terça-feira, outubro 28, 2014

Ceticismo e Fideísmo em Hume

XVI Encontro Nacional de Filosofia da ANPOF
27 a 31 de outubro de 2014
Campos do Jordão/SP


Eis o resumo de meu trabalho

Ceticismo e Fideísmo em Hume

Nesta comunicação pretendo discutir se há boas razões para assumir a interpretação segundo a qual Hume ofereceria suportes teóricos ao fideísmo, isto é, à ideia de que a religião encontra na fé, e não na razão, uma base sólida para a sua validade - controvérsia que tem lugar especial em sua obra Diálogos sobre a Religião Natural. Para tanto, divido minha comunicação em três partes. Na primeira, considerando a combinação que Hume faz entre o fideísmo místico de Demea e o ceticismo de Philo, avalio a hipótese segundo a qual sua filosofia poderia autenticar o fideísmo, haja vista ser digno de nota que Philo (personagem mais frequentemente interpretado como porta-voz do próprio Hume), ao ressaltar os limites e incertezas da razão humana, abre espaço para que a fé religiosa possa ser fundamentada em seu ceticismo filosófico. Na segunda, procuro levantar algumas dificuldades à leitura fideísta para, em seguida mostrar, que o ataque cético de Hume às doutrinas e princípios religiosos pode e deve ser interpretado à luz de seu interesse em estabelecer uma consideração científica e secular da moralidade. Por fim, apresento e defendo a hipótese segundo a qual a filosofia de Hume, a despeito das várias passagens em que Philo professa, digamos assim, uma confissão de fé, interdita o acolhimento filosófico do fideísmo, embora não se deva afirmar que ele esteja definitivamente proscrito da compreensão que Hume tem acerca da religião. Isto porque embora o fideísmo não seja desejável, conforme deverei mostrar, ele pode sim ser entendido como teoricamente permissível. No entanto, ainda que o fideísmo possa ser permissível em termos especulativos, as crenças religiosas, no interior da filosofia moral de Hume, resultam ociosas e inoperantes. A bem da verdade, vale ressaltar que elas não apenas se apresentam ociosas e inoperantes, mas, numa compreensão mais acurada, deve-se reconhecer que elas provocam efeitos danosos à sociedade, especialmente nas formas supersticiosas e entusiastas.

segunda-feira, outubro 27, 2014

Vontade e vontade: Como assim?

Penso que é possível dizer que o conceito mais fundamental da filosofia de Schopenhauer é o de vontade. À primeira vista, parece muito simples, afinal, quem não sabe o que é vontade, ter vontade, sentir vontade? Como Schopenhauer mesmo diz: a vontade é o que há em nós de mais imediatamente conhecido (MVR §18). Mas cuidado: essa vontade é apenas a vontade como fenômeno. Ora, como assim? Bom, para responder a essa questão é necessário distinguir a vontade como coisa em si e a vontade como fenômeno. A vontade fenomênica (ao menos a nossa) é essa que se expressa em nossos desejos e atos particulares, ou seja, essa de que temos consciência e conhecemos através do nosso corpo. Vontade como designação da coisa em si e vontade como aparência ou manifestação fenomênica são coisas bem diferentes e essa distinção é condição sine qua non para entendermos a filosofia de Schopenhauer. Não se pode confundir a primeira que, considerada puramente em si mesma, é desprovida de conhecimento e, portanto, não é mais que um impulso cego, sem finalidade e direção; não se pode confundir, dizia eu, com a vontade humana ou com nenhum outro tipo de processo consciente. Ora, mas a vontade não é aquilo que sempre quer alguma coisa? Que corre para a satisfação de um ou mais desejos? Então, como pode não ter finalidade ou direção? Mais uma vez impõe-se a necessidade da famosa distinção.

