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sábado, junho 05, 2021

Se ...


fosse eu poeta
poetisa escritora
ou algo assim
ai de mim!

sacava aqui
agora e enfim
uma poesia
a toda prosa.

.................

[marília côrtes / 2021]


Asiza Fine Art

domingo, maio 23, 2021

Tudo traz, tudo leva, tudo lava


Ela me perguntou o quanto eu a amava.

Reuni em vidro todos os humores vertidos:

sangue, sêmen, lágrimas.

Amo você tantos rios.

..............................

Carla Madeira | Tudo é rio | Record | 2021




Desnudo tendido
José María Rodríguez-Acosta | 1878-1941
Granada | Museo de Bellas Artes


..............................

Quem não leu esse romance fascinante de Carla Madeira não tem ideia do que está perdendo. Tudo é rio é tão bem escrito que dá até raiva na gente. Raiva e inveja. A gente pensa: como é que pode escrever tão bem assim, e já em seu romance de estreia? A história é tão formidável (não vou dar spoiler rs) e tão bem escrita que o livro não precisa sobreviver à crítica 200 anos pra gente saber que é bom — (sim, há quem defenda essa "tese da sobrevivência de uma obra", mas não é o meu caso). E tem mais: é um romance que não deve ser lido, devorado, assim, como um outro qualquer. Ele tem de ser degustaaado.

O título que dei ao post é uma frase do prefácio de Cris Guerra. E o poema-epígrafe, pelo que entendi, é da própria Carla Madeira. Bom, não é preciso dizer (dizendo) que gamei nesse livro. Ganhei de presente da minha amiga Marly. Amiga que sabe das coisas.

sexta-feira, maio 14, 2021

O peso do mundo

 CANÇÃO

O peso do mundo
é o amor.
Sob o fardo
da solidão,
sob o fardo
da insatisfação

o peso
o peso que carregamos
é o amor.

Quem poderia negá-lo?
Em sonhos
nos toca
o corpo,
em pensamentos
constrói
um milagre,
na imaginação
aflige-se
até tornar-se
humano –

sai para fora do coração
ardendo de pureza –
pois o fardo da vida
é o amor,

mas nós carregamos o peso
cansados
e assim temos que descansar
nos braços do amor
finalmente
temos que descansar nos braços
do amor.

Nenhum descanso
sem amor,
nenhum sono
sem sonhos
de amor –
quer esteja eu louco ou frio,
obcecado por anjos
ou por máquinas,
o último desejo
é o amor
– não pode ser amargo
não pode ser negado
não pode ser contido
quando negado:

o peso é demasiado

– deve dar-se
sem nada de volta
assim como o pensamento
é dado
na solidão
em toda a excelência
do seu excesso.

Os corpos quentes
brilham juntos
na escuridão,
a mão se move
para o centro
da carne,
a pele treme
na felicidade
e a alma sobe
feliz até o olho –

sim, sim,
é isso que
eu queria,
eu sempre quis,
eu sempre quis
voltar
ao corpo
em que nasci.

...............

Allen Ginsberg
In: “Uivo e outros poemas” (1956).

......................

Imagem: Brook Shaden Photography

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Não está nada fácil comemorar mais um ano de vida em meio à trágica notícia, ontem, de 430.596 vidas perdidas em praticamente apenas um ano, e só nesse nosso país lascado chamado Brasil. Vivemos, atualmente, numa espécie de show de horrores. É meu segundo aniversário em plena pandemia. E esse é meu jeito weird de, sem palavras, bendizê-lo 🖤.

terça-feira, abril 20, 2021

Canto





No túmulo,
quando eu morrer
esparrame pétalas
de rosas amarelas
perfumadas de teu suor.

Despregue uma lágrima cinza
de teus olhos oblíquos
e deixe-a quente na lápide
feito pedra judaica,
sem verbos.

Recite silêncio
verso de ninguém
a espremer o caldo
de rimas
jogadas a esmo.

Em ensaio de vida,
descubra o piscar
de estrela entre nuvens, e
no baile cósmico,
colha palavras molhadas.

