terça-feira, setembro 18, 2012

Filosofia para Diletantes



Eis um título que, por um lado, considero perfeito para um curso voltado àqueles que desejam estudar filosofia por amor à sabedoria. Aliás, amor à sabedoria vem diretamente ao encontro da origem da palavra filosofia, malgrado se possa dizer que esta palavra tomou significados diversos, de acordo com as teorias dos diversos filósofos. 

Como se sabe, o diletante é aquele que tem interesse e se dedica a uma arte ou ofício, digamos assim, como amador, quer dizer, por amor e deleite, e não por ofício ou obrigação. 

Nesse sentido, o título se ajusta perfeitamente à proposta inicial deste curso, qual seja, a de oferecer um programa extra-acadêmico dirigido a um público que deseja exercer a atividade filosófica não por obrigação curricular, mas simplesmente por prazer e amor aos estudos.

Eu disse por um lado... por quê? Porque, de outro, o título pode suscitar um sentido pejorativo que o termo "diletante", sinônimo de amador, tomou na linguagem ordinária - a de que o diletante não leva as coisas muito a sério. Nada a ver, pois do fato de que alguém possa exercer uma atividade apenas por amor e prazer não se segue que esse alguém é descuidado ou não leva as coisas (no caso aqui os estudos) a sério. Uma pessoa pode muito bem se dedicar aos estudos, a qualquer arte ou ofício, de modo diligente, como um autoditada, por exemplo. Algumas pessoas fazem isso naturalmente, outras, talvez, necessitem aprender a estudar sozinhas, ou seja, precisam de um empurrãozinho, de alguém que as introduza no universo filosófico e as oriente.

Desde que comecei a estudar filosofia, há quatorze anos (fiz e faço isso cumprindo as exigências da academia, mas também como diletante, no sentido original da palavra, ou seja, por paixão e deleite), acredito que existe um tipo de público que adoraria estudar filosofia, mas que não está nem um pouco disposto a calçar o "sapato apertado" da erudição acadêmica. Esse público, obviamente, não se pretende graduado, mestre, doutor ou pós-doutor em filosofia, tampouco deseja ser professor de filosofia. Todavia, ele tem sede, curiosidade, interesse, vontade e desejo de conhecer, ainda que não com o rigor da academia, o universo da filosofia.

Mas como satisfazer a esse público se levarmos em conta a (por certo controversa) distância que (dizem) separa os filósofos acadêmicos dos mortais comuns? (Ops... eles não são mortais comuns?) Será mesmo possível diminuir esse suposto abismo? Qual seria a ponte que tornaria possível ascender ao conhecimento filosófico? Algo me diz que grande parte dos acadêmicos de plantão pensa que isso não seria possível fora dos altos muros da academia. E embora eu seja também uma acadêmica de plantão, estranhamente (e a contragosto rsr) mortal e comum (sorry, não resisti), penso que seria sim possível, e só há uma maneira d'eu me certificar disso: colocando-me like a bridge over troubled water.

Pensando em atender a este suposto público (que acredito ser um público seleto, pois não creio que o estudo da filosofia possa atrair um grande público); e pensando também em satisfazer a minha necessidade de falar sobre filosofia, estruturei (numa parceria com a Aldeia Coworking Londrina), o primeiro módulo de um curso de filosofia para diletantes.

Por meio da leitura e comentários de textos de alguns grandes filósofos, historiadores e intérpretes da filosofia, o programa pretende oferecer uma visão introdutória e panorâmica da história da filosofia, a partir da origem e do significado de conceitos fundamentais do pensamento ocidental - conceitos que atravessaram séculos e ainda hoje permanecem atuais. 

Eis o cartaz e o programa deste primeiro módulo (que começa amanhã, às 20 hs):





MÓDULO I

1. Introdução (quarta-feira: 19/09)
1.1. Visão introdutória e panorâmica da história da filosofia
1.2. Divisão dos períodos e áreas da filosofia
1.3. Principais autores e temas
1.4. Perspectivas e correntes filosóficas

2. Gênese, natureza e desenvolvimento da filosofia e dos problemas especulativos da antiguidade (quarta-feira: 26/09)
2.1. As formas da vida espiritual grega que prepararam o nascimento da filosofia
2.2. Religião, misticismo e filosofia
2.3. Problemas e características da filosofia antiga
2.4. Os pré-socráticos: os problemas da physis, do ser e do cosmo

(textos de referência: REALE, Giovanni. Pré-Socráticos e Orfismo. História da Filosofia Grega e Romana. Vol.I Tradução de Marcelo Perine. São Paulo: Loyola, 2009.
BORNHEIM, Gerd A. (org.). Os Filósofos Pré-Socráticos (15a. ed.). São Paulo: Cultrix, 2010.
KENNY, Anthony. Uma Nova História da Filosofia Ocidental. Vol. I (Filosofia Antiga). Tradução de Carlos Alberto Bárbaro. São Paulo: Loyola, 2011).

3. Platão (quarta-feira: 03/10)
3.1. Conceitos fundamentais da teoria da ideias
3.2. Características distintivas da metafísica de Platão
3.3. A compreensão de conhecimento
3.4. A imortalidade da alma

4. Platão (quarta-feira: 10/10)
4.1. A Justiça
4.2. O Estado justo
4.3. Justiça e concepção de alma
4.4. A analogia entre a alma e a polis

(textos de referência: PLATÃO. A República. Tradução de Enrico Corvisieri. São Paulo: Nova Cultural, 1999 e PLATÃO. Fédon. Tradução de Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Abril Cultural, 1972).



[Pintura de Catherine Chauloux]

quarta-feira, setembro 12, 2012

A leitura dos leitores


"Um romance é como o arco, e a alma do leitor é como o corpo do violino que emite o som."

Stendhal. The life of Henry Brulard. Tradução de John Sturrock. Nova York, 2002, p.184. In: Gianetti, Eduardo. O livro das citações. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, p.22.

segunda-feira, julho 30, 2012

Das profunduras da tua existência

O Poço

Cais, às vezes, afundas
em teu fosso de silêncio,
em teu abismo de orgulhosa cólera,
e mal consegues
voltar, trazendo restos
do que achaste
pelas profunduras da tua existência.

