema de se tentar tratar de filosofia em poucos minutos. Talvez não se deva imputar culpa à apresentadora. A meu ver o programa, por sua própria natureza (a de apresentar o tema em apenas alguns minutos), não permite o aprofundamento necessário para que a obscuridade e confusão dêem lugar à clareza e precisão. A pressa é uma das maiores inimigas da filosofia.