Sinta meu cheiro
entre páginas
apagadas e
tente resto de sorriso,
quase nada.

..............

(Nilson Monteiro | abril | 2021)

.............................
Nosso amigo jornalista, poeta e escritor da geração pé-vermelho, membro da Academia Paranaense de Letras, com esse canto-poema tingiu de beleza a minha manhã. Estava lá no facebook. Encantei-me. Pedi permissão para ecoá-lo. Perguntei se estava publicado em algum de seus livros. Ele disse:  não, acabo de publicá-lo. 

sexta-feira, abril 09, 2021

La musique

LXIX


A música me arrasta às vezes como o mar!
No encalço de um astro,
Sob um teto de bruma ou dissolvido no ar,
Iço a vela ao mastro;

O peito para frente e os pulmões enfunados
Tal qual uma tela,
Escalo o dorso aos vagalhões entrelaçados
Que a noite me vela;

Sinto que em mim ecoam todas as paixões
De um navio aflito;
O vento, a tempestade e suas convulsões

No abismo infinito
Me embalam. Ou então, mar calmo, espelho austero
De meu desespero!

...............................................

BAUDELAIRE, Charles | As Flores do Mal |Tradução de Ivan Junqueira | Rio de Janeiro | Nova Fronteira, 1985 | p. 293. 

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Franz Sedlacek | Abendlied | 1938 | #surrealism




sábado, março 27, 2021

Just a dream

Noite passada
tive um sonho
um sonho 
de goiabada.

Acordei quente
doce
der 
    re 
        ti
           da
e melada.




Escrevi esse poeminha bobinho num papelzinho. Tá colado num certo caderninho de anotações. Se não o publiquei antes, foi apenas por pudor  desses igualmente bobinhos. Hoje mandei-os à M... !


quarta-feira, março 10, 2021

Pandora


Pânico, pandemia, pandemônio: 
é o inimigo invisível, é o novo demônio,
é a face coberta por um pedaço de pano,
é o humano reaprendendo a ser humano.
É uma carreata de caixões pelas ruas de Turim,
é o translúcido azul do céu de Pequim.
É o papa rezando na São Pedro deserta,
são as águas transparentes dos canais de Veneza.
Parece que faz tanto tempo que tudo aconteceu,
presos no labirinto com Minotauro e Teseu.

Legiões de desempregados em Teerã, São Paulo, Paris.
As calçadas de Guayaquil estão cheias de cadáveres.
Estão pregando tapumes nas fachadas.
Todas as fronteiras foram fechadas.
Os médicos e coveiros estão exaustos.
Os jornais nem noticiam mais o holocausto.
São pilhas de corpos-números cobertos por um véu,
São poemas que jamais sairão do papel.

Os confinados batem panelas, invocam os magos,
pumas invadem as avenidas de Santiago.
É uma vida pulsando entre a pedra e a espada,
é o prenúncio de uma economia global robotizada.
São velórios e shoppings vazios, praias desertas,
é o começo de um renascimento, é o fim de uma era.
É o silêncio ensurdecedor e o medo de morrer,
é o tempo pra ler toda a obra de Shakespeare,
é a chance de ser o maior experimento
de controle social de todos os tempos.
É um exército branco higienizando as cidades,
é um planeta em quarentena por toda a eternidade.

É um homem que saiu do isolamento e nunca mais foi visto,
são fanáticos gritando O Vírus é o Anticristo.
São anjos em polvorosa sobre os céus de Berlim,
são amantes aprendendo a amar enfim.
Já ninguém ouve o que os agonizantes urram,
os metrôs voltaram hoje a circular em Wuhan.
É solidão compulsória, é um estado de sítio,
são coiotes vagando livres por San Francisco,
É uma flor desabrochando durante a tempestade
(pois quando tudo acabar talvez seja tarde).
É a solidão futurista da Times Square,
é o suicida alcançando um revólver.
São navios de cruzeiro proibidos de atracar,
são hospitais abarrotados em Milão, Rio, Dakar.
Pássaros continuam voando, geleiras caindo,
há um pôr do sol distante, solitário e lindo.
É viver entre as paredes dos parênteses
em reticências que se alongam como meses.
É o mundo inteiro em stand-by,
é o corpo lutando por ar.

