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quinta-feira, outubro 26, 2017

Minha divina e amada filosofia


Quem se debruçar sobre a filosofia encontrará, em meio às suas diversas áreas e concepções, aquilo que chamamos de filosofia moral. E quem buscar esclarecimentos sobre o estoicismo deverá certamente um dia encontrar no meio de seu caminho uma pedra muito preciosa: Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.): advogado, questor, cônsul, filósofo político, senador, orador e escritor de primeira grandeza.

Porém, não se pode dizer que Cícero foi propriamente um estoico, pois buscou conciliar diferentes escolas filosóficas, tais como, entre outras, a platônica e a aristotélica, na tentativa de haurir uma moral prática que correspondesse às exigências da cidade (cf. A Virtude e a Felicidade, nota biográfica feita pelo tradutor, p.VII). Cícero era um homem ilustre não só pela sua posição social e política, eloquência e estilo, como também pela sua habilidade dialética e qualidades literárias.

Segundo Carlos Ancêde Nougué, tradutor de ao menos duas das obras ciceronianas abertas aqui ao meu lado, poder-se-ia chamá-lo de “um eclético neo-acadêmico, ou um platônico com elementos céticos e estoicos...”. [...] “Cícero teria pertencido, do ângulo gnosiológico, à Nova Academia (a Academia Cética de Arcilau), mas, ‘ao mesmo tempo’, ter-se-ia fortemente influído pelo Pórtico médio, pelo mero fato de ter frequentado mestres estoicos" (Do Sumo Bem e do Sumo Mal, apresentação do tradutor, p.XIII).

Mas qual era, pergunta Nougué, “a escola que norteava o ‘sincretismo’ [filosófico] de Cícero? A ‘escola’ Sócrates. O nosso filósofo era um perfeito discípulo de Sócrates, um perfeito seguidor do seu método sui generis, e, se o afirma claramente nas Tusculanas, pratica-o extensa e minuciosamente nas disputas de Do Sumo Bem e do Sumo Mal. ‘Conheça-te a ti mesmo’ ─ também filosoficamente: é esta a melhor suma desta obra maior” (idem, p.XIII).

Well... não estou aqui para falar propriamente de Cícero, mas simplesmente para apresentar uma tocante passagem do livro V das Tusculanas, intitulado A Virtude e a Felicidade: uma passagem que quando li pela primeira vez não resisti a transcrevê-la nos meus (já aqui comentados) caderninhos de anotações. Chamou-me à atenção não só a beleza literária (à qual sempre me rendo) dessa exortação à filosofia, como também a divinização que Cícero faz dela ─ o que, talvez, para muitos, seria uma impiedade.

A discussão, como o próprio título revela, versa sobre a relação entre virtude e felicidade, e Cícero abrirá a obra sustentando que “a virtude é suficiente para fazer o homem feliz..." e também que "é o que a filosofia nos ensina de maior e mais essencial” (p.4). Embora eu não concorde que para sermos felizes basta que sejamos virtuosos (tese que renderia uma longa discussão), não posso deixar de apreciar a passagem que se segue abaixo.


“Ó filosofia, és a única capaz de nos guiar! És tu que ensinas a virtude e que subjugas o vício! Que faríamos nós e em que se tornaria o gênero humano sem o teu socorro? És tu que deste à luz as cidades, para que vivessem em sociedade os homens, antes dispersos. És tu que uniste, primeiramente pela proximidade do domicílio, e em seguida pelos laços do matrimônio, e por fim pela comunhão da linguagem e da escrita. Tu inventaste as leis, constituíste os costumes, instituíste a ordem. Tu serás o nosso asilo; é à tua ajuda que recorremos; e, se em outros tempos nos contentamos com seguir em parte as tuas lições, nós hoje a elas nos submetemos inteiramente, sem reservas. Um só dia passado segundo os teus preceitos é preferível à imortalidade de quem quer deles se aparte. Que outro poder imploraríamos antes que o teu, que outro poder nos teria trazido a tranquilidade da vida, que outro poder nos teria aplacado o temor da morte? Está-se muito distante, no entanto, de render à filosofia a homenagem que lhe é devida. Quase todos os homens a negligenciam; muitos até a vituperam. Vituperar a ela, a quem se deve a própria vida – como alguém pode ser capaz de manchar-se com esse parricídio? Como alguém pode levar a ingratidão ao ponto de ultrajar um mestre que se deveria ao menos respeitar, ainda que não seja capaz de compreender-lhe bem as lições? Atribuo esse horror a que os ignorantes não podem, através das trevas que os cegam, penetrar a antiguidade mais remota, para ver aí que os primeiros fundadores das sociedades humanas foram os filósofos. Quanto ao nome, ela é moderna; quanto porém à coisa mesma, vemos que é muito antiga”