A afirmação schopenhaueriana de que a vontade, como coisa-em-si (bem entendido) é um impulso cego, sem finalidade e direção, é inequívoca, uma vez que é textual em vários parágrafos de O Mundo como Vontade e Representação. Precisamente no § 29 Schopenhauer diz: “A ausência de qualquer finalidade e de qualquer limite é, com efeito, essencial à vontade em si, que é um esforço sem fim” (§29 p.172). “A renovação contínua da matéria em cada organismo é ainda uma simples manifestação deste esforço e deste movimento perpétuos. Um eterno devir, um escoamento sem fim, eis o que caracteriza as manifestações da vontade. Todo ato particular tem uma finalidade; a própria vontade não a tem; como todos os fenômenos naturais isolados, a sua aparição em tal lugar, em tal momento, é determinada por uma causa que lhe dá fundamento; mas a força mais geral que se manifesta nesse fenômeno não tem ela própria causa, visto que ela é apenas um grau das manifestações da coisa em si, da vontade que escapa ao princípio da razão. Em resumo, a vontade sabe sempre, quando a consciência a ilumina, o que quer em tal momento e em tal lugar; o que ela quer em geral, ela nunca o sabe” (§29 p.173).

Como vocês podem ver, Schopenhauer fala em finalidade também. Mas essa só existe no ato particular (de uma vontade como fenômeno, iluminada pelo conhecimento e submetida ao princípio de razão suficiente). “Assim, o homem tem sempre uma finalidade e motivos que regulam suas ações: pode sempre dar conta da sua conduta em cada caso. Mas perguntem-lhe por que é que ele quer, ou por que é que ele quer ser, de uma maneira geral: não saberá o que responder, a questão lhe parecerá mesmo absurda”(§29 p.172). Pois bem, em suma, para Schopenhauer o que a vontade (como coisa em si) quer é simplesmente viver. A vontade como coisa em si é vontade de vida, mas carece da consciência disso. Schopenhauer chega a dizer que falar em vontade de vida seria mesmo um pleonasmo porque vontade, como essência do mundo, já pressupõe o querer viver, à medida que incessantemente disputa, cega e obstinadamente, a matéria, o espaço e o tempo para objetivar-se no fenômeno. E a vontade pode objetivar-se como matéria inorgânica, orgânica vegetal ou orgânica animal. Seja aqui, lá ou acolá. Seja neste ou noutro momento qualquer.


sábado, outubro 25, 2014

Esta noite ou nunca mais

"Não consigo mais ouvir em silêncio. Tenho de falar com você com os meios que estão ao meu alcance. Você trespassa a minha alma. Sou agonia e esperança. Não me diga que é tarde demais, que tais preciosos sentimentos se foram para sempre. Eu volto a me oferecer a você, com um coração ainda mais seu do que quando você quase o partiu, oito anos e meio atrás. Não ouse dizer que os homens se esquecem mais rápido do que as mulheres, que o amor deles morre mais cedo. Só a você tenho amado. Posso ter sido injusto, fui fraco e ressentido, mas nunca inconstante. Só por você vim a Bath. Só por você eu penso e faço planos. Será que você não viu? Será que você não conseguiu entender meus desejos? [...] Tenho de ir, incerto de meu futuro; mas vou voltar para cá [...]. Uma palavra, um olhar serão o bastante para decidir se entrarei na casa de seu pai esta noite ou nunca mais."

(Capitão Frederick Wentworth à Anne Elliot, pp.280-281).

sexta-feira, outubro 24, 2014

Question mark


Otto havia saído e batido a porta. Ella pegou um cigarro, sentou-se ao chão da sala e ali, paralisada, permaneceu. Não sentia as lágrimas molharem seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Não sentia as pernas adormecerem. Sabia apenas que não conseguia se mover. Ella estava ali e não estava. O telefone tocava como um ruído ao longe. Ella só sentia a ardência do cigarro em sua garganta. O choro, feito convulsão, não veio naquele momento, era somente uma água salgada e silenciosa que, por ausência de força, não conseguia enxugar. O pensamento ficou completamente borrado. De repente, sentiu uma dor tão violenta como se nunca mais pudesse sair daquela posição. Faltara-lhe o grito, o desespero, a fúria. A dor provocara-lhe a contenção de qualquer movimento voluntário. As lágrimas continuavam a escorrer e a grudar por todo seu corpo. Quando, finalmente, conseguiu se perceber no tempo e no espaço, Ella resolveu sair. No carro, enxergava o trânsito como por detrás de um fundo de garrafa. Tudo tinha ficado inaudível. À noite, depois de um esforço imenso, o pensamento de Ella começou, lentamente, a se organizar. Repassou cada movimento de Otto. Ouviu mil vezes cada palavra que havia sido dita. Reviu todos os olhares que ele lhe havia lançado. Tentou, friamente, reconstruir aqueles dias ─ o que lhe custou cavar e revirar ainda mais o buraco aberto em seu peito. Cada gesto do qual Ella se lembrava, agitava-lhe o entendimento que, por sua vez, lutava desesperado contra toda tentativa de compreensão. Nela, só havia incompreensão. E um enorme ponto de interrogação.