***
Rodrigo Garcia Lopes
O Enigma das Ondas [Iluminuras | 2020]

***
[Imagem | Pandora | 1885 | Walter Crane | 1845-1915]



quinta-feira, fevereiro 25, 2021

Namorados do Mirante


Eles eram mais antigos que o silêncio
A perscrutar-se intimamente os sonhos
Tal como duas súbitas estátuas
Em que apenas o olhar restasse humano.
Qualquer toque, por certo, desfaria
Os seus corpos sem tempo em pura cinza.
A Remontavam às origens — a realidade
Neles se fez, de substância, imagem.
Dela a face era fria, a que o desejo
Como um hictus, houvesse adormecido
Dele apenas restava o eterno grito
Da espécie — tudo mais tinha morrido.
Caíam lentamente na voragem
Como duas estrelas que gravitam
Juntas para, depois, num grande abraço
Rolarem pelo espaço e se perderem
Transformadas na magma incandescente
Que milénios mais tarde explode em amor
E da matéria reproduz o tempo
Nas galáxias da vida no infinito.

Eles eram mais antigos que o silêncio...


[ Vinicius de Moraes | 1913-1980 | Nova antologia poética | Cia de Bolso]


by Shira Barzilay

sexta-feira, fevereiro 19, 2021

Necrológio dos desiludidos do amor


Os desiludidos do amor
estão desfechando tiros no peito.
Do meu quarto ouço a fuzilaria.
As amadas torcem-se de gozo.
Oh quanta matéria para os jornais.

Desiludidos mas fotografados,
escreveram cartas explicativas,
tomaram todas as providências
para o remorso das amadas.

Pum pum pum adeus, enjoada.
Eu vou, tu ficas, mas nos veremos
seja no claro céu ou turvo inferno.

Os médicos estão fazendo a autópsia
dos desiludidos que se mataram.
Que grandes corações eles possuíam.
Vísceras imensas, tripas sentimentais
e um estômago cheio de poesia...

Agora vamos para o cemitério
levar os corpos dos desiludidos
encaixotados competentemente
(paixões de primeira e segunda classe).

Os desiludidos seguem iludidos,
sem coração, sem tripas, sem amor.
Única fortuna, os seus dentes de ouro
não servirão de lastro financeiro
e cobertos de terra perderão o brilho

enquanto as amadas dançarão um samba
bravo, violento, sobre a tumba deles.



Carlos Drummond de Andrade
Antologia Poética
Companhia das Letras

sexta-feira, janeiro 01, 2021

Ano Novo


Meia-noite. Fim
de um ano, início
de outro. Olho o céu:
nenhum indício.

Olho o céu:
o abismo vence o
olhar. O mesmo
espantoso silêncio
da Via-Láctea feito
um ectoplasma
sobre a minha cabeça
nada ali indica
que um ano novo começa.

E não começa
nem no céu nem no chão
do planeta:
começa no coração.

Começa como a esperança
de vida melhor
que entre os astros
não se escuta
nem se vê
nem pode haver:
que isso é coisa de homem
esse bicho
estelar
que sonha
(e luta).

.......................................................................................

Ferreira Gullar | 1930-2016 | Toda Poesia | Rio de Janeiro | José Olímpio | 1997



terça-feira, novembro 03, 2020

Debaixo das Unhas

 


PUTAS

Elas passam pelas ruas de todas as horas arrastando pedaços de seus corpos anteriores,
pedaços de suas trompas,
suas pontas de astros. 
Passam altivas carregando o peso de antigos seios de tantas mamadas, 
braços marcados por unhas e barbas, 
genitálias explodidas por muitos nãos que foram ditos entre berros, 
cabelos enozados por coágulos e vômitos cuspindo dentes.

Caminham juntas, passo a passo, cantando dolorosamente sua elegia da carne viva, enquanto as ruas as observam 
quase vivas,
garantidas por um mandado de segurança: cem metros de distância 
e maquiagens de alta definição – uma renovação pela graça de grandes laboratórios dirigidos por homens cientistas.