Cícero | A Virtude e a Felicidade | Tradução de Carlos Ancêde Nougué | São Paulo | Martins Fontes | 2005

sábado, outubro 07, 2017

Memorabilis


Dia lânguido, acinzentado, chuvoso e friozinho. Acabo de conferir a temper: 21 graus. A chuva é bem-vinda. Tempos secos. Tempos de seca. 

Há um mês trabalho num memorial. Um memorial descritivo de minha trajetória acadêmico-intelectual-profissional... rs... vixi. Sim, é um palavrão! E minha memória é longa e diversificada. Tem mais de meio século de existência. São quase 19 anos de memória acadêmica (formação, produção, temas e problemas filosóficos), mais 37 anos de memória extra-acadêmica ─ pessoal e existencial (educação, paixões, inclinações, motivos e circunstâncias). As memórias se confundem, se misturam, se entrelaçam.

Questões familiares, políticas, econômicas e existenciais ─ há um contexto de vida antecedente à minha entrada na academia que, por sua vez, revela que há uma relação intrínseca entre essas questões, minha escolha profissional, interesses e inclinações teóricas no estudo da filosofia. 

Confesso que tenho apreciado a experiência (que sempre adiei adiei adiei e agora não pude mais) de refletir e ordenar por escrito minha própria experiência, embora seja altamente desgastante e, num certo sentido, um pouco angustiante. Tenho de fazer uma síntese de minha história, escolher o que dizer, o que não dizer, como me colocar sem parecer vaidosa demais, caso eu não consiga deixar de ser vaidosa demais (porque pra modéstia nunca levei muito jeito mesmo rs). Afinal, devo, de algum modo, apresentar e falar sobre minhas qualidades, minha formação e produção acadêmicas, dizer o que fiz de bom, importante e significativo. E isso é, num certo sentido, autoelogiar-se. 

Hume abre sua autobiografia dizendo "It is difficult for a man to speak long of himself without vanity; therefore, I shall be short" (Hume, My Own Life). Eu gostaria de fazer o mesmo em meu memorial ─ to be short  ─ para não ser (ou ao menos não parecer) vaidosa demais. Mas não garanto.


deep inside
by Loui Jover

quarta-feira, setembro 27, 2017

Perene movimento


“Não consigo fixar meu objeto. Ele vai confuso e cambaleante, com uma embriaguez natural. Tomo-o nesse ponto, como ele é no instante em que dele me ocupo. Não retrato o ser. Retrato a  passagem; não a passagem de uma idade para a outra ou, como diz o povo, de sete em sete anos, mas de dia para dia, de minuto para minuto. É  preciso ajustar minha história ao momento. Daqui a pouco poderei mudar, não apenas de  fortuna mas também de intenção. Este é um registro de acontecimentos diversos e mutáveis e de pensamentos indecisos e, se calhar, opostos: ou  porque eu seja um outro eu, ou porque capte os objetos por outras circunstâncias e considerações.”

[ Montaigne. Ensaios III 2. Sobre o Arrependimento ]

by KwangHo Shin

quarta-feira, setembro 13, 2017

Considerações sobre o princípio de proporcionalidade entre a causa e o efeito nos Diálogos de Hume


Transcrevo abaixo o resumo de meu trabalho apresentado no VI Encontro Hume, em agosto de 2017, na UFMG/BH. Devo dizer que pela primeira vez fui com o texto prontinho, redondinho, sem uma vírgula sequer a mexer, devidamente calculado para o tempo programado de 30 minutos. Fechei o texto em 9 páginas e constatei que poderia lê-lo em 25', ou seja, com 5 minutos de sobra para uma introdução e comentários no meio da leitura.

