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sábado, setembro 30, 2006

Um verdadeiro duelo...


O comentário abaixo refere-se a um outro comentário escrito pela estudiosa de Kant Andréa Faggion. O debate tem início numa postagem intitulada “Compatibilismo versus incompatibilismo (ou Hume versus Kant)” publicada em 22 de setembro de 2006 por Aguinaldo Pavão no blog http://agguinaldopavao.blogspot.com.br/2006/09/compatibilismo-versus-incompatibilismo.html
Junto a esta postagem segue (na seção de comentários) a brilhante resposta da Andréa: uma verdadeira aula sobre a teoria kantiana.

Cara Andréa,
Peço licença para brindar o seu “belo e inteligente” comentário (como bem disse o Aguinaldo... e sem ironia) com alguns comentários ulteriores (provavelmente não tão belos e inteligentes rsrsrs). Se me permite a intromissão, a comparação que você fez entre as teorias de Hume e Kant sobre a liberdade e imputabilidade moral causou-me um desconforto filosófico de tirar o sono (não se sinta culpada rsrsrs, sempre que eu mesma faço essa comparação perco o sono). Isto porque, para oferecer uma resposta a essa famigerada controvérsia, ambos caminham em direções diametralmente opostas, a meu ver, num verdadeiro duelo de gigantes. Como você sabe, Hume busca em suas explicações uma radical deflação metafísica, e Kant, embora pense numa metafísica crítica, não deixa de ser metafísico. Hume adota um monismo explicativo. Já Kant, um dualismo que os kantianos e Kant mesmo preferem chamar de transcendental. Também suas concepções de razão e vontade são completamente distintas. Há que se ressaltar que Hume e Kant estão num profundo desacordo quanto às competências do discurso filosófico. Não pretendo, ao menos neste momento, afirmar a verdade de uma teoria e a falsidade de outra, mas apenas mostrar que a solução compatibilista humeana não é tão fácil assim, como você assinalou, pois não se reduz a afirmar que, “afinal, a vontade possa ser necessitada por causas naturais e o corpo livre para agir”. De fato, Hume, em outras palavras, afirma isso, mas para chegar a essa simplicidade empreende uma tarefa que a meu ver não é nada fácil.
Quando se trata de liberdade interior, Hume de fato opta pelo determinismo, mas é justamente por isso que ele é um compatibilista. Como qualquer compatibilista coerente, Hume recusa a liberdade da vontade, mas não a liberdade da ação. E não há razão para que um compatibilista fique constrangido se lhe fizerem a pergunta: como podemos ser moralmente censurados ou louvados se nossa vontade não é livre? Para um compatibilista, os nossos juízos ordinários de responsabilidade moral de modo algum requerem uma vontade livre para lhes dar suporte, basta admitirmos que um homem agiu de acordo com sua vontade (não que agiu com uma vontade livre). A reflexão de Hume sobre a imputabilidade moral visa a elucidar o modo como o senso comum procede, especialmente na qualidade de observador, quando se trata de emitir juízos de aprovação e desaprovação moral. Ora, os juízos de louvor e censura moral, na visão de Hume, reportam-se ao caráter do agente. Portanto, o alvo da imputabilidade moral é o caráter – isto é, uma disposição interna com relativa estabilidade que motiva as ações dos indivíduos.
Para que possamos compreender essa teoria, devemos, é o apelo de Hume, fixar a filosofia na província modesta da vida comum. Se não entendemos o que Hume compreende por filosofia, simplesmente não compreendemos Hume. Na sóbria província da vida comum poderemos perceber que não há qualquer necessidade de investigarmos as causas remotas que determinam o caráter (porque alguém bem poderia perguntar se somos responsáveis por nosso caráter, já que ele é antecedentemente determinado). O caráter pode ser - como de fato é pelo senso comum - tomado como a instância pragmaticamente última de nossos juízos de imputação moral.
É claro que Kant de modo magistral e sublime ultrapassa as jurisdições epistemológicas fixadas por Hume, procurando mostrar que a condição de possibilidade para se pensar a liberdade e imputabilidade moral implica necessariamente a adoção de um duplo ponto de vista, ou seja, o do fenômeno e o da coisa-em-si. Agora, é evidente que a Hume esse duplo ponto de vista não interessa. Por certo ele rejeitaria categoricamente (rsrsrs) essa perspectiva transcendental, afirmando, provavelmente, que coisa-em-si não tem sentido algum e, conseqüentemente, a lei moral kantiana também careceria de qualquer sentido. Ora, a partir de perspectivas metodológicas radicalmente distintas, afirmar que Hume fracassa em oferecer uma resposta satisfatória ao problema é fechar os olhos para os critérios epistemológicos estabelecidos por ele e aplicar distinções a uma teoria que, em hipótese alguma, se prestaria a isso.
Bom, afora essa minha tentativa de esclarecer alguns pontos, acredito que haja algum problema de tradução em relação à primeira citação que você faz de Hume: “esta liberdade incondicional...”. Veja só, isto está em completo desacordo com Hume, pois, como determinista, tudo está condicionado, inclusive a liberdade (como a teoria dele esforça-se por demonstrar). Na verdade, Hume fala em liberdade hipotética: “Now this hypothetical liberty is universally allowed to belong to every one, who is not a prisoner and in chains” (EHU, 8 §23, p.159). Uma tradução dessa merece ser atirada às chamas... uma vergonha! ... rsrsrsrsrs.
Um abraço,
Marília
(p.s.: Ai, ai, ai... sabe que agora, pensando bem, pelo pouco que te conheço, e o muito que sei de sua competência filosófica, acho que em vez de recuperar o sono vou perder de vez... rsrsrsrsr).