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terça-feira, agosto 02, 2011

Literatura: uma orgia perpétua


Algumas frases, ideias ou pensamentos não me dizem nada. Outras me dizem tanto que ecoam, soam e ressoam de maneira quase ininterrupta em minha cabeça: eis uma delas, dita e escrita por ninguém mais ninguém menos do que Flaubert:

"Le seul moyen de supporter l'existence c'est de s'etourdir dans la littérature comme dans une orgie perpétuelle" (Carta a Mlle. Leroyer de Chantepie, 4 de setembro de 1858).


terça-feira, junho 01, 2010

Flaubert: o homem-pena

Escrever me parece sempre uma questão de vida e morte. Arriscaria a dizer que é uma questão de vida e morte para todo escritor (ou, ao menos, para todo aspirante à escrita literária e/ou filosófica).

Estou pra conhecer alguém que possa escrever sem sofrer, sem se torturar, sem se obstinar, sem se acabar, sem morrer um pouco.

Haveria alguém nesse mundo que pudesse escrever, assim, sem mais nem menos, sorrindo, pirulitando, e num estalar de dedos? Penso que não! Escrever algo de original, que seja seu mesmo, exige mergulho, um certo modo de vida que, num certo sentido, é incompatível com as exigências da vida prática, da vida mundana. Digo num certo sentido porque a vida mundana também é fonte de grandes obras literárias. Mas se queremos escrever verdadeiramente, temos de romper (ao menos numa certa medida) com o mundo exterior.

Para se escrever bem é preciso, além de solidão, deixar muitos escrúpulos de lado, despir-se de muitas amarras, do medo da crítica, do receio de se expor ao ridículo. Tem-se de arrancar mesmo das entranhas para escrever algo de significativo, relevante e belo (pois qualquer ser minimamente alfabetizado e superficial pode escrever qualquer coisa irrelevante e sem graça). Mas escrever como artista é escrever como alguém que, se não o fizer, morrerá. É escrever por necessidade. E pelo que pude perceber, todo grande (ou bom) escritor se sente assim: constrangido a escrever pela necessidade.

Aqui ao meu redor, alguns grandes escritores: meus bons companheiros (e eu não posso mais viver sem eles). É neles que me inspiro. Ora num, ora noutro. É com eles que aprendo um pouquinho. Ou, ao menos, tento.

Comecei assim, por pura curiosidade (seguida da velha necessidade, ou será vice-versa?), a ler as Cartas Exemplares de Gustave Flaubert. Adoro cartas pessoais, especialmente das figuras mais eminentes! Elas geralmente revelam não só os motivos e as circunstâncias em que seus autores as escreveram, como também seus sentimentos, opiniões, hábitos, costumes, traços psicológicos, caracteres, habilidades e estilos literários. Cartas pessoais costumam ser confessionais. Confessa-se a amigos. Confessa-se a amantes. Por meio dessas relações mais profundas pode-se capturar a pessoa do artista-escritor. Eles têm vidas interessantes!


Há dias estou às voltas com a necessidade de escrever alguma coisa significativa (e eu nem sou grande), que seja minha mesmo. Entretanto, sofro e me debato e me torturo quando percebo que estou muito longe disso. Preciso ser guiada pela pena dos grandes. Necessito que eles me acompanhem e me mostrem o caminho.

Consolo-me ao saber que posso viver cercada de grandes artistas e estetas da literatura e da linguagem (ainda que apenas por meio de suas obras). Talvez se possa dizer que todo grande escritor (e também os pequenos aprendizes, como eu, que, talvez, nunca deixe de ser uma eterna pequena aprendiza), leu e amou outros grandes escritores. Escritores são ligados a seus semelhantes. Basta lê-los para vê-los citar um ou outro, ou um ao outro.

Li tantas coisas inspiradoras nessas Cartas de Flaubert que não resisti a transcrever algumas passagens (eis-me aqui de mãos dadas com Flaubert). São passagens que traduzem alguns pensamentos e sentimentos meus, especialmente quando me encontro às voltas com minhas pretensões de escritora (e é aí que mais me dou conta de minha pequenez e dificuldades). É preciso ainda que eu escreva pelas mãos dos outros (putz, que miséria!). Será que um dia eu...?

Ah... mas nem tudo está perdido! O próprio Flaubert se interrogava ao dizer: “há momentos em que acredito que estou errado porque quero fazer um livro razoável e por não me abandonar a todos os lirismos, violências, excentricidades filosófico-fantásticas que me aparecem. Quem sabe? Será que um dia eu vou parir uma obra que pelo menos seja só minha” (p.56)? Creio que essa é uma pergunta feita incansavelmente por todo aquele que tem por inclinação e ofício escrever ─ seja em prosa, poesia ou filosofia.

Bem sabemos que Flaubert pariu obras ímpares. E pelo que as Cartas revelam, para tanto, sofreu desmesuradamente. Por meio das Cartas Exemplares tem-se uma espécie de diário da vida de um escritor profundamente perturbado com sua existência ─ com seu modo de existir como um escritor que escreve com extrema dificuldade.

Escrever, Flaubert revela, sempre foi uma luta, um tormento. Ele sofre por amar profundamente a beleza (é um aisthetés) e tortura-se em seu processo de criação. É um escritor preocupado, sobretudo, com o estilo da escrita, com a beleza e sonoridade das palavras, frases, pensamentos e ideias. “Ainda agora, o que amo acima de tudo é a forma, desde que seja bela, e nada mais. [...] Não há para mim nada a não ser os belos versos, as frases bem construídas, harmoniosas, cantantes, os belos poentes, o luar, os quadros coloridos, os mármores antigos e as cabeças modeladas com vigor. Além disto, nada.”(p.31). “Uma boa frase de prosa deve ser como um bom verso, imutável, tão ritmado quanto sonoro” (p.77). “Todo o talento de escrever não consiste senão na escolha das palavras. É a precisão que faz a força. Tanto no estilo como na música: o que há de mais belo e mais puro é a pureza do som” (p.78).

Encontramos nessas Cartas um ser conflituoso que duvida de seu talento, que titubeia quanto a publicar ou não publicar o que escreve ─ um ser que se isola e se deprime consumindo-se na dificuldade de escrever algo belo e significativo. Melhor que Flaubert mesmo fale de si!

“É bonito ser um grande escritor, ter os homens na frigideira de sua frase e fazê-los saltar como castanhas. Deve haver orgulhos delirantes em sentir que se pesa sobre a humanidade com todo o peso de sua ideia. Mas é preciso, para isso, ter alguma coisa a dizer. Ora eu vou lhe confessar que me parece que não tenho nada a dizer que os outros também não possam dizer, ou que não tenha sido dito muito bem, ou que possa ser dito de maneira melhor” [...] “Eu gasto bastante papel! Quantas rasuras! A frase demora para vir. Que diabo de estilo eu escolhi. Que desgraça os temas simples! Se você soubesse o quanto me torturo por isto...” (p.57).

Imaginem só, o grande Flaubert, a torturar-se pela dificuldade que sente em escrever. Se a ele parece não ter nada a dizer que os outros também não possam dizer, ou que não tenha sido dito muito bem, ou que possa ser dito de maneira melhor, o que podemos dizer, nós, pobres mortais e comuns?

Flaubert é extremoso. Vive mergulhado numa espécie de caldeirão existencial. De um lado, indolência, tédio, miséria e cansaço de sua própria existência: “Você sabe muito bem que sou o homem de ardores e de abatimentos. Se você conhecesse todos os invisíveis fios de inação que cercam meu corpo e todas as brumas que flutuam em meu cérebro! Experimento frequentemente uma fadiga de matar de tédio quando é hora de fazer qualquer coisa seja lá o que for, e é só por meio de grandes esforços que consigo captar a mais clara das ideias. Minha juventude me mergulhou em não sei que ópio de estupidez pelo resto de meus dias. Eu tenho ódio à vida. A frase saiu, que fique! Sim, à vida, e a tudo que me lembra que é preciso suportá-la. É um suplício comer, vestir-me, ficar em pé.” (p.55). Uau!!! Que depressão!!!