As boas pessoas que assistem ao cortejo rezam de cabeça baixa pedindo
a benção do esquecimento, mas as mulheres seguem 
ensanguentadas 
em direção ao espaço reservado aos que pagam penitências e culpas: putas!

____________________

Samantha Abreu
poema do livro Debaixo das Unhas (Olaria Cartonera, 2020)

____________________

Conheci a Samantha Abreu há mais ou menos um ano. Já conhecia seu nome como escritora londrinense e havia lido um ou outro de seus poemas. Frequentávamos os mesmos espaços, mas nunca havíamos nos esbarrado pessoalmente. Por ocasião da organização de um evento de filosofia na UENP, minha amiga Bah (Bárbara Marques) indicou a Samantha pra falar sobre a escrita de mulheres - tema de seus estudos. Era a primeira vez que em 20 anos de filosofia eu me dirigia, ao menos na academia, ao tema das Mulheres na Filosofia, dado o cânone filosófico ser, até hoje, predominantemente masculino, sobretudo branco, europeu etcétera e tal. 

Se considerarmos os 2.500 anos de história da filosofia, as mulheres começaram a figurar com uma certa sobressalência  no cenário filosófico (científico, político e literário também) há pouquíssimo tempo, ainda que a história estivesse repleta de mulheres escritoras, tradutoras, filósofas, cientistas, artistas, bruxas e o escambau. Há quem não queira que elas figurem em todos os espaços e áreas, principalmente, com absoluta independência. Não é o caso da Samantha Abreu. Nem o meu. 

Fiz, então, o contato com ela. Expus a proposta do evento. E ela, embora trabalhasse o tema de uma perspectiva mais literária, topou dar um minicurso sobre as mulheres na filosofia. Estudou, pesquisou, refletiu, organizou, ligou os pontos entre a escrita filosófica e a escrita literária (uma das misturas mais finas que existe), foi lá e, simplesmente, arrasou. 

Samantha Abreu é daquelas powerful girls que despertam paixões à primeira vista e a todas as outras vistas. Sua escrita também. Não sou crítica de arte e não entendo nada de poesia. Minha apreciação estética, literária e poética é totalmente passional e primária. Passa na ponta dos pés pelo entendimento. Não me cabe, portanto, teorizar sobre seus  belos, sensíveis e fodásticos poemas. Quero apenas dizer que recebi há mais ou menos um mês o livro Debaixo das Unhas e, claro, simplesmente amei 💘.

quinta-feira, outubro 08, 2020

hiatos


Somos feitos das mesmas bibliotecas
dos mesmos jardins suspensos
dos mesmos tapetes urdidos em tramas de lã
Somos desabrigados
e nossos tetos respingam um vapor goticulado

Somos como os hiatos
de uma palavra não dita
perdida nos vãos das pedras moventes
Por vezes, nos olhamos
do alto daquela montanha sem chão
e te mato sem querer
te afogo lá onde o mergulhador não chega

Mas te lembro que os hiatos são valentes
aceitam o não-lugar dos exílios
da fenda
da origem do tudo e do nada
Não há litígio para os feitos-seres-hiatos
eles somente se habitam
entrelaçam suas cavernas
afaimadas
Negligenciam o canto absoluto
ao perfurarem a superfície das coisas
e se deixarem pertencer a dois mundos

Revelo
[nesse amor hiato]
todas as fuligens levadas de meu corpo
quando escolhi fazer a travessia das pedras
e te encontrar deitado sobre os trilhos
para sentir o ar frio vindo das serras

Somos transeuntes de lugares doloridos
vemos juntos a agitação do mar
ao esticarmos nossos corpos na cama febril
E na dobra de nossos joelhos
ralados da curva de tantas esquinas
lembramos dos nós que não cabem em hiatos.



(poema de Bárbara Marques)





sábado, julho 18, 2020

A morte do amor


"Se eu pudesse voltar atrás
Não te amava.
É tão mais fácil
Manter o coração quieto no peito
Como se todos os dias
E todas as horas fossem iguais.

A inquietação de me faltares
Deixa os meus olhos tristes
Esperando que aceites
A mão que te estendo.

Mas tu não estás.
Eu parti com a última onda
Sem saber se voltarei um dia,
E o caminho que os nossos pés
Juntos percorreram
Choram a saudade
De ter morrido o amor
Quando dissemos adeus."

................................................

Ana Brilha | A Morte do Amor | in A Apologia do Silêncio | Edição de Autor | Cascais | Portugal | 2012


photo by Virginia Rota

sexta-feira, junho 26, 2020

Untitled


enquanto seu corpo movente
move-se lentamente
sua mente pensante
pensa sistematicamente

o país está um caos
no mundo a barbárie reina

entre vales e abismos
estradas vazias e horizontes perdidos 
ele vagueia enlutado
como quem se perdeu nas coisas
que se perderam no tempo
tal qual poeira ao vento.

restam-lhe apenas
rastros, sopros
e nuvens de existência.

..........................................................

[Marília Côrtes | 2018]


René Magritte
The Thought Which Sees


domingo, maio 17, 2020

Baudelaire-ando



XCIII

A uma passante

A rua em torno era um frenético alarido.
Toda de luto, alta e sutil, dor majestosa,
Uma mulher passou, com sua mão suntuosa
Erguendo e sacudindo a barra do vestido.

Pernas de estátua, era-lhe a imagem nobre e fina.
Qual bizarro basbaque, afoito eu lhe bebia
No olhar, céu lívido onde aflora a ventania,
A doçura que envolve e o prazer que assassina.

Que luz... e a noite após! – Efêmera beldade
Cujos olhos me fazem nascer outra vez,
Não mais hei de te ver senão na eternidade?

Longe daqui! tarde demais! "nunca" talvez!
Pois de ti já me fui, de mim tu já fugiste,
Tu que eu teria amado, ó tu que bem o viste!




photo by Brett Walker

XCIII

A une passante

La rue assourdissante autour de moi hurlait.
Longue, mince, en grand deuil, douleur majestueuse,
Une femme passa, d'une main fastueuse
Soulevant, balançant le feston et l'ourlet;

Agile et noble, avec sa jambe de statue.
Moi, je buvais, crispé comme un extravagant,
Dans son oeil, ciel livide où germe l'ouragan,
La douceur qui fascine et le plaisir qui tue.

Un éclair... puis la nuit! - Fugitive beauté
Dont le regard m'a fait soudainement renaître,
Ne te verrai-je plus que dans l'éternité?

Ailleurs, bien loin d'ici! trop tard! jamais
peut-être!
Car j'ignore où tu fuis, tu ne sais où je vais,
O toi que j'eusse aimée, ô toi qui le savais!


........................................................................................

BAUDELAIRE, Charles | As flores do mal | Tradução, introdução e notas de Ivan Junqueira | Edição biligue | Rio de Janeiro | Nova Fronteira | 1985.

domingo, maio 03, 2020

Fear


O medo vai ter tudo
pernas
ambulâncias
e o luxo blindado
de alguns automóveis

Vai ter olhos onde ninguém o veja
mãozinhas cautelosas
enredos quase inocentes
ouvidos não só nas paredes
mas também no chão
no teto
no murmúrio dos esgotos
e talvez até (cautela!)
ouvidos nos teus ouvidos

O medo vai ter tudo
fantasmas na ópera
sessões contínuas de espiritismo
milagres
cortejos
frases corajosas
meninas exemplares
seguras casas de penhor
maliciosas casas de passe
conferências várias
congressos muitos
ótimos empregos
poemas originais
e poemas como este
projetos altamente porcos
heróis
(o medo vai ter heróis!)
costureiras reais e irreais
operários
(assim assim)
escriturários
(muitos)
intelectuais
(o que se sabe)
a tua voz talvez
talvez a minha
com certeza a deles

Vai ter capitais
países
suspeitas como toda a gente
muitíssimos amigos
beijos
namorados esverdeados
amantes silenciosos
ardentes
e angustiados

Ah o medo vai ter tudo
tudo

(Penso no que o medo vai ter
e tenho medo
que é justamente
o que o medo quer)

O medo vai ter tudo
quase tudo
e cada um por seu caminho
havemos todos de chegar
quase todos
a ratos.

Sim
a ratos.

( Alexandre O'Neill | Poema Pouco Original do Medo | In: Abandono Viciado | 1924-1986) 


domingo, abril 05, 2020

Paupérrima rima


Basta uma 
lufada de fatos 
tristes e fatais
tristes e outras
pobres rimas mais
para nos lembrar 
o quanto somos
pobres mortais.

Photo by Brian Oldham

quinta-feira, abril 02, 2020

O amor




La tumba del poeta | Pedro Sáenz | 1863-1927 | Museo de Málaga



Um dia, quem sabe,
ela, que também gostava de bichos,
apareça
numa alameda do zoo,
sorridente,
tal como agora está
no retrato sobre a mesa.
Ela é tão bela,
que, por certo, hão de ressuscitá-la.
Vosso Trigésimo Século
ultrapassará o exame
de mil nadas,
que dilaceravam o coração.
Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.
Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!
Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!
Para que o amor não seja mais escravo
de casamentos,
concupiscência,
salários.
Para que, maldizendo os leitos,
saltando dos coxins,
o amor se vá pelo universo inteiro.
Para que o dia,
que o sofrimento degrada,
não vos seja chorado, mendigado.
E que, ao primeiro apelo:
– Camaradas!
Atenta se volte a terra inteira.
Para viver
livre dos nichos das casas.
Para que doravante
a família seja
o pai,
pelo menos o Universo,
a mãe,
pelo menos a Terra.



Vladimir Maiakovski (1893-1930)




segunda-feira, março 23, 2020

Sobre a vontade de morrer


De repente, depois de um longo sumiço, meu amigo aparece e, comme d'habitude, saca sua arte do bolso da morte e atira de lá do fundo do abismo.



eu tenho vontade de morrer
só pra ver o céu sem mim
e o cais vazio de embarcações
só pra ver o ar, a areia do ar
as coisas todas em silêncio
as brumas paradas do depois
e o vento imóvel nas estepes

eu tenho vontade de morrer
só pra ver as coisas despidas
a água de um mar indecifrável
a sombra que fecunda o chão
e a linha do horizonte sem luz

eu tenho vontade de morrer
morrer como se diz das horas
das cinzas, das brumas
das rochas que tão caladas
repousam sem mágoa
e ternamente não falam

eu tenho vontade de morrer só
sem nada sem dor sem ninguém
só pra fruir não ser não estar
e sentir fundo o esquecimento
só pra ver o trabalho das nuvens

nuvens, que são delicadas
sem alarde sem mágoa
que se desfazem sem som
quero morrer como nuvem
tentar morrer sem saudade
reservado e docemente casto
desataviado de tudo

eu tenho que morrer urgente
antes que as pessoas notem
e me importunem com ais
e me cubram de flores
e maculem a hora precisa
com o arrastar dos móveis
com "como eu era bom"
e depois me encerrem
num lugar sem nuvens

eu tenho vontade de morrer
de uma angústia no peito
da mesma que eu conheço já
eu que sei tanto de angústia
daquela boa, que tranca os canais

daquela que me dá vontade
de morrer num quarto
sem tv a cabo, sem wi-fi
sem janelas, sem serviçais
morrer como um dardo
que ao perder impulso cai
e ali permanece olvidado
sem flecha, sem alvo, sem arco
e sobretudo sem arqueiro.


                                  [ poema & pintura | ygor raduy ]

quinta-feira, janeiro 16, 2020

Fome





Tens a medida do imenso?
Contas o infinito?
E quantas gotas de sangue
Pretendes
Desta amorosa ferida
De tão dilatada fome?

Tens a medida do sonho?
Tens o número do Tempo?
Como hei de saber do extenso
De um ódio-amor que percorre
Furioso
Passadas dentro do vento?

Sabes ainda meu nome?
Fome. De mim na tua vida.

(Hilda Hilst | Da Poesia | Editora Cia das Letras | 2017).