quinta-feira, outubro 23, 2014

O espanto filosófico


"E é próprio do filósofo admirar-se, e o filosofar não tem outra origem senão o estar pleno de admiração" (Platão. Teeteto, 155 d).


Não sei de quem é a tradução dessa passagem do Teeteto. Retirei-a daqui 
http://www2.dbd.puc-rio.br/pergamum/tesesabertas/0115685_03_cap_03.pdf
mas fui conferir na minha edição e a encontrei traduzida de modo diferente:

Vale dizer que nessa passagem Sócrates diz a Teeteto que Teodoro parece ser um bom avaliador no que tange à natureza de Teeteto (de possuir, entre muitas outras virtudes, um intelecto prodigiosamente bem dotado). Teeteto havia acabado de dizer a Sócrates estar perplexo, a ponto de chegar a experimentar vertigem quando se põe a considerar todas as questões que emergem da discussão a respeito do "que é conhecimento". Sócrates diz: "esse sentimento de perplexidade (müsteria) revela que és um filósofo, já que para a filosofia só existe um começo: a perplexidade"  (Teeteto, 155-d, edição da Edipro/2007).

Na edição da Fundação Calouste Gulbenkian a mesma passagem se apresenta traduzida do seguinte modo: "Efectivamente, meu amigo, Teodoro parece não ter adivinhado mal a tua natureza. Pois o que estás a passar, o maravilhares-te, é mais de um filósofo. De facto, não há outro princípio da filosofia que não este" (155-d).


"Teeteto - Pelos deuses, Sócrates, causa-me grande admiração o que tudo isso possa ser, e só de considerá-lo, chego a ter vertigens.
Sócrates - Estou vendo, amigo, que Teodoro não ajuizou erradamente tua natureza, pois a admiração é a verdadeira característica do filósofo. Não tem outra origem a filosofia" (155-d).

Preciosismos acerca das traduções à parte (ai que mania), Aristóteles perfilha essa mesma visão ao afirmar na Metafísica [A 2 982 b 10-15] que "de fato, os homens começaram a filosofar, agora como na origem, por causa da admiração, na medida em que, inicialmente, ficavam perplexos diante das dificuldades mais simples." 

Por sua vez, Schopenhauer, com sua concepção pessimista da existência, diz no suplemento 17 (referência ao § 15) do livro I do Mundo Como Vontade e Representação que:

"O espanto filosófico é no fundo uma estupefação dolorosa; a filosofia começa, como a abertura de Don Juan, por um acorde menor... É o mal moral, o sofrimento e a morte que conferem ao espanto filosófico sua qualidade e intensidade particulares; o punctum pruriens da metafísica, o problema que enche a humanidade de uma inquietude que nem o ceticismo nem o criticismo poderiam acalmar; consiste em se perguntar não somente por que o mundo existe, mas também por que ele é pleno de tantas misérias."

Sobre essa passagem (bem como sobre o significado de punctum pruriens) escrevi em 

[e, vejam só, cinco dias depois descubro de quem é a tradução da citação lá de cima, a que inspirou este post: é do Giovanni Reale em sua História da Filosofia Antiga volume I, p.387]

sábado, outubro 18, 2014

E por que não o nada?

Eu ia escrever algo sério sobre filosofia. Tratar, ainda que episodicamente, de ao menos um dos diversos temas, autores ou conceitos próprios da filosofia antiga, já que, por força das circunstâncias, passei os últimos cinquenta dias da minha vida debruçada sobre dez temas relativos a esse período da história da filosofia (e mais vinte dias me aguardam ainda em torno deles). Não foi a primeira vez, mas desta vez foi mais ampla, pontual e insistentemente. 