Por outro lado, arde em Flaubert o trabalho obstinado e obsedante, lírico e transbordante. Queima nele a necessidade vital e mortal de escrever, a incansável preocupação com o estilo, o amor pelo belo e pela arte. Ele ama “acima de tudo a frase nervosa, substancial, de músculo saliente, de pele cor de bistre”; ama “as frases machas” (p.26), e declara que “a única maneira de não ser infeliz é encerrar-se na Arte e contar como nada todo o resto” (p.27).

Nas Cartas Exemplares, Flaubert fala também do difícil processo de criação de suas obras, dos seus defeitos, das suas virtudes, de suas dúvidas quanto a publicá-las ou não. E se autodenomina “um homem-pena”:

“Eu sou um homem-pena. Sinto através dela, por causa dela, em relação a ela e muito mais com ela. Você verá a partir do próximo inverno uma mudança aparente. Eu passarei três invernos usando escarpins [referência à criação de Madame Bovary]. Depois entrarei de novo na minha toca onde estourarei obscuro ou ilustre, manuscrito ou impresso. Há, no entanto, no fundo, algo que me atormenta, é o não-conhecimento de minha medida. Este homem que se diz tão calmo está cheio de dúvidas sobre si próprio. Ele gostaria de saber até que altura ele pode subir e o poder exato de seus músculos. Mas pedir isto é ser muito ambicioso, pois o conhecimento preciso de sua forma não é senão o gênio” (p.62-63)

Flaubert se tortura: “Ninguém mais do que eu tem o sentimento da miséria da vida. Eu não acredito em nada, nem em mim mesmo... eu faço arte porque isso me diverte... antes a pena corria sobre meu papel com rapidez; ela ainda corre agora, mas para rasgá-lo. Eu não consigo fazer uma frase, eu mudo de pena a cada minuto, porque eu não exprimo nada do que quero dizer” (p.30). E se extenua na pena, com a pena e pela pena. “Saiba que estou exausto de escrever. O estilo que é uma coisa que eu levo a sério, me agita os nervos horrivelmente. Eu me exaspero, eu me sinto corroer. Há dias em que fico doente e em que, à noite, tenho febre. Mais eu avanço e mais eu me acho incapaz de alcançar a Ideia. Que mania esquisita essa de passar sua vida a trabalhar sobre as palavras e a suar todo dia para arredondar períodos" (p.40-41)!

Escrever é, para Flaubert, uma ideia fixa: “... o que me frequenta a cada minuto, o que me tira a pena das mãos quando estou tomando notas, o que me faz deixar o livro quando leio, é meu velho amor, é a mesma ideia fixa: escrever! É por isso que não faço mais nada, embora me levante bem cedo e saia muito pouco” (p.25). Flaubert se torna artista com uma dificuldade desoladora: “vou acabar sem escrever uma só linha. Creio que poderei fazer coisas boas; mas me pergunto sempre, para quê? O mais esquisito é que não me sinto desencorajado; eu me compenetro, ao contrário, mais do que nunca, da ideia pura, no infinito. É o que aspiro, o que me atrai; estou me tornando brâmane, ou talvez apenas um pouco louco” (p.30). “Eu escrevo só para mim, só para mim, como eu fumo e como eu durmo. É uma função quase animal, de tão pessoal e íntima” (p.40)

E agora deixem-me ficar por aqui, senão quem vai ficar um pouco louca sou eu! Pois mal li ainda um quarto dessas Cartas e já estou aqui, jogada aos pés de Flaubert.

Ah Flaubert, Flaubert, Flaubert... deixe-me trabalhar!