Meu amor, o que encontras
em teu poço fechado?
Algas, pântanos, rochas?
O que vês, de olhos cegos,
rancorosa e ferida?

Não acharás, amor,
no poço em que cais
o que na altura guardo para ti:
um ramo de jasmins todo orvalhado,
um beijo mais profundo que esse abismo.

Não me temas, não caias
de novo em teu rancor.
Sacode a minha palavra que te veio ferir
e deixa que ela voe pela janela aberta.
Ela voltará a ferir-me
sem que tu a dirijas,
porque foi carregada com um instante duro
e esse instante será desarmado em meu peito.

Radiosa me sorri
se minha boca fere.
Não sou um pastor doce
como em contos de fadas,
mas um lenhador que comparte contigo
terras, vento e espinhos das montanhas.

Dá-me amor, me sorri
e me ajuda a ser bom.
Não te firas em mim, seria inútil,
não me firas a mim porque te feres.



(Pablo Neruda)

sábado, julho 21, 2012

Rendido


Outro dia, ao tomar um café num café, ouvi por acaso duas amigas conversando: uma delas deixava escorrer pela boca as seguintes palavras:
- ah... ele me mandou uma mensagem na madrugada, todo apaixonado, de quem não resistiu...
A outra, com um piscar de asas de borboleta, perguntou cheia de curiosidade:
- E o que dizia a mensagem?
- Ah... (ela respondeu) tipo assim: boa nooite... e blablablá...
Depois, com ar de deboche, acrescentou:
- E eu? nem respondi, tava morrendo de sono! Mas logo cedo liguei pra ele e tirei um sarrinho malicioso. Eu disse: Ahammm... pensando em mim na madrugada, né? e riu... toda satisfeita.

Imediatamente me lembrei daquele observação de dom Rigoberto, todo encantado, seduzido e rendido, à sua voluptuosa esposa Lucrécia:

"Você o manejava com o dedo mindinho" 


Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Ana Angélica d'Avila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.46.

quinta-feira, junho 28, 2012

Para quebrar o mar de gelo

[Mark Ryden]


"Acho que só devemos ler a espécie de livros que nos ferem e trespassam. Se o livro que estamos lendo não nos acorda com uma pancada na cabeça, por que o estamos lendo? ... nós precisamos de livros que nos afetam como um desastre, que nos magoam profundamente, como a morte de alguém a quem amávamos mais do que a nós mesmos, como ser banido para uma floresta longe de todos. Um livro tem que ser como um machado para quebrar o mar de gelo que há dentro de nós. É nisso que eu creio."

[Trecho da carta escrita por Franz Kafka a Oscar Pollak (1904)]

quarta-feira, junho 20, 2012

In versos


[ Art by Dean Mcdowell ]



                                          queria um verso
                                          que versasse
                                          sobre meu universo
                                          esse verso único
                                          que atravessa
                                          meu coração
                                          transverso.


                                          [marília côrtes / 2012]

segunda-feira, maio 07, 2012

Devagar a divagar



Outro dia uma amiga minha me definiu como um mar de águas plácidas, isto é, um mar sem ondas. Achei engraçado, pois dentro de mim, como diria Stendhal, “minha alma é um fogo que sofre se não arde”.

Ela fez referência a essa minha placidez com base (segundo ela, e eu concordo em parte) no modo como eu lido, em geral, com as pessoas. Exclui-se aqui o modo como eu lido com minhas filhas, para as quais, segundo elas mesmas (e eu concordo em parte), sou uma mãe dramática, neurótica e estressada.

Essa minha amiga e mais algumas outras dizem que um traço característico meu é ser emocionalmente muito equilibrada e bem resolvida. Achei engraçado de novo, pois volta e meia, enredada em dilemas, contradições e paradoxos, sinto que meu coração é uma granada cujo pino está prestes a saltar, e eu, tragicamente, prestes a explodir. Por paixões, tais como as do amor, do medo, da cólera, da audácia, do orgulho, da esperança ou desespero, sou capaz de transitar do céu ao inferno e do inferno ao céu em poucos segundos.

Another day, uma outra amiga me disse que nasci plugada. Esta me traduz como uma mulher agitada, capaz de ferver, fazer e coordenar várias coisas ao mesmo tempo. Mas embora eu me considere uma pessoa que funciona bem (sob pressão, of course), ninguém há de estranhar se me encontrar devagar... devagar... a divagar... divagar...

Por essas e outras, talvez não seja à toa que amo a filosofia, a literatura e a poesia; que me apaixono por princípios, palavras, ideias, gestos, imagens, expressões e movimentos; e que adoro a música, a pintura, o cinema e, numa palavra, a arte. No fundo, acho que sou uma esteta, porém, sem ser propriamente uma artista.

[Arte by Edward Zentshik]

sábado, abril 14, 2012

Amortevidavidamorte


Há tempos que não escrevo aqui. 
Ensaiei muitas vezes, travei, desisti, 
and now 
"aqui estou eu tentando viver, ou melhor, tentando ensinar a morte dentro de mim a viver" 
Jean Cocteau 
[1889-1963]
Bust of Jean Cocteau in Villefranch-sur-Mer
Sculptor Jacques Lipchitz
[1891-1973]


sexta-feira, janeiro 06, 2012

Diligência como um poder da alma


Sem querer ir muito fundo na questão (pois ela não caberia nesse tempinho que tenho agora, tampouco no espaço desse mero post), sempre que me debato com as dificuldades de levar a cabo a árdua tarefa de concluir minha tese, lembro de uma passagem em que Philo (o personagem cético dos Diálogos de Hume), ao discorrer sobre as quatro circunstâncias das quais “dependem todos ou a maior parte dos males que afligem as criaturas sensíveis” (D 11 §§ 5-13: 107: 113), afirma que, para remediar esses males, ele não exigiria que os seres humanos possuíssem as asas da águia, a velocidade do cervo, a força do boi, as garras do leão, a couraça do crocodilo ou do rinoceronte; e muito menos a sabedoria de um anjo ou querubim. Ele diz que ficaria contente em escolher a intensificação de um único poder ou faculdade de suas almas, ou seja, uma maior propensão para a operosidade e o trabalho, uma motivação e atividade mental mais vigorosa, e uma inclinação mais constante para o desempenho e a concentração (D 11 § 10: 110).