Tais temas envolvem o pensamento filosófico desde os Pré-Socráticos (século VI a.C) até Plotino (séc. III d.C), ou seja, quase mil anos de história. Confesso que não foi fácil, pois, a cada vez que começava a estudar um tema, os problemas filosóficos começavam a pulular. E o assunto crescia... crescia... crescia... até tornar-se gigante. Quanto mais procurava saber, mais percebia que nada sabia (é, Sócrates sabia o que dizia quando disse "sei que nada sei").

Enquanto isso eu pensava: por Zeus!!! das duas uma, ou vou ser engolida pela Physis ou massacrada pelo Logos, e jamais saberei A Verdade

Não, calma lá! Certamente haverá outras hipóteses: talvez eu transcenda essa esfera sensível, ascenda à esfera inteligível e nunca mais volte. Assim poderei definitivamente libertar minha alma desse cárcere em que ela habita e contemplar as ideias e formas platônicas, isto é, o verdadeiro Ser, em toda a sua plenitude.

Bom, mas se isso não acontecer, provavelmente morrerei intoxicada e louca de tanta substância aspirada das páginas da Metafísica de Aristóteles. E não haverá motor imóvel nenhum capaz de me mover. Meu repouso será eterno.

Ao mesmo tempo, também me perguntava: será que não posso mesmo entrar duas vezes no mesmo rio, como diz Heráclito, já que, no momento seguinte, nem o rio nem eu mesma somos mais os mesmos? "aos que entram nos mesmos rios outras e outras águas afluem [...] (frag. 12); "nós entramos e não entramos nos mesmos rios, somos e não somos" (frag.49). 

Será que as coisas são e não podem deixar de ser, ou não são e jamais poderão ser, como afirmou Parmênides (frag. 2,3)? 

Ora ora, Epicuro, tem certeza de que a felicidade identifica-se com o prazer e de que é possível alcançá-la pelos meios que você indica? Heloooo Sêneca, seria mesmo desejável a beata vita proposta por você (na esteira do estoicismo)? Diga-me, caro Protágoras, serei mesmo a medida de todas as coisas, das que são enquanto são e das que não são enquanto não são? Ou devo ouvir os céticos e suspender todos  os meus juízos?

Oh, god, que mundo é esse? Quem sou eu (se é que sou)? De onde venho? Para onde vou? Por que isso e não aquilo? E por que não o nada?




sexta-feira, outubro 03, 2014

A teus pés

“Oh! Como teria gostado de passar meio dia ajoelhado a teus pés, com a cabeça sobre teus joelhos, sonhando lindos sonhos, contando-te meus pensamentos com lassitude, com arrebatamento, às vezes sem dizer nada, mas pressionando meus lábios contra teu vestido!… Minha alma voa para ti com esses papéis; como um louco, digo-lhes milhares de coisas; como um louco. [...] Se, para uma mulher, ser feliz é saber-se única no coração de um homem, só ela, enchendo-o por completo, certa de ser a luz que brilha na inteligência dele, segura de ser seu sangue e de animar cada batida de seu coração, de viver-lhe na mente como a própria substância do pensamento, tendo a certeza de que sempre, sempre será assim; eh bien, querida soberana de minha alma, podes considerar-te feliz, e feliz senza brama, pois é assim que serei teu até a morte. É possível sentirmos saciedade das coisas humanas, mas não das coisas divinas, e só esta palavra pode explicar o que representas para mim" (Honoré de Balzac para Condessa Ewelina Hanska).


Ah, Balzac... Balzac... Balzac... divino é você! 

quinta-feira, setembro 11, 2014

Missiva

"Por que recorri novamente à escritura?
Não é preciso, querida, fazer pergunta tão evidente,
Porque, na verdade, nada tenho para te dizer;
Entretanto... [ah... entretanto], tuas mãos queridas receberão este papel"

(Os sofrimentos do jovem Werther. Göethe, apud Freud, apud Barthes, in: Fragmentos de um Discurso Amoroso, p.32).

[Fabian Perez]

Well, tendo ou não tendo nada a dizer, o que importa é que "tuas mãos queridas receberão este papel." Não ter nada a dizer e escrever assim mesmo, apenas para que o papel seja recebido e tocado pelas "tuas mãos queridas"... ah... que poético!

terça-feira, agosto 26, 2014

Dreaming

O homem, um deus quando sonha,
e apenas um mendigo quando pensa.

[Hölderlin, Hipério]


Não li Hipério ou o Eremita na Grécia, de Hölderling, mas me encantei com essa passagem que encontrei numa das epígrafes de abertura de Os cadernos de dom Rigoberto, de Mario Vargas Llosa, uma obra que me seduziu desde as primeiras linhas (aliás, desde o Elogio da Madrasta), como já indiquei aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/search/label/Mario%20Vargas%20Llosa, em outras cinco postagens.

Alguém poderia estranhar o fato d'eu ter me deixado seduzir também por esta epígrafe, já que me declaro agnóstica em relação à existência de deus e faço do pensamento, digamos assim, meu principal deleite e ofício. Para afastar esse estranhamento (caso ele tenha te assaltado, caro leitor) é muito simples. Sonhe! Leia também Os cadernos de dom Rigoberto. É divino! E torna fácil entender por que Llosa escolheu essa bela epígrafe para a abertura dessa obra. Lendo-a... tu me pouparás de dar explicações (já que estou com a maior preguiça, e sonhando...).

segunda-feira, agosto 25, 2014

Num trago


Ella entra no bar e fica ali a refestelar-se pelo balcão. Otto chega e, inadvertidamente, se aproxima. Ella não se mexe. Acende um cigarro, traga-o com força e, resoluta, permanece em silêncio, sem ao menos olhar para Otto. Otto também não fala nada. Apenas fica ali, parado, a fitá-la fixamente. A atmosfera se adensa. O silêncio pesa. E se estende... 
Passados alguns minutos, como se fossem horas, Ella irrompe:
- Garçon! Um copo de cólera, por favor! E sem gelo!
Ella bebe num gole só.
E tchau!

sábado, agosto 23, 2014

Rito


Egon Schiele [1890 - 1918]. Femme Assise Avec Le Genou Plié 

"São quatro da madrugada, Lucrécia querida", pensou dom Rigoberto. Como quase todos os dias, havia acordado na turva umidade do amanhecer para celebrar o rito que repetia cacofonicamente desde que dona Lucrécia fora morar no Olivar de San Isidro: sonhar acordado, criar e recriar sua mulher por invocação daqueles cadernos onde hibernavam seus fantasmas. 'E onde, desde o dia em que te conheci, tu és rainha e senhora.'"

"Contudo, à diferença de outras madrugadas desoladas ou ardentes, hoje não lhe bastava imaginá-la e desejá-la, conversar com sua ausência, amá-la com a própria fantasia e com o próprio coração, de onde ela nunca se havia afastado; hoje, precisava de um contato mais material, mais certo, mais tangível. 'Hoje, eu poderia me suicidar', pensou, sem angústia."

[...]

"No primeiro caderno que abriu, uma frase oportuníssima saltou e o mordeu: 'Meus ferozes despertares ao amanhecer têm sempre como ânimo, meu amor, uma imagem tua, real ou inventada, que inflama meu desejo, enlouquece minha saudade, deixa-me em suspenso e me arrasta a esta escrivaninha para me defender contra o aniquilamento, amparando-me no antídoto de meus cadernos, gravuras e livros. Somente isso me cura'".

Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.225-226.

Quem conhece essa obra de Lhosa (bem como O Elogio da Madrasta, anterior a este), saberá que o inquietante Egon Schiele não está aqui por acaso.

domingo, agosto 10, 2014

Os restos de Ella


Há tempos Ella se sentia partida ao meio. De um lado, estava esvaziada, como se dentro dela houvesse apenas um silêncio devastador. De outro, sentia-se um bicho enjaulado a querer vomitar tudo que pensava e sentia – uma massa gordurosa que estava a lhe corroer. Não era um silêncio escolhido. Era simplesmente o que lhe restava. Estava anestesiada. Nada podia fazer, a não ser recolher-se em seu próprio sofrimento.



sábado, agosto 09, 2014

Excuse my dust


"Casa dos espelhos para onde torno e retorno, devolvida a mim mesma, labirinto especular no qual continuo vagando, os pés feridos nos meus próprios cacos, armadilhas obstinadas a me reter, infinitamente, destruir-me, reconstruir-me, incessantemente, em dor, em pó" (Denser, Márcia. Diana Caçadora, p.41).

