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domingo, março 26, 2023

no need


não precisamos
tagarelar sobre
o óbvio.
exaurir sentidos.
exclamar pequenos
momentos.
gastar sentimentos.
podemos ser elegantes.
apenas instantes.
nem precisamos falar
desses dissabores.
desses segredos.
dos nossos amores.
só o silêncio e o vento
falam alguma coisa
noite adentro.

..............................................

[Iara Rossini Lessa (1965 - 2021)]

amiga que partiu,
assim,
de repente,
sem se despedir.

talvez por saber que,
na verdade, 
sua vida se esvaía,
mas ela permaneceria.

Robert Van Vorst Sewell, Nymph [1887]


segunda-feira, janeiro 30, 2023

Plenitude

Estive vasculhando algumas velhas anotações e encontrei a seguinte passagem: 

"só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar em um parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro" (Lou Andreas-Salomé).

Não sei quando a anotei, nem de onde a extraí. Tenho duas biografias de Lou Salomé. Uma delas, li e grifei inteirinha (a que tem um prefácio da Anaïs Nin), cujo título é LOU, minha irmã, minha esposa, de H. F. Peters (Jorge Zahar). A outra, de Dorian Astor (L&PM Pocket), li e grifei boa parte, mas não a li inteira ainda.

Fiz uma rápida pesquisa e é certo que tal passagem se encontra aos borbotões na internet, todas sem referências pontuais, o que me faz desconfiar se a passagem é dela mesma, se a tradução é boa ("funesto de se enxertar um sobre o outro?" não soa bem, há termos melhores para designar o que se quer dizer), ou se se trata de mais uma daquelas imposturas que encontramos pelas nets. Mas isso, aqui, não tem importância. Importa o que a passagem diz, e o porquê desse trecho ter me chamado a atenção (provavelmente há uns 10 ou 15 anos). 

Creio que desejava alcançar esse estado de vida, pois, naquele tempo, ao amar louca e apaixonadamente, não me sentia propriamente "eu mesma", ao menos em toda a minha inteireza, tal como me sinto hoje: plena, sem necessidade de me adaptar a ninguém, ou de fazer concessões que possam trair, em nome do amor, meus próprios princípios, opiniões e/ou sentimentos. Hoje, posso dizer que me encontro enraizada em meu solo particular, robusto e independente (ainda que não tenha garantia de que será sempre assim). Hoje, sou todo um mundo, seja apenas para mim mesma, ou mesmo para um outro amor, além do meu próprio. E isso não tem preço. Tem valor, mas não tem preço, se é que vocês me entendem...



photo by
Ryan Widger 
The Conversation | 2006

sábado, janeiro 07, 2023

O seu santo nome


Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
..........................

Carlos Drummond de Andrade | 'O Seu Santo Nome' | In: Corpo | Editora Record | Rio de Janeiro | 1984

Lying woman 1917 - Egon Schiele

sábado, dezembro 24, 2022

Artigos de luxo

"Temos de reaprender o que é satisfação. Estamos tão desorientados, que achamos que satisfazer-se é ir às compras. Um luxo verdadeiro é um encontro humano, um momento de silêncio diante da criação, fruir de uma obra de arte ou de um trabalho bem-feito. Satisfações verdadeiras são aquelas que embargam a alma de gratidão e nos predispõem ao amor."

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"... nós nos salvaremos pelos afetos. O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria."

[Ernesto Sabato | A Resistência]

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[art by William-Adolphe Bouguereau | Pietà | 1876]

domingo, dezembro 04, 2022

In love

O amor,
Minha gente,
É um poema bem curtinho,
Que na sua incomensurável forma de ser,
Nos fode,
Sem a gente perceber.


(Nelson Alexandre)


By Lucien Waléry [Nude - detail 1920]

sábado, setembro 24, 2022

Les clés

 


"Minha querida, não há nem muros nem jardins secretos para você. Você tem as chaves para todas as portas."

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Albert Camus em carta a Maria Casarès, 12 agosto 1948, in Correspondance: 1944-1959. Paris: Gallimard, 2017. 

domingo, dezembro 12, 2021

Yourself


Amor depois de amor

Virá o tempo
em que você, exaltado,
vai saudar a si mesmo chegando
à sua própria porta, em seu próprio espelho,
e vão trocar sorrisos de boas-vindas,

você vai dizer, sente-se. Coma.
Vai amar o estranho que um dia você foi.
Dê vinho. Dê pão. Devolva seu coração
pra ele mesmo, o estranho que o amou

por toda a sua vida, e a quem você ignorou
por outro alguém, que o conhece de cor.
Pegue da estante as cartas de amor,

as fotografias, as anotações desesperadas,
descasque seu reflexo do espelho.
Sente-se. Sirva-se da vida.

..................................

Derek Walcott (poeta e dramaturgo). 
Tradução de Rodrigo Garcia Lopes.




Love after love

The time will come
when, with elation
you will greet yourself arriving
at your own door, in your own mirror
and each will smile at the other's welcome,

and say, sit here. Eat.
You will love again the stranger who was your self.
Give wine. Give bread. Give back your heart
to itself, to the stranger who has loved you

all your life, whom you ignored
for another, who knows you by heart.
Take down the love letters from the bookshelf,

the photographs, the desperate notes,
peel your own image from the mirror.
Sit. Feast on your life.

terça-feira, setembro 21, 2021

O beijo

 O beijo fulmina-nos como o relâmpago, o amor passa como um temporal, depois a vida, novamente, acalma-se como o céu, e tudo volta a ser como dantes. Quem se lembra de uma nuvem?

Guy de Maupassant


domingo, agosto 15, 2021

Amor de filósofo, filósofo existencialista

 "Na cidade de H... viveu há alguns anos um jovem estudante chamado Johannes Climacus, que não desejava, de modo algum, fazer-se notar no mundo, dado que, pelo contrário, sua única felicidade era viver retirado e em silêncio. Aqueles que o conheciam um pouco melhor procuravam explicar pela melancolia ou pela paixão sua natureza fechada, que fugia de todo contato permanente com os homens. Os partidários desta última hipótese, de certa maneira, não estavam errados; enganavam-se, porém, ao pensar que era uma jovem o objeto de seus sonhos. Tais sentimentos eram completamente estranhos ao seu coração, e, assim como sua aparência exterior era delicada, etérea, quase transparente, sua alma, no mesmo grau, era por demais determinada pelo intelecto para se deixar cativar pela beleza de uma mulher. Estava apaixonado, ardorosamente apaixonado ─ pelo pensamento, ou, antes, pelo pensar."

"Nenhum jovem apaixonado, diante da passagem incompreensível, na qual o amor desperta no seu peito, diante do relâmpago que acende na amada um amor recíproco, poderia experimentar uma emoção mais profunda do que ele diante da passagem compreensível que um pensamento se encadeia em outro, uma passagem que representava para ele o instante feliz da realização do que pressentira e esperara no silêncio de sua alma. Então sua fronte se inclinava pensativamente, como uma espiga madura, não porque escutasse a voz da amada, mas porque prestava atenção ao murmúrio secreto dos pensamentos; seu olhar tornava-se sonhador, não porque adivinhasse a imagem da amada, mas porque via o movimento do pensamento aparecer diante de si. Seu prazer consistia em começar por um pensamento particular, a partir dele seguir o caminho da consequência, escalando degrau por degrau até um pensamento mais alto; pois a consequência era a seus olhos uma scala paradisi [escala do paraíso], e sua beatitude lhe parecia maior até que a dos anjos. Com efeito, tendo alcançado este pensamento mais alto, ele experimentava uma alegria indescritível, uma voluptuosidade apaixonada em mergulhar sob as mesmas consequências no raciocínio inverso até chegar ao ponto do qual partira. Entretanto..." [...] 

ah, entretanto... esse é só o começo, você vai ter que ler pra saber o que vem pela frente dessa magnífica e curiosa obra: uma verdadeira aula de filosofia, de fato, sui generis — escrita numa espécie de romance autobiográfico — repleta de poesia e sabedoria.

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Søren Aabye Kierkegaard (Copenhague 1813-1855).

[É preciso duvidar de tudo | Tradução de Sílvia S. Sampaio e Álvaro L. M. Valls | Prefácio e notas de Jacques Lafarge | São Paulo | Martins Fontes | 2003 | pp. 5-7].


domingo, maio 23, 2021

Tudo traz, tudo leva, tudo lava


Ela me perguntou o quanto eu a amava.

Reuni em vidro todos os humores vertidos:

sangue, sêmen, lágrimas.

Amo você tantos rios.