Caramba! Eu também ficaria bem contente. Sinto que o maior demônio da produção acadêmica é a inclinação natural à dispersão da mente (motivos não nos faltam), e que um poder maior de concentração seria uma verdadeira dádiva para as mentes daqueles que se encontram diante da necessidade de realizar tal tarefa.

[Hume, David. Dialogues Concerning Natural Religion. Edited by J. C. A. Gaskin. New York. Oxford University Press, 2008]

quarta-feira, janeiro 04, 2012

A leitora

            tem hora
            que só a literatura me consola
            não tem beijinho
            não tem abracinho
            tampouco filosofia


    [ Federico Faruffini (1833-1869). A Leitora (1864) - óleo sobre tela]

quinta-feira, dezembro 15, 2011

Incita-me


"É a sua vez, agora, de empunhar este pesado remo e esforçar-se para defender suas sutilezas filosóficas contra os ditames da simples razão e experiência" (D X # 37, p.42)


(Hume. Diálogos sobre a Religião Natural. Tradução de José Oscar de Almeida Marques. São Paulo: Martins Fontes, 1992).

[imagem: Monet. Rock Arch West of Etretat - The Manneport (1883)

quarta-feira, novembro 23, 2011

A debilidade, cegueira e estreiteza da razão humana


Putz... tá difícil! 
Penso, estudo, penso, penso, estudo, penso, e o máximo que consigo produzir são dúvidas, incertezas e infindáveis contradições...

[inspirada em Hume, David | Dialogues Concerning Natural Religion | Edited by J. C. A. Gaskin | New York | Oxford University Press | 2008]

O Pensador | Auguste Rodin | 1840-1917 ]


quinta-feira, outubro 20, 2011

Ah... Rigoberto Rigoberto Rigoberto...




O FETICHISMO DOS NOMES

Tenho o fetichismo dos nomes e o teu me empolga e me enlouquece. Rigoberto! É viril, é elegante, é brônzeo, é italiano. Quando o pronuncio, em voz baixa, de mim para mim, uma cobrinha me percorre as costas e se me gelam os calcanhares rosados que Deus me deu (ou se preferires, descrente, a Natureza). Rigoberto! Risonha cascata de águas transparentes. Rigoberto! Amarela alegria de pintassilgo celebrando o sol. Onde estiveres, estou eu. Quietinha e apaixonada, bem ali. Assinas uma letra de câmbio, uma conta a pagar, com teu nome tetrassílabo? Eu sou o pontinho em cima do i, o rabinho do g e o chifrinho do t. A manchinha de tinta que fica no teu polegar. Te alivias do calor com um copinho de água mineral? Eu, a bolhinha que te refresca o paladar e o cubinho de gelo que arrepia tua linguinha de víbora. Eu, Rigoberto, sou o cordão dos teus sapatos e a pastilha de extrato de ameixa que tomas a cada noite contra a constipação. Como sei esse detalhe de tua vida gastrenterológica? Quem ama sabe, e tem por sabedoria tudo o que concerne ao seu amor, sacralizando o detalhe mais trivial da pessoa. Diante de teu retrato, eu me persigo e rezo. Para conhecer tua vida tenho teu nome, a numerologia dos cabalistas e as artes divinatórias de Nostradamus. Quem sou? Alguém que te ama como a espuma à onda e a nuvem ao rosicler. Procura, procura e encontra-me, amado.

Tua, tua, tua
A fetichista dos nomes

Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.22.

quinta-feira, setembro 29, 2011

Fugitivamente



"Ele sente na face o contato da sua mão, mais exatamente o contato da ponta de três dedos, e é uma sensação de frio, como o toque de uma rã. Suas carícias sempre eram lentas, calmas, parecia que queriam dilatar o tempo. Ao passo que aqueles três dedos pousados fugitivamente em sua face não eram uma carícia, mas um apelo. Como se aquela que é colhida por uma tempestade, por uma onda que a carrega, só dispusesse de um gesto fugaz para dizer: 'E, no entanto, estive aqui! Passei por aqui! Apesar de tudo o que vai acontecer, não me esqueça.'" 

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(KUNDERA, Milan. A Identidade. Tradução de Teresa Bulhões Carvalho da Fonseca. São Paulo: Cia das Letras, 1998, p.109).
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Ele: Jean-Marc. 
Ela: Chantal.
💔


quinta-feira, setembro 08, 2011

Imperativos do sedento viajante


Eis abaixo um excerto de Os cadernos de dom Rigoberto, de Mario Vargas Llosa, prêmio nobel de literatura (2011). Um romance sobre a arte de amar em suas mais variadas e profundas  formas: erotismo,  beleza e sensualidade de arrancar o fôlego! Um deleite para os amantes do amor, dos prazeres, da sofisticação e beleza literárias.

O título deste excerto é o que intitula o post: Imperativos do sedento viajante, e a obra de Klimt não se encontra aí por acaso.


"Esta é uma ordem do teu escravo, amada.

Diante do espelho, sobre uma cama ou sofá engalanado com sedas da Índia pintadas à mão ou batique indonésio de olhos circulares, te reclinarás de costas, despida, e teus longos cabelos negros soltarás.

Levantarás a perna esquerda recolhida até formar um ângulo. Apoiarás a cabeça em teu ombro direito, entreabrirás os lábios e, amassando com a destra uma ponta do lençol, baixarás as pálpebras, simulando dormir. Fantasiarás que um rio amarelo de asas de borboleta e estrelas em pó desce do céu sobre ti e te fende.
Quem és?

A Dânae de Gustav Klimt, naturalmente. Não importa quem o inspirou para pintar esse óleo (1907-1908), o mestre te antecipou, te adivinhou, te viu, tal como virias ao mundo e serias, do outro lado do oceano, meio século depois. Acreditava recriar com seus pincéis uma dama da mitologia helênica e eras tu que ele precriava, beleza futura, esposa amante, madrasta sensual.

Só tu, entre todas as mulheres, como nessa fantasia plástica, reúnes a pulcra perfeição do anjo, sua inocência e sua pureza, a um corpo atrevidamente terreno. Hoje, prescindo da firmeza de teus seios e da beligerância de teus quadris para prestar uma homenagem exclusiva à consistência de tuas coxas, templo de colunas onde eu quisera ser atado e açoitado por me comportar mal.

Tu inteira celebras meus sentidos.

Pele de veludo, saliva de aloé, delicada dama de cotovelos e joelhos incorruptíveis, desperta, olha-te no espelho, diga a ti mesma: ‘Sou reverenciada e admirada como nenhuma outra, sou lembrada com saudade e desejada como as miragens líquidas dos desertos pelo sedento viajante.’

Lucrecia-Dânae, Dânae-Lucrecia.
Esta é uma súplica do teu amo, escrava."


Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, pp. 37-38.
[imagem: Danaë (1907), óleo sobre tela; Gustav Klimt]

domingo, setembro 04, 2011

Amor


"Como eu a amo (e eu a amo, sua tolinha, como o mar ama a rocha em suas profundezas, é assim que meu amor engole você – e possa eu ser a rocha dentro de você, se o céu me permitir, amo o mundo inteiro e isso inclui o seu ombro esquerdo, não, primeiro o direito, de modo que o beijo se sentir vontade (e se for bastante boazinha para afastar um pouco a blusa) inclui também seu ombro esquerdo e seu rosto por cima de mim na floresta e o meu repouso em seu peito quase descoberto" (Franz Kafka. Cartas a Milena. p.94).

segunda-feira, agosto 29, 2011

O Beijo


"Inclina teus lábios sobre mim
E que ao sair de minha boca
Minha alma repasse em ti"

(Diderot. Oeuvres Complètes III, Club Français du Livre, apud Barthes)
[Imagem: O beijo. Gustav Klimt]



domingo, agosto 21, 2011

Louca de Linguagem

Não sei se persigo o discurso amoroso ou se o discurso amoroso me persegue. Pensando bem, acho que perseguimos um ao outro: buscamos as mesmas coisas e, ao encontrarmo-nos, seguimos a mesma trilha. Não é à toa que encontro aqui ao meu lado, pela milésima vez, os Fragmentos de um Discurso Amoroso de Roland Barthes. Eu olho pra ele, ele olha pra mim. Estamos, mais uma vez, enamorados (e eu? completamente louca de linguagem!).


"A linguagem é uma pele: esfrego minha linguagem no outro. É como se eu tivesse palavras ao invés de dedos, ou dedos na ponta das palavras. Minha linguagem treme de desejo. A emoção de um duplo contato: de um lado, toda uma atividade do discurso vem, discretamente, indiretamente, colocar em evidência um significado único que é "eu te desejo", e liberá-lo, alimentá-lo, ramificá-lo, fazê-lo explodir (a linguagem goza de se tocar a si mesma); por outro lado, envolvo o outro nas minhas palavras, eu o acaricio, o roço, prolongo esse roçar, me esforço em fazer durar o comentário ao qual submeto a relação."

[Barthes, Roland. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989, p.64].

segunda-feira, agosto 15, 2011

Morte dos Amantes



"Uma tarde feita de rosa e de azul místico, trocaremos um lampejo único, como um longo soluço, carregado de adeus."

Baudelaire | Morte dos Amantes | apud Roland Barthes.


quarta-feira, agosto 10, 2011

A respiração oprimida de um peito oprimido


"... não faz sentido implorar-lhe..., mas talvez seja apenas um acréscimo à falta de sentido do pedido todo. Por favor, não fuja de mim se isso for possível neste mundo instável... não fuja de mim, mesmo que eu a decepcione uma vez ou milhares de vezes, ou agora ou sempre talvez. Para falar a verdade, este não é um pedido e não está dirigido a você. É somente a respiração oprimida de um peito oprimido" 

[Franz Kafka | Cartas a Milena | p.126]

terça-feira, agosto 02, 2011

Literatura: uma orgia perpétua


Algumas frases, ideias ou pensamentos não me dizem nada. Outras me dizem tanto que ecoam, soam e ressoam de maneira quase ininterrupta em minha cabeça: eis uma delas, dita e escrita por ninguém mais ninguém menos do que Flaubert:

"Le seul moyen de supporter l'existence c'est de s'etourdir dans la littérature comme dans une orgie perpétuelle" (Carta a Mlle. Leroyer de Chantepie, 4 de setembro de 1858).


quinta-feira, maio 26, 2011

Orgasmático Poema


A vagina vazia
imagina
que a página (sem vaselina)
a si mesma se preenche
e se plagia

Essa língua que sempre falo
(e falo sempre)
e distraído escrevo
embora não tão frequentemente
massa falida
desmorona no papel
                               quando babo
e acabada em texto
eu acabo
..........................

[Sempre tive predileção especial por esse poema de Paulo Leminski. Ele figura entre aqueles que anotei num de meus caderninhos. É claro que não pretendo cometer aqui o crime de explicar o poema, pois ele fala por si mesmo. Mas vou ao menos explicar os motivos pelos quais eu gosto tanto dele].

Considero-o genial por ao menos dois motivos: primeiro pela métrica poética e musical das rimas na primeira estrofe: vagina, vazia, imagina, página, vaselina, plagia (ina, ia, ina, ina, ina, ia); segundo, pela associação entre as ideias de "vagina e falo, língua e falo", que suscita a ideia de que quem escreve (e escrever tem relação, no caso aqui ambígua, com a língua)  escreve como quem faz sexo, portanto, como quem, ao escrever, ejacula, e, ao atingir esse clímax, escorre (baba e desmorona) em palavras. Ejacular palavras seria, aqui, gerar um texto: um esforço de quem ao ejacular se acaba em versos, e, deste modo, Leminski acaba também o poema. 

[Bom, que eu me lembre, o poema não tem um título. Eu é que o intitulei assim. Leminski e seus fãs que me perdoem se não gostaram...].




quarta-feira, maio 18, 2011

GOL CONTRA

Há uma semana estive, por conta da GOL, num hotel em Porto Alegre. Eu teria de dormir uma noite em POA porque a GOL fez alterações na “malha aérea” e mudou meu voo para um horário no qual eu chegaria atrasada para meus compromissos. Com a mudança a “melhor opção” foi aceitar viajar um dia antes e ficar num hotel. Claro que eles se responsabilizariam em me levar do aeroporto a um hotel, evidentemente pago por eles, e, no dia seguinte, me levar de volta ao Aeroporto, d’onde eu iria até a estação de trem rumo à São Leopoldo. Na verdade eu reivindiquei isso para aceitar a mudança.

A princípio tudo bem, afora o porre de aeroportos que tomei. Saí de Londrina no início da tarde passando por Curitiba e São Paulo. Please, não me perguntem a lógica de ir de Curitiba para São Paulo e de lá para POA, pois a GOL se autodenomina Linhas Aéreas Inteligentes. Só sei que com tanta inteligência a viagem (entre sobe, desce e espera) foi de quase 9 horas. Mas até aí tudo bem. Mesmo tendo pavor de avião encarei numa boa (sei que sou uma pessoa um tanto tolerante). Pensei que ao menos chegando lá eu descansaria num hotel, no mínimo, básico; um hotel, digamos assim, padrão business (tipo Ibis, Sol Inn ou afins), resumindo, um hotel clean (afinal, não sou cheia de frescuras e jamais esperaria que eles me mandassem para um cinco estrelas).

My god, quando cheguei lá, em torno das 22:00 hs, achei tudo meio esquisito, a atmosfera pesada, com cara de zona do meretrício. Mendigos dormiam pelas calçadas e também embaixo do viaduto que era logo ali. O lugar parecia ser de alto índice de periculosidade. Até aí tudo bem, pensei, cheia de tolerância... (haja tolerância). Entrei logo e, claro, não gostei nem um pouco. Detalhes à parte, o hotel era de um profundo mau gosto. Bom, até aí, eu repetia a mim mesma, tudo bem... Ah... como eu queria acreditar que “tudo estava bem”! Só que as coisas estavam cada vez piores.

Fiz minha ficha, peguei minha chave e subi não me lembro pra qual andar. Afff, quando saí do elevador levei um susto. Os corredores eram meio sinistros, mofados e mal acabados. Tudo parecia “de quinta”. O pior foi quando abri a porta e entrei no quarto. Levei um choque. Tudo, sem exceção, era pra lá de chinfrim, e eu só conseguia dizer: não acredito! não acredito! não acredito que a GOL me mandou pra um lugar como esse! Tentei me acomodar mas não consegui. Em 10 minutos liguei para a recepção e perguntei: moça, vocês só têm esse padrão de quarto?

Ela me perguntou: por quê? Não está bom?
Respondi: Claro que não!
Ela: ah, então desça aqui que eu vou te dar um que você certamente vai gostar.

Well, desci com um pouco de esperança (mas só um pouco), porque decididamente a aparência geral do hotel não era nada agradável. A recepcionista me deu um outro quarto que ela mesma denominou upgrade (que é o luxo), e garantiu que eu ia gostar. Ao pegar a chave perguntei a ela: a Gol manda seus clientes para este quarto? Ela disse um sim meio disfarçado e se apressou em acrescentar que a GOL autorizava acomodações também num quarto upgrade. Só não entendi por que ela não me mandou logo para um desses. Provavelmente ela arriscou. Se eu não reclamasse, ficaria por lá mesmo! De qualquer modo, fiquei mais tranquila e subi. Antes, passei pelo restaurante para jantar (e nem vale a pena perder tempo falando disso, a impressão ruim era a mesma). Quando saí do elevador, outra decepção. O corredor era igual ao anterior: muito esquisito! Dirigi-me desconfiada para o quarto e abri a porta. O mau gosto era o mesmo, mas as acomodações eram melhorzinhas (padrão luxo rsr, mas o luxo deles):o quarto era enorme, com uma cama de casal e duas de solteiro, umas colchas cor de burro quando foge, iguais as do quarto anterior, cortinas velhas e encardidas, mesinha redonda com cadeiras (meio caquéticas), porém, com TV de LCD (grande coisa), bancada de estudo, internet que, apesar de free, não conectou de jeito nenhum. Eu repetia: tudo bem, Marília, você só precisa tomar um bom banho e de uma boa noite de sono. Amanhã será outro dia!

Antes do banho resolvi arrumar a cama. Peguei um acolchoado no armário e, eis senão quando, vi que ele estava sujo, com cara de não lavado (não é mal lavado é não lavado mesmo) e com algumas manchinhas meio marrons (não me perguntem do que eram, pois não gosto nem de imaginar...). Pensei: e agora? Vou ter de encarar isso? Expressei um aiiii de quem estava sofrendo e vi que sim, eu teria de encarar, pois já era bem tarde e eu achava que nem adiantaria mais reclamar. O padrão era aquele. A contragosto puxei o lençol (este parecia limpo) e estendi o edredom por cima, de modo a que ele jamais tocasse em mim. Deixei ali e fui para o banho. O banheiro era bem vagabundo, mas eu precisava de um banho e descanso.

Retirei-me por um minuto do banheiro pra pegar umas coisas na mala e quando voltei, pasmem!!! vi uma barata tonta, gigante e horrorosa (como todas) vindo em direção ao meu pé. A sorte dela é que não tive (nem tenho) coragem de matá-la com um pisão. Dei um grito pra honrar a sensibilidade das mulheres e pra não perder o costume e saí correndo, fechei a porta e liguei na recepção. Um rapaz atendeu e disse que iria subir pra resolver, isto é, ele iria matar a barata. Ele subiu, só que a barata havia sumido, e não tem nada pior do que saber que existe uma barata perdida e invisível no local. Pedi um veneno qualquer, tipo spray, para caso eu a visse de novo. Mas eles não tinham. Dá pra acreditar?

Bom, ela sumiu mesmo e eu passei, por medida de segurança, a noite toda com a TV ligada (pra não ficar totalmente no escuro) e a impressão de que a qualquer momento aquela coisa horrorosa iria aparecer e meu mundo desabar. Quer dizer, não relaxei, não dormi, não descansei! Eu só rangia os dentes e pensava: putz, é assim que a GOL trata os seus clientes? Acho que não é preciso dizer mais nada! Fiquei indignada e estou aqui registrando a minha profunda insatisfação com o tratamento que a GOL me dispensou! Ora, se a GOL é uma marca que sugere o que um GOL significa, certamente ela marcou um GOL contra!

quarta-feira, março 16, 2011

Impressões, ideias e desculpas esfarrapadas

Bom, se me restam alguns leitores (ou leitoras) depois de tanto tempo de abandono, devo-lhes dizer:

Caros leitores, tenho um milhão de desculpas (a maioria bem ruinzinha) por tê-los abandonado. Sendo assim, em vez de ficar aqui apresentando desculpas esfarrapadas, vou tentar (sem garantia de conseguir) oferecer uma (e apenas uma) justificativa que seja boa para toda essa minha ausência.

É comum ouvirmos dizer que todo aquele que escreve e publica o que escreve (ou que faz da escrita o seu ofício), volta e meia passa por um período de bloqueio mental, uma espécie de paralisia imaginativa, infertilidade criativa, ou esterilidade de ideias. Mas todo esse tempo que fiquei afastada, que deixei de escrever aqui, não foi por conta de um período de bloqueio mental, pois minha mente continuou a trabalhar, e muito, com coisas que prestam, e um pouco também com coisas que não prestam. Quero dizer, minha mente pensou esse tempo todo (ainda que tenha pensado muitas bobagens).

Tampouco minha imaginação se encontrou paralisada, estéril ou vazia de ideias, pois, se Hume estiver certo quanto às nossas ideias serem cópias de impressões, minha mente está sempre repleta delas e nunca propriamente vazia. Isso porque eu sou (e todo eu seria) um feixe de diversas percepções, quer dizer, minha mente ou meu pensamento seria, digamos assim, um palco no qual se sucedem muitas ideias que, por sua vez, são cópias de minhas diversas impressões. Cada parte minha, cada sentido, cada poro meu está o tempo todo recebendo impressões, lendo e percebendo o mundo, isto é, formando ideias.

Nesse caso, acho que posso dizer que formei muitas ideias todo esse tempo (mas, ironicamente, não escrevi aqui nenhuma). Por quê? Por que não tive vontade? Não! Eu tive! Talvez uma vontade débil, mas tive. Por que então? O que me impediu? Preguiça? Essa é uma boa hipótese! Excesso de trabalho? Falta de tempo? Essas não me parecem muito boas! Dispersão pura? Essa certamente contribuiu bastante! Falta de coragem? Talvez! Escrever, emitir opiniões, torná-las públicas, requer coragem. Tática? Não creio! Tática para quê? Só se for para perder leitores (rsr). Obstáculo emocional? Humm... num certo sentido sim! Às vezes meu coração trava. Sim, eu escrevo com a cabeça, com a mente, com o cérebro, mas escrevo com o coração também (e os dedos, of course). What else? Faltou impulso, ímpeto, disposição? Sim, faltou! Viajou? Yes, viajei!


quarta-feira, março 09, 2011

Em comemoração aos 300 anos de David Hume

Grupo Hume convida para as conferências abaixo, dando início a uma série de atividades em comemoração aos 300 anos do nascimento de Hume:

"Rethinking Hume's Second Thoughts about Personal Identity"
Don Garrett (New York University)
10 de março, às 10:00, na sala 4090 - FAFICH/UFMG

"Humean Contractarianism"
Geoffrey Sayre-McCord (University of North Carolina at Chapel Hill)
11 de março, às 10:00, na sala 4090 - FAFICH/UFMG

Informações:

Não será necessária inscrição antecipada
Disponibilizaremos certificados aos presentes

quinta-feira, fevereiro 17, 2011

III Encontro Hume

CHAMADA DE TRABALHOS PARA O III ENCONTRO HUME


A Comissão Organizadora do III Encontro Hume convida os alunos de pós-graduação e pesquisadores da filosofia de Hume à submissão de trabalhos. O encontro será realizado entre os dias 11, 12 e 13 de maio de 2011 no campus da Unisinos, em São Leopoldo/RS. Os interessados deverão submeter um resumo de até 500 palavras em arquivo Word ou similar (fonte Arial, tamanho 12, espaço 1,5) para o e-mail: encontrohume@gmail.com . O título e o resumo deverão constar em página separada, com a devida identificação do problema e as linhas gerais do argumento que se pretende desenvolver. Na primeira página deverão constar os seguintes dados do proponente:

Nome completo;
Endereço eletrônico;
Endereço e telefone;
Título do trabalho;
Instituição de origem e titulação;
E realizar a inscrição no sítio www.unisinos.br/eventos/ , bem como o pagamento da taxa de inscrição (R$ 15,00).

A data limite para o envio dos resumos é 8 de abril de 2011 e o resultado será divulgado juntamente com a programação completa do evento no dia 6 de maio do corrente ano. A notificação sobre a aceitação de cada trabalho será enviada exclusivamente por e-mail a partir do dia 18 de abril de 2011. A aceitação do resumo possibilita ao proponente a apresentação oral de comunicação na data do evento, conforme programação a ser divulgada. O tempo para cada comunicação será de 20 min, com 10 min, para a discussão do trabalho. Após a realização do evento, haverá entrega de certificado para os apresentadores de comunicação e ouvintes devidamente inscritos.

COMISSÃO ORGANIZADORA

Andre Luiz Olivier da Silva (Unisinos)
Andrea Cachel (IFPR)
Anice Lima (UFMG)
Marília Côrtes de Ferraz (USP/FAPESP)
Carlos Lima (UFBA)
Thaís Cristina Cordeiro (UFPR)
Giovani Prezzi (Unisinos)

terça-feira, dezembro 07, 2010

O fugaz reino dos perfumes





“... as pessoas podiam fechar os olhos diante da grandeza, do assustador, da beleza, e podiam tapar os ouvidos diante da melodia ou de palavras sedutoras. Mas não podiam escapar ao aroma. Pois o aroma é um irmão da respiração – ele penetra nas pessoas, elas não podem escapar-lhe caso queiram viver. E bem para dentro delas é que vai o aroma, diretamente para o coração, distinguindo lá categoricamente entre atração e menosprezo, nojo e prazer, amor e ódio. Quem dominasse os odores dominaria o coração das pessoas.”

(O Perfume: A História de um Assassino | Patrick Süskind | Tradução de Flávio Kothe | 3a. ed. | Rio de Janeiro | BestBolso | 2010).

A ideia desse romance é literariamente genial e surreal. A história que Süskind inventou é tão louca, interessante e bela que, capturada, aqui me precipito! Só estou na metade do livro, mas desde o momento em que cheirei as primeiras linhas estou a me conter para não chutar o pau da barraca e passar o dia todo a lê-lo

Logo de início o autor dá uma ideia geral do caráter do seu protagonista. Ele diz: “No século XVIII viveu na França um homem que pertenceu à galeria das mais geniais e detestáveis figuras daquele século nada pobre em figuras geniais e detestáveis.” E acrescenta que se Jean Baptiste Grenouille, “ao contrário dos nomes de outros geniais monstros como, digamos, Sade [...] Bonaparte etc, o seu nome caiu no esquecimento” não foi porque Grenouille estivesse aquém desses “homens das trevas, famosos em termos de arrogância, desprezo à raça humana, imoralidade, ou seja, impiedade, mas porque o seu gênio e a sua única ambição se concentravam numa área que não deixa rastros na História: o fugaz reino dos perfumes” (p.09).

Süskind escreve bem demais. Suas descrições não só das características físicas e psicológicas dos personagens (especialmente do protagonista, of course), mas também das situações e ambientes em que a história se passa são de uma riqueza impressionante. Parece-me que qualquer coisa que um mortal comum possa dizer sobre o assunto será infinitamente menos bela, interessante e genial do que esse autor diz. Então, é melhor deixá-lo falar:


A linguagem dos aromas

Grenouille é um personagem surreal. Alguém que cheira como quem espreita. “O idiota enxerga mais com o nariz do que com os olhos” (p.21) Possuía “o melhor nariz do mundo, tanto analítico quanto visionário” (p.106). Isso significa que o olfato era seu sentido mais aguçado. E todos os seus outros sentidos eram, digamos assim, defectivos. Na verdade, ele era um sujeito muito esquisito, praticamente um débil mental. Sentia o cheiro de tudo, mas, curiosamente, ele próprio, era completamente inodoro.

“Vivia encapsulado em si mesmo...” (p.29), silencioso como uma sombra. Não se esperava dele “qualquer manifestação afetiva” uma vez que a sua própria afetividade fora, por força das circunstâncias em que nasceu e cresceu, “bem lacrada” (p.29). Não precisava de luz para ver, pois se orientava apenas pelo nariz (p.132). E por uma espécie de aversão, menosprezo e ódio aos seres humanos, Grenouille buscava a maior solidão possível.

“... a rigor, não havia qualquer coisa no universo interior de Grenouille, mas apenas odores de coisas. (Por isso, falar desse universo como uma paisagem é força de expressão, pois a nossa linguagem não serve para descrever [os matizes] do mundo olfativo)” (p.140). Ela é infinitamente mais pobre.

Grenouille “tinha a maior dificuldade com palavras que não designassem algo que cheirasse, ou seja, com conceitos abstratos, sobretudo de natureza ética e moral... direito, consciência, Deus, alegria, responsabilidade, humildade, gratidão etc. ─ o que se devia expressar por isso era e continuou sendo para ele algo misterioso... a linguagem corrente já não seria suficiente para designar todos aqueles conceitos olfativos que ele reunira em si” (p.32).

“[...] Que aquela bebida branca que, a cada manhã, Madame Gaillard aprontava para as suas crias fosse simplesmente chamada de leite, quando, segundo a percepção de Grenouille, cheirava e tinha um gosto completamente diferente conforme estivesse quente, conforme a vaca de que provinha, conforme o que essa vaca tivesse comido, conforme a quantidade de nata que tivesse sido deixada e assim por diante..., que a fumaça, com seus cem odores distintos, a mudar a cada minuto, a cada segundo, constituindo uma nova constelação de odores composta em uma nova unidade, a fumaça do fogo, só tivesse exatamente um único nome, “fumaça”...; que a terra, a paisagem, os ares que a cada passo e, ao respirar-se, de inspiração, em inspiração, estavam plenos de um outro cheiro e, com isso, animados por outra identidade, mesmo assim tivessem de ser designados por aquelas três grosseiras palavras... todos esses grotescos desacertos entre a riqueza do mundo percebido pelo olfato e a pobreza da linguagem fizeram o garoto Grenouille duvidar do próprio sentido da linguagem, e ele resolveu só empregá-la quando o contato com outras pessoas tornasse isso absolutamente necessário” (p.32-33).


O alfabeto dos odores

“Aos 6 anos, já havia captado olfativamente todos os seus arredores. ... não havia objeto... não havia lugar, ser humano, pedra, árvore, arbusto ou cerca de ripas, nenhuma superfície, por menor que fosse, que ele não conhecesse pelo cheiro, que não reconhecesse e não guardasse firmemente na memória, em seu caráter único. Ele havia reunido dez mil, cem mil odores peculiares e específicos, mantendo-os à sua disposição tão nitidamente, tão sob controle, que não só se recordava deles quando voltava a cheirá-los como de fato os cheirava quando se recordava deles; sim, e ainda mais do que isso, sabia combiná-los de um modo novo entre si apenas em sua fantasia e, assim, criava em si mesmo odores que nem sequer existiam no mundo real. Era como se possuísse um enorme vocabulário de odores aprendido por conta própria, que o capacitava a formar uma quantidade enorme ─ simplesmente, tantas quanto quisesse ─ de novas frases de odores...” (p.33).

“Talvez o seu talento fosse comparável ao de uma criança-prodígio no âmbito da música, que tivesse, a partir das melodias e harmonias, decifrado o alfabeto dos tons individuais e que agora compusesse ela mesma melodias e harmonias completamente novas. A diferença, é claro, era que o alfabeto dos odores era incomparavelmente maior e mais diferenciado do que o dos tons e, além disso, a atividade criativa de Grenouille se realizava somente em seu interior e não podia ser percebida por ninguém, exceto por ele mesmo” (p.33-34). Ele era “uma presença inquietante... alguém que tinha o dom de ver através de paredes e vigas...” (p.35).

Mas “quem, como ele [Grenouille], tinha sobrevivido ao próprio nascimento no lixo não se deixava expulsar tão facilmente do mundo. Era capaz de comer sopa aguada dias seguidos, sobrevivia com o leite mais diluído, suportava os legumes e as carnes mais podres. Ao longo da infância, sobreviveu ao sarampo, disenteria, varicela, cólera, a uma queda de 6 metros num poço e a uma queimadura no peito com água fervente” (p.27).

“Era duro como uma bactéria resistente e auto-suficiente como um carrapato colado numa árvore, que vive de uma gotinha de sangue sugada no ano anterior. Precisava de um mínimo de alimentação e vestimenta para o corpo. Para a alma, não precisava de nada. Calor humano, dedicação, delicadeza, amor ─ ou seja lá como se chamam todas as coisas que dizem que uma criança necessita ─ eram completamente dispensáveis... Ou então, assim nos parece, ele as tinha tornado dispensáveis simplesmente para poder sobreviver” (p.27).

“O grito depois de seu nascimento, o grito sob a mesa de limpar peixe, o grito com que ele se tinha feito notar e levado a mãe ao cadafalso, não fora um grito instintivo de compaixão e amor. Fora bem calculado, quase se poderia dizer um grito maduramente calculado, com que o recém-nascido se decidira contra o amor e, mesmo assim, a favor da vida. Naquelas circunstâncias, isso era possível sem aquilo e, se a criança tivesse exigido ambos, então teria, sem dúvida fenecido miseravelmente” (p.27-28).

“Também poderia, no entanto, ter escolhido, naquela ocasião, a outra possibilidade que lhe estava aberta, calando e deixando o caminho do nascimento para passar direto à morte sem esse desvio pela vida, e assim teria poupado a si e ao mundo uma porção de desgraças. Mas, para se omitir tão humildemente, teria sido necessário um mínimo de gentileza inata, e isto Grenouille não possuía. Foi um monstro desde o começo. Ele se decidiu em favor da vida por pura teimosia e maldade” (p.28).



(Título Original: Das Parfum, die Geschichte eines Mörders)

domingo, outubro 24, 2010

Assim não dá!


Algumas coisas são espantosas. É incrível a falta de noção de espaço que certas pessoas têm (e aqui, talvez, em determinadas situações, possamos incluir qualquer pessoa, inclusive eu mesma). Mas aqui o caso é bem específico, e eu não me incluiria jamais.

Explico: tenho em minha vizinhança uma família agitada que fala quase todo o tempo muito alto, especialmente nos finais de semana que é quando eles mais ficam em casa. Minha janela dá de frente para essa casa. Moro num apartamento térreo de uns predinhos, então, é como se eu fosse vizinha de casa. Entre o meu espaço e o dessa família há um pequeno estacionamento aqui do prédio, afora muitas outras prejudicadas janelas que dão também de frente pra essa casa.

Putz: aquele pessoal fala alto mesmo! Eles começam o ti ti ti logo cedo. Se prestarmos atenção na conversa, podemos nos inteirar facilmente da “vida privada” daquela família (se bem que, adianto, certamente não vale à pena prestar atenção na vida deles). E digo vida privada, mas notem, nem tanto!

Percebo que há ali um casal, mais uma criança de uns 3 - 4 anos (me parece) e uma criança maior (talvez já adolescente). Repito: eles falam ALTO DEMAIS! E o pior, os pais resolvem ouvir música sertaneja no último volume. Quer dizer, a dose é dupla: falam alto e ouvem música muito alta. Aliás: a dose é tripla, pois as músicas são da pior qualidade (ao menos aos meus ouvidos e gosto, e, provavelmente, de muitos outros vizinhos). Talvez eu devesse acrescentar: a dose é Over, pois afora tudo isso a criança chora e faz manha o tempo todo, enquanto a mãe grita. Eles não têm noção (ou fingem não ter noção) do quanto me incomodam.

Tenho uma rotina X que inclui algumas horas de estudo, todos os dias, sejam dias de semana, sábados, domingos ou feriados. Não tenho hora para começar nem hora para terminar. Na verdade faço meu horário a bel prazer e dever. Tenho minhas preferências. Gosto de estudar mais de manhã, mas nem sempre nos dias de semana dá certo estudar mais nesse período do que nos outros (à tarde, à noite ou de madrugada). Porém, nos finais de semana, quando, em geral, minhas filhas saem com as amigas, fico mais livre para me deleitar nos estudos, nos livros de filosofia e literatura que sempre me acompanham, fico mais livre para tirar uma sonequinha fora de hora (claro, eu também mereço), enfim, são dias de descanso. Pois quem gosta de filosofia, em geral, considera um dia assim (disponível para estudos) um dia de deleite e descanso. Ficar em casa sem ter de fazer nada, só estudar o que gostamos, é como descansar (embora, é claro, temos momentos em que ler, estudar e escrever com o prazo apertado para entregar um trabalho, produzir uma tese, ou algo assim, é tarefa penosa; mas esse não é o ponto).

O ponto é que hoje xinguei meus vizinhos várias vezes (claro que eles não ouviram, esbravejei comigo mesma). Era domingo cedo e eu trabalhava concentrada. Aos poucos comecei a sentir um incômodo, pois aquele tradicional burburinho familiar começara a invadir e azucrinar a minha cabeça. De repente, lá pelas dez da manhã, a música sertaneja estuprou de uma vez por todas o meu espaço. Fiquei louca de raiva! Parei, levantei e comecei a andar pra lá e pra cá, como um animal feroz enjaulado, xingando deus e o mundo. Pensei se seria razoável ir até lá educadamente explicar minha situação de “doutoranda” para a dona da casa, pedir gentilmente que eles contivessem aquela parafernália sonora. Fiquei na dúvida. Eles poderiam reagir de diversas maneiras. No melhor dos mundos possíveis eles, talvez, me atendessem. Mas poderiam também, em mundos cada vez piores, ser indiferentes, debochados, grosseiros e sei lá mais o quê! Fiquei na minha. Tentei várias vezes voltar a estudar, mas não conseguia mais me concentrar.

Ora, será que eles não percebem que estão a violar o princípio da liberdade (da minha e provavelmente de mais toda a vizinhança) de não querer, em hipótese alguma, ouvir aquela música desagradável e em volume excessivo? Será que eles não percebem que tal atitude não é compatível com a liberdade de todos segundo uma lei universal possível? Ok, nem precisamos apertar demais os parafusos. Não vamos exigir que eles entendam o que estou a reivindicar. Um pouco de bom senso bastaria!