[Photo: Erwin Blumenfeld - Teddy Thurman - New York 1948]

sábado, agosto 02, 2014

segunda-feira, julho 28, 2014

Ausência

Uma das oitenta "figuras" que Roland Barthes apresenta em seus Fragmentos de um Discurso Amoroso é a ausência. Essa figura (seja qual for dentre as oitenta) é, como diz Barthes, "o enamorado em ação" (o sujeito universal apaixonado). Aquele que pode ser reconhecido no discurso que se passa. Discurso tecido de desejo, de lembrança, de saudade, de angústia, de espera, de cansaço, imaginário, loucura... e por aí vai... o enamorado(a) em ação, no poema Ausência, de Jorge Luís Borges:


[ by Jacob Sutton]

Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.

domingo, julho 27, 2014

Persuasão



"Ela tentou permanecer calma, deixar as coisas acontecerem, e procurou concentrar-se muito neste argumento de natureza racional: 'Com certeza, se houver uma afeição constante, nossos corações não tardarão a se compreender.'” 

(Anne Elliot, in Persuasão, de Jane Austin, p.261)
[photo by Uwe Steger]

sexta-feira, julho 25, 2014

Na brevidade do verso



CARPE DIEM

Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio — nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.

[Poema de Nuno Júdice] - [Arte: Untitled II by Fabian Perez]

quinta-feira, julho 24, 2014

quarta-feira, julho 23, 2014

Nas garras de um grito


Ella adorava tomar um longo e demorado banho quente. Muito quente. Podia ser de manhã, de noite, ou a qualquer hora. Ficava ali, debaixo do chuveiro, a deleitar-se naquela água corrente, ardente, a aquecer-lhe o corpo, a alma, o sangue e a imaginação, enquanto observava seus pensamentos escorrerem pelo ralo.  Friorenta como Ella era, tinha necessidade vital desses banhos.

Naquele dia, Ella acordou com um pequeno poema ressoando em sua cabeça. Ella não gostava de todos os poemas que lia, ainda que fossem escritos pelas penas dos mais famosos e consagrados escritores. Era seletiva. Gostava de alguns, mas nem sempre em sua completude. Às vezes, abraçava-os por inteiro. Outras, apreciava apenas um fragmento. Identificava-se com um verso, uma linha, uma expressão, ou simplesmente um sentimento suscitado. Fosse pela profundidade, beleza ou doçura. Fosse pela loucura, sensualidade, tristeza ou luxúria; ou mesmo pela composição de duas ou mais dessas qualidades.

Todos os dias Ella divagava por algumas horas em seus livros de filosofia e literatura. Navegava pelos links e hiperlinks disponíveis em sua era high-tech, procurando algo que lhe arrebatasse os sentidos. Anotava em seus diversos caderninhos tudo que lhe tocava a alma. E o corpo! Pois Ella sentia que vivia, dissessem o que dissessem alguns filósofos, num corpo inseparável de sua alma: Ella era uma substância só, inteiramente indivisível.

Naquela gélida manhã sem graça, sufocada como se tivesse uma corda amarrada ao pescoço, Ella acordou com um grito querendo saltar de seu peito. Levantou, despiu-se, abriu o chuveiro e entrou debaixo d'água quente. Ressoava em três linhas um verso do poema Olmo, de Sylvia Plath, que havia anotado em um de seus caderninhos.

Dentro de mim mora um grito. 
De noite, ele sai com suas garras, à caça 
de algo para amar!

Resolveu, então, tomar um banho gelado. 
Não suportou. Escorreu pelo ralo. E se foi.

quarta-feira, julho 16, 2014

Por ti

Das páginas de meu Moleskine...


"[...] Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me maltratarás irremediavelmente. Tuas carícias me envolvem como as trepadeiras aos muros sombrios. Esqueci teu amor e não obstante te adivinho atrás de todas as janelas. Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem".

[Pablo Neruda]

(ahh... o que seria de mim sem poesia..?)

quinta-feira, julho 03, 2014

Eros

"Quando fui preso ao doce começo
De uma doçura tão docemente doce...
(suave foi a flechada)"



Depois, ah, depois desse doce começo, depois dessa doçura tão docemente doce e dessa suave flechada, segue, Da maneira mais simples, um poema de Eugénio de Andrade.

"É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações."
.
.

Well: "Winter is coming soon!"
.

[Primeiro poema: Les Amours. Pierre de Ronsard, 1524-1585].
.

[Painting: Young girl defending herself against Eros (1880), William-Adolphe Bouguereau, 1825-1905]

quinta-feira, junho 12, 2014

Beijos, muitos beijos



[...]

Dá-me beijos, dá-me tantos
Que enleado em teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.

[...]

(Fernando Pessoa, in: Cartas para Ophélia)

sábado, junho 07, 2014

Nau


a nau me abandona nauseabunda
a náusea me abunda


Wreck of the "Ancon" in Loring Bay | Alaska |1889 | by Albert Bierstadt | 1830–1902  
Oil on paper mounted on Masonite 

terça-feira, junho 03, 2014

Observações triviais


Ella saiu pra almoçar às 12:45. Pelo brilho do sol, supôs que a temperatura estivesse mais alta. Se enganou tremendamente: o sol até que estava quente, porém, o vento... ai... o vento estava gélido e cortante! Ella se arrependeu de não ter se agasalhado até os dentes. Pensou que talvez fosse o caso de voltar ao hotel pra se agasalhar melhor. Mas, enquanto pensava, hesitou, pois achava que havia demorado tanto pra sair que, se voltasse, iria, comme d'habitude, se enrolar mais um pouco pra sair de novo. Acabaria perdendo o horário do almoço, a fome iria passar e isso certamente faria com que Ella passasse o resto do dia a enganar a fome quando esta retornasse ao seu estômago de passarinho.

Pensando assim (e já encantada pelo cenário das ruas curitibanas), seguiu em frente. Ao mesmo tempo em que blasfemava contra o vento frio, aprazia-se por ter tido a prudência de sair de luvas, cachecol, e  uma echarpe de lãzinha  na mochila. Tais acessórios ajudaram-na a suportar o frio, mas de modo algum a deixaram confortável. Ella procurou desviar sua atenção daquele frio impositivo em direção às pessoas que circulavam pelas ruas e avenidas, às belas praças, monumentos, construções, lojas e cafés (cenários que traziam a ela as mais diversas lembranças de um passado distante, mas memorável).

Ella andava sem direção definida, porém, a fim de encontrar um lugar agradável pra almoçar. Passeou pra cá e pra lá, nostalgicamente, até que encontrou um restaurantezinho com aparência simpática e sedutora. Entrou, apreciou o ambiente, sentou-se, e lá permaneceu ─ no Arrumadinho da Marechal Deodoro  a esperar seu virado à paulista, enquanto rascunhava suas observações triviais em seu moleskine de capa preta. 

segunda-feira, junho 02, 2014

Vida ordinária


Ella observa, enquanto toma seu café, a encruzilhada da Cruz Machado com suas velhas esquinas e seus transeuntes. Táxis, carros de passeio, utilitários e os mais diversos tipos de veículos automotores se entrecruzam. Pessoas comuns transitam pra cá e pra lá: passos compassados, mecânicos e regulares: uns mais apressados, outros menos ─ uma perna seguindo-se à outra, como numa engrenagem.

Os olhos de Ella percorrem vagarosamente todos os movimentos da rua, enquanto desgosta de seu café morno. Ella pensa: que vida mais ordinária, povoada de pessoas ordinárias, com seus rostos, roupas e sapatos ordinários!

Apesar da baixa temperatura de junho (e por que não dizer temperatura ordinária?), o céu curitibano está aberto e o sol reina majestaticamente. Porém, está frio demais para Ella e seu gosto quente. Suas mãos estão geladas. O coração apertado. E em meio à observação e burburinho ordinários, Ella aprecia o borbulhar de seu interno mundo extraordinário.





[foto: Jonathan Carroll]

segunda-feira, maio 26, 2014

Voragem


"Ela aí vai, a minha estrela, aí vai a resvalar no abismo, donde não sei se a levantarei mais..." (Machado de Assis, Teatro, p.270)


segunda-feira, maio 05, 2014

Por acaso...



A professora de filosofia chega à sala de aula e pergunta:
─ Quem aqui acredita que alguma coisa nesse mundo acontece por acaso levanta a mão!
Todos levantaram...

Ela dá uns 50 minutos de aula e, em outros termos, pergunta novamente:
─ Quem aqui acredita que o acaso existe levanta a mão!
Ninguém levantou.

Fim da aula!

quarta-feira, abril 30, 2014

Por um instante...


"... pois desde que te vejo, por um instante, não me é mais possível articular uma palavra: mas minha língua se quebra e um fogo sutil desliza de repente sob a minha pele: meus olhos não têm olhar, meus ouvidos zumbem, o suor escorre pelo meu corpo, um arrepio toma conta de mim; fico mais verde do que o capim, e por pouco me sinto morrer..." 

(Safo, apud Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989, p.136).

quarta-feira, abril 16, 2014

Oh vida enigmática!


Hino à vida

Claro, como se ama um amigo
Eu te amo, vida enigmática –
Que me tenhas feito exultar ou chorar,
Que me tenhas trazido felicidade ou sofrimento,
Amo-te com toda a tua crueldade,
E se deves me aniquilar,
Eu me arrancarei de teus braços
Como alguém se arranca do seio de um amigo.
Com todas as minhas forças te aperto!
Que tuas chamas me devorem,
No fogo do combate, permite-me
Sondar mais longe teu mistério.
Ser, pensar durante milênios!
Encerra-me em teus braços:
Se não tens mais alegria a me ofertar
Pois bem – restam-te teus tormentos.

[Lou-Andreas Salomé]

Devo confessar, ainda que a contragosto de muitos, que embora eu estude Hume e outros filósofos criticados por Nietzsche, tenho uma forte identificação com este autor, especialmente no que diz respeito ao seu interesse e apreço pela relação entre a arte, a filosofia, a vida e o espírito trágico.

Ora, mas o que tem a ver falar de Nietzsche aqui se o poema é de Lou- Salomé? Pois bem, não estou aqui para falar propriamente de Nietzsche, mas sim e tão-somente apresentar o belo poema da escritora russa Lou Salomé [1861-1937] (o grande amor da vida de Nietzsche), considerada a primeira mulher moderna que existiu na face desse ínfimo planeta chamado Terra.

Lou entregara um exemplar deste poema como presente de despedida a Nietzsche ao deixar Tautenburg  ─ local onde passou as férias de verão com ele e sua irmã Elizabeth Nietzsche. A meu ver, o poema revela que, a despeito da relação Lou-Niezstche não ter dado certo ─ pois embora Lou admirasse Nietzsche em demasia, desejava ser apenas sua amiga ─ eles compartilhavam do mesmo espírito trágico, ou, digamos assim, do mesmo amor fati (revelado no poema acima).



[Aviso aos leitores navegantes que o poema pode ser encontrado em traduções ligeiramente diferentes. Como não entendo bulhufas de alemão nem de russo, tenho que me contentar (e confiar... sempre com aquele ceticismo mais do que recomendado) com a pesquisa que fiz pela internet, pois o poema não aparece completo na biografia que li durante minhas férias de verão 40 graus, em dezembro de 2013. Se algum ser bondoso e versado na língua original do poema, preocupado com a precisão da tradução (que é mesmo importante), quiser fazer alguma correção, sinta-se à vontade].

A referência da biografia de Lou-Andreas Salomé é a seguinte:
Peters, H.F. Lou: minha irmã, minha esposa. Tradução de Waltensir Dutra. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1986, (com prefácio de Anaïs Nin).  

terça-feira, abril 08, 2014

A linguagem do amor

"O amor é mudo, diz Novalis, só a poesia o faz falar"


Há tempos anotei essa frase num de meus moleskines. 
Fiquei horas em silêncio, muda, 
a ouvir apenas a poesia contida no meu peito em chamas.

[Depois de um tempo ocorreu-me que alguém poderia objetar (pois sempre existe alguém nesse mundo disposto a objetar) que apenas a poesia poderia fazer o amor falar.  Imaginei que alguém (especialmente aqueles versados em lógica) poderia alegar: não se segue necessariamente... Mas, pergunto eu, o que tem lá o amor a ver  com a lógica? Ah... poupe-me dessa lógica e deixe-me aqui, a sós, em silêncio, com minha poesia amorosa a falar].