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Carla Madeira | Tudo é rio | Record | 2021




Desnudo tendido
José María Rodríguez-Acosta | 1878-1941
Granada | Museo de Bellas Artes


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Quem não leu esse romance fascinante de Carla Madeira não tem ideia do que está perdendo. Tudo é rio é tão bem escrito que dá até raiva na gente. Raiva e inveja. A gente pensa: como é que pode escrever tão bem assim, e já em seu romance de estreia? A história é tão formidável (não vou dar spoiler rs) e tão bem escrita que o livro não precisa sobreviver à crítica 200 anos pra gente saber que é bom — (sim, há quem defenda essa "tese da sobrevivência de uma obra", mas não é o meu caso). E tem mais: é um romance que não deve ser lido, devorado, assim, como um outro qualquer. Ele tem de ser degustaaado.

O título que dei ao post é uma frase do prefácio de Cris Guerra. E o poema-epígrafe, pelo que entendi, é da própria Carla Madeira. Bom, não é preciso dizer (dizendo) que gamei nesse livro. Ganhei de presente da minha amiga Marly. Amiga que sabe das coisas.

sexta-feira, maio 14, 2021

O peso do mundo

 CANÇÃO

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano –

sai para fora do coração
ardendo de pureza –
pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor –
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
– não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:

o peso é demasiado

– deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho –

sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.

...............

Allen Ginsberg
In: “Uivo e outros poemas” (1956).

......................

Imagem: Brook Shaden Photography

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Não está nada fácil comemorar mais um ano de vida em meio à trágica notícia, ontem, de 430.596 vidas perdidas em praticamente apenas um ano, e só nesse nosso país lascado chamado Brasil. Vivemos, atualmente, numa espécie de show de horrores. É meu segundo aniversário em plena pandemia. E esse é meu jeito weird de, sem palavras, bendizê-lo 🖤.

quinta-feira, fevereiro 25, 2021

Namorados do Mirante


Eles eram mais antigos que o silêncio
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
A Remontavam às origens — a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espécie — tudo mais tinha morrido.
Caíam lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas na magma incandescente
Que milénios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito.

Eles eram mais antigos que o silêncio...


[ Vinicius de Moraes | 1913-1980 | Nova antologia poética | Cia de Bolso]


by Shira Barzilay

sexta-feira, fevereiro 19, 2021

Necrológio dos desiludidos do amor


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.

Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho

enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.



Carlos Drummond de Andrade
Antologia Poética
Companhia das Letras

quinta-feira, outubro 08, 2020

hiatos


Somos feitos das mesmas bibliotecas
dos mesmos jardins suspensos
dos mesmos tapetes urdidos em tramas de lã
Somos desabrigados
e nossos tetos respingam um vapor goticulado

Somos como os hiatos
de uma palavra não dita
perdida nos vãos das pedras moventes
Por vezes, nos olhamos
do alto daquela montanha sem chão
e te mato sem querer
te afogo lá onde o mergulhador não chega

Mas te lembro que os hiatos são valentes
aceitam o não-lugar dos exílios
da fenda
da origem do tudo e do nada
Não há litígio para os feitos-seres-hiatos
eles somente se habitam
entrelaçam suas cavernas
afaimadas
Negligenciam o canto absoluto
ao perfurarem a superfície das coisas
e se deixarem pertencer a dois mundos

Revelo
[nesse amor hiato]
todas as fuligens levadas de meu corpo
quando escolhi fazer a travessia das pedras
e te encontrar deitado sobre os trilhos
para sentir o ar frio vindo das serras

Somos transeuntes de lugares doloridos
vemos juntos a agitação do mar
ao esticarmos nossos corpos na cama febril
E na dobra de nossos joelhos
ralados da curva de tantas esquinas
lembramos dos nós que não cabem em hiatos.



(poema de Bárbara Marques)





sábado, julho 18, 2020

A morte do amor


"Se eu pudesse voltar atrás
Não te amava.
É tão mais fácil
Manter o coração quieto no peito
Como se todos os dias
E todas as horas fossem iguais.

A inquietação de me faltares
Deixa os meus olhos tristes
Esperando que aceites
A mão que te estendo.

Mas tu não estás.
Eu parti com a última onda
Sem saber se voltarei um dia,
E o caminho que os nossos pés
Juntos percorreram
Choram a saudade
De ter morrido o amor
Quando dissemos adeus."

................................................

Ana Brilha | A Morte do Amor | in A Apologia do Silêncio | Edição de Autor | Cascais | Portugal | 2012


photo by Virginia Rota

terça-feira, junho 02, 2020

Youth


The Mirror | 1902 | by Edward Steichen



(...) Ah, juventude! Juventude! Você parece não ligar para nada, parece possuir todos os tesouros do universo, até a tristeza lhe traz contentamento, até o desgosto lhe cai bem, você é confiante e ousada, você diz: "Só eu vivo", mas cuidado, para você os dias correm e somem, sem conta e sem deixar vestígio, e tudo em você desaparece, como a cera sob o sol, como a neve. E talvez todo o segredo de seu encanto consista não na possibilidade de fazer tudo, mas na possibilidade de pensar que você fará tudo [...] "Ah, quanta coisa eu faria se não tivesse desperdiçado meu tempo!"

[...] e agora, quando em minha vida já começam a baixar as sombras do entardecer, o que me restou de mais fresco, de mais caro, do que as lembranças daquela tempestade primaveril, matutina, que passou tão depressa?

....................................................

[Ivan Turgueniev | Primeiro Amor | Cap. XXII]

domingo, maio 24, 2020

Lovers



Foi um processo longo e difícil, como sempre o são as aproximações entre duas pessoas habituadas a estarem sozinhas. Primeiro parece fácil, é o coração que arrasta a cabeça, a vontade de ser feliz que cala as dúvidas e os medos. Mas depois é a cabeça que trava o coração, as pequenas coisas que parecem derrotar as grandes, um sufoco inexplicável que parece instalar-se onde dantes estava a intimidade. É preciso saber passar tudo isso e conseguir chegar mais além, onde a cumplicidade – de tudo, o mais difícil de atingir – os torna verdadeiramente amantes.

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[Miguel Sousa Tavares | In: Não te deixarei morrer, David Crockett | Oficina do Livro | Lisboa | 2001 | p.4]


Galatea In Acis Arms | Medici Fountain In The Luxembourg Gardens | Paris
Sculptor: Auguste Ottin (1811-1890).


domingo, maio 17, 2020

Baudelaire-ando



XCIII

A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!




photo by Brett Walker

XCIII

A une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais
peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!


........................................................................................

BAUDELAIRE, Charles | As flores do mal | Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira | Edição biligue | Rio de Janeiro | Nova Fronteira | 1985.

quinta-feira, abril 02, 2020

O amor




La tumba del poeta | Pedro Sáenz | 1863-1927 | Museo de Málaga



Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.



Vladimir Maiakovski (1893-1930)




sábado, dezembro 14, 2019

Missivas


Meu querido,

Resisti à tentação de te escrever desde que soube seres tu o autor dessas missivas ardentes que, há duas semanas, vêm enchendo esta casa de chamas, de alegria, de saudade e de esperança, e meu coração e minhas entranhas, do doce fogo que abrasa sem queimar, e do amor e do desejo unidos em casamento feliz.

Por que assinarias umas cartas que só poderiam ter saído de tuas mãos? Quem me estudou, me formou, me inventou, como fizeste? Quem podia falar dos pontinhos vermelhos de minhas axilas, das rosadas nervuras das cavidades ocultas entre os dedos dos meus pés, desta “franzida boquinha rodeada por uma mini circunferência de alegres ruguinhas de carne viva, entre azulada e plúmbea, à qual se chega escalando as lisas e marmóreas colunas de tuas pernas”? Só tu, meu amor.

Desde as primeiras linhas da primeira carta, eu soube que eras tu. Por isso, antes de terminar a leitura, obedeci às tuas instruções. Despi-me e posei para ti, diante do espelho, imitando a Dânae de Klimt. E recomecei, como em tantas noites de que tenho saudade em minha atual solidão, a voar contigo por aqueles reinos da fantasia que exploramos juntos, ao longo daqueles anos compartilhados que agora são, para mim, fonte de consolo e de vida na qual volto a beber com a memória, para suportar a rotina e o vazio que vieram substituir aquilo que, ao teu lado, foi aventura e plenitude. [...]
.
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[Llhosa, Mario Vargas |  Os cadernos de dom Rigoberto | Tradução de Joana Angélica d’Ávila Melo | Rio de Janeiro | Objetiva |2009 | p. 186].

Dânae | 1907 | Gustav Klimt | óleo sobre tela