Em geral, sempre vou a eventos com o texto inacabado e, por isso, viajo preocupada com a apresentação, especialmente porque depois que a gente sai de casa e chega ao evento fica difícil retomar a concentração e trabalhar ainda no texto. Mas dessa vez foi diferente. Não havia mais nada a mexer, cortar ou acrescentar.

Tal texto é uma pequena parte (9 pgs) do segundo capítulo (60 pgs) de minha tese de doutorado (195 pgs). Há tempos não a lia. Gostei do que li rs. Mas tive que ler, reler, treler, cortar, reler, alterar, reler, cortar, putz, é um sofrimento. Mas valeu. Cheguei em BH na quinta-feira anterior ao evento (que começava na segunda). Pude comemorar com uma de minhas filhas (que também foi para lá) o aniversário dela, passear pela bela Belô e também conhecer Inhotim (o must), relax, sem nem precisar tocar no texto. O conforto, a tranquilidade e a segurança de já tê-lo pronto não têm preço.

Eis o resumo

Woman Writing | Picasso | 1934 | Oil on canvas

O tema central dos Diálogos sobre a Religião Natural dirige-se a uma análise do argumento do desígnio, defendido pelo personagem Cleanthes, segundo o qual a existência de um criador sumamente inteligente, justo, poderoso e benevolente pode ser inferida a partir da ordem e da beleza que observamos no mundo. Este argumento reclama uma resposta para a questão acerca de se temos fundamentos razoáveis para acreditar numa divindade (entendida como princípio originário do universo ou causa primeira) dotada de suprema inteligência, atributos e intenções morais, e procede por analogia explorando as similaridades entre os artifícios da natureza e certos artefatos humanos, a fim de provar que a mente divina é de algum modo similar à mente humana. Na seção 11 da EHU e também nos Diálogos, Hume, em sua investida contra o argumento do desígnio, recorre ao princípio de proporcionalidade entre a causa e o efeito. Ali, o personagem amigo epicurista de Hume estabelece que “quando inferimos qualquer causa particular de um efeito, devemos guardar a proporção entre eles, não sendo jamais permitido atribuir à causa quaisquer qualidades que não sejam precisamente aquelas suficientes para produzir o efeito. [...] e que se a causa atribuída a algum efeito não for suficiente para produzi-lo, devemos ou rejeitar essa causa ou acrescentar-lhe qualidades que a tornem corretamente proporcional ao efeito” (EHU 11 § 12: 190). Fiel a este princípio, Philo, o principal crítico do argumento do desígnio, afirma nos Diálogos que “quanto maior a semelhança dos efeitos que são vistos, e a semelhança das causas que são inferidas, mais forte é o argumento, e que, portanto, qualquer afastamento diminui a probabilidade e torna o experimento menos conclusivo” (D 5 § 1: 67). Com essa regra em mãos, Philo vai extrair algumas consequências inconvenientes que se seguem dos princípios que Cleanthes assumiu (like effects prove like causes) em defesa de seu próprio argumento, isto é, em defesa do argumento do desígnio. É sobre a relevância de tais princípios e consequências para a hipótese do desígnio que pretendo aqui discutir. (e foi o que eu fiz). C'est fini!

quinta-feira, agosto 10, 2017

VI Encontro Hume - UFMG - BH - 2017


Segue abaixo o link para acessar a programação do VI Encontro Hume. O evento ocorrerá entre os dias 21 e 25 de Agosto de 2017 - na UFMG/Belo Horizonte/MG, and I'll be there...




sexta-feira, maio 26, 2017

Diálogos sobre a religião natural


"No caso dos raciocínios teológicos [...] 
somos como forasteiros numa terra estranha,
aos quais tudo parece suspeito" (D 1 § 10: 37).

[ William Blake | O primeiro dia |1794 ]

Os Diálogos Sobre a Religião Natural, escritos entre 1751 e 1755 e publicados em 1779, constituem-se num dos mais importantes e influentes textos filosóficos de Hume, bem como num dos mais belos e engenhosos exemplos de diálogo filosófico. E embora a obra seja voltada para a temática da filosofia da religião, ela é uma contribuição de primeira grandeza para investigações filosóficas mais gerais como, por exemplo, metafísica, teorias do conhecimento, e também para a própria filosofia moral ou ciência da natureza humana que Hume pretendeu fundar. Nesse sentido, o texto dos Diálogos é um clássico filosófico amplamente reconhecido que figura entre as obras mestras de Hume.


Acesso ao cronograma do evento em http://filosofia.ufsc.br/

I'll be there...


quinta-feira, abril 20, 2017

VI Encontro Hume - Chamada para Trabalhos


VI ENCONTRO HUME

Belo Horizonte, 21 a 25 de Agosto de 2017

Local: FAFICH - UFMG



A Comissão Organizadora do VI Encontro Hume convida os estudantes de pós-graduação, professores e pesquisadores da filosofia de Hume para submissão de trabalhos sobre Hume e seus interlocutores. 

Datas e local do evento: 

O VI Encontro Hume ocorrerá entre os dias 21 e 25 de Agosto de 2017 na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas FAFICH - da Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG 

Sobre os resumos:

Os interessados deverão submeter um resumo de até 500 palavras em arquivo Word ou similar (fonte Arial, tamanho 12, espaço 1,5) para o e-mail: encontros.hume@hotmail.com. O resumo, com a devida apresentação do problema e as linhas gerais do argumento que se pretende desenvolver, deverá ser intitulado e incluir até 5 palavras-chaves.  No ato da submissão do resumo os autores deverão enviar por e-mail os seguintes dados: 

Nome completo: 
Endereço eletrônico:
Endereço e telefone: 
Título do trabalho: 
Instituição de origem e titulação:


Data final para submissões de propostas de trabalhos

24 de Junho de 2017


A aceitação do resumo possibilita ao proponente a apresentação oral de comunicação no evento, conforme programação a ser divulgada. O tempo para cada comunicação será de 30 min, com 10 min para a discussão do trabalho (total: 40 min). Após a realização do evento haverá entrega de certificado para os apresentadores de comunicação e ouvintes devidamente inscritos.

As datas para o pagamento das inscrições, programação e demais informações necessárias para a realização do VI Encontro Hume serão repassadas em breve, por meio de uma nova publicação e email. 

A notificação sobre a aceitação de cada trabalho será enviada exclusivamente por e-mail até o dia 15 de Julho de 2017. Inscrevam seus trabalhos e aguardem-nos!

Comissão Organizadora

Lívia Guimarães (UFMG)
Marília Côrtes de Ferraz (UFSC)
Hugo Arruda (UFMG)
Pedro Vianna Faria (UFMG)
Stephanie Zahreddine (UFMG)
Anice Lima (UFMG)
Wendel de Holanda (UFMG)
Vinícius Amaral (UFMG)


Comissão Científica

Pedro Paulo Pimenta (USP) 
Maria Isabel Limongi (UFPr)
Jaimir Conte (UFSC)
Marcos Ribeiro Balieiro (UFS)
Marcos César Seneda (UFU)
Andrea Cachel (UEL)
Stephanie Zahreddine (UFMG)
Bruna Frascolla (UFBA)


Organização da mesa em homenagem ao 
Professor João Paulo Monteiro 

Andrea Cachel (UEL)
Anice Lima (UFMG)
Bruna Frascolla (UFBA)

Coordenação Geral

Lívia Guimarães (UFMG)


Apoio

Programa de Pós-Graduação em Filosofia
Departamento de Filosofia
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)


segunda-feira, novembro 21, 2016

Ensaios sobre a filosofia de Hume


Enfim, chers lecteurs et lectrices, depois de muito trabalho e algumas estações invernais e primaveris, tenho o prazer de informá-los que acaba de ser publicado o volume 16 da "Coleção Rumos da Epistemologia" com os trabalhos apresentados no V Encontro Hume, realizado em abril de 2015, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) -  organização de Jaimir Conte, Flávio Zimmermann e Marília Côrtes de Ferraz (moi-même). Em breve sairá também a versão impressa. Dentre os 20 trabalhos publicados, há um ensaio meu intitulado O Status do Fideísmo na Crítica de Hume à Religião Natural. Take a look !!!




Ao final, Notas sobre João Paulo Monteiro (in memorian), uma homenagem de Rolf Nelson Kuntz.

sábado, agosto 27, 2016

A vida como fenômeno estético

Uma vez comentei com uma amiga sobre algumas obras de arte extremamente belas e delicadas (criação de uma artista grega chamada Mantha Tsialiou) que conheci, por acaso, pelo facebook. Mostrei as fotos de algumas obras à minha amiga que, por sua vez, mostrou-me, ali também pelo facebook, as obras de um amigo dela chamado Ygor Raduy (já publiquei um poema dele aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2016/08/na-borda-da-palpebra.html ). 

Bah... fiquei impressionada! Achei os desenhos e pinturas daquele rapaz, até então desconhecido pra mim, simplesmente maravilhosas, inquietantes, perturbadoras, especialmente suas figuras do abismo.

Não resisti e, completamente seduzida por aquelas obras, num impulso atrevido, enviei a ele uma solicitação de amizade pelo facebook. Digo impulso atrevido porque não costumo enviar convites de amizades a desconhecidos, e quase nem mesmo a conhecidos. Mas queria acompanhá-lo de perto. Tornamo-nos amigos "no face" (expressão engraçada, mas que está na boca de todos os seus usuários) e acabamos trocando algumas ideias numa conversa inbox tipo olá quem é você como chegou e o que faz aqui? Apresentei-me, falei um pouco do que percebia e sentia ao contemplar seus trabalhos e, a partir de então, passei a acompanhar as publicações não apenas de suas pinturas, mas também, para minha agradável surpresa, de seus textos literários e incrivelmente filosóficos.

Não tenho dúvidas de que ele tem uma extraordinária sensibilidade artística e filosófica, eu diria mesmo que ele é um artista genuinamente genial, bem ao modo como Schopenhauer fala da figura do artista-gênio no livro III de O mundo como vontade e representação, e bem ao gosto da tese de Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, segundo a qual a vida só tem sentido e pode ser justificada como fenômeno estético. Há claramente em suas obras uma fusão entre arte, filosofia e vida. Ele não apenas produz belas obras de arte, como também escreve maravilhosamente bem e, ainda, filosofa naturalmente. Tenho acompanhado seu facebook as an experiment, seus relatórios com diversos títulos e temas (relatório sobre nada muito importante, relatório sobre qualquer coisa, relatório com verdades definitivas, relatório sobre coisas esparsas), suas pinturas, desenhos e revisões de cânones, suas histórias esquisitas, seus exercícios de escrita, suas fotografias e reflexões em geral. Tudo é de uma tragicidade, riqueza e profundidade abissais.

Ao pensar sobre um tema caro à filosofia (e à vida de qualquer mortal-comum), isto é, a morte, vejam só o que ele escreve:


"Eu penso sobre a morte. Sem motivo algum, imagino que seja suave. Talvez seja macia como um acalanto é macio na infância. Talvez seja um envolver-se, um devolver-se, um deixar-se. Talvez morrer seja sedoso, como um imenso leito onde se repousa.  Talvez seja tentadora, a morte, como um mergulhar, um abandonar-se, um despir-se.  Para um corpo que vive, não há nada mais obsceno que a morte.  Mas já que sou humano, penso sobre ela. Será  a morte como um corte abrupto? Um baque? Um repentino desligar-se? Imagino a morte aveludada – talvez porque a vida seja tão áspera. A vida, aprendi, é dor. É o budismo que o diz. É a minha carne e o meu coração que o confirmam. Dor e Alegria, simultâneas. Mas a morte - talvez a morte seja a ausência, talvez o silêncio mais puro. Talvez seja o nada, talvez nela nos percamos de nós, talvez nos desliguemos – talvez seja um infinito esquecimento, um cessar, um interromper. A morte, eu imagino, é generosa, pois acolhe todo aquele que nela penetra. Quem está nela, já não sorri, já não goza, já não erra, já não avança, já não ama, já não sangra, já não arde. Meu único desejo é que na morte se possa ouvir Música. Não consigo suportar a ideia de um silêncio tão severo. Mas sei que a Música pertence à Vida. Quando a morte vem, a Música cessa. E há uma outra questão que me intriga: quando a morte vem, para onde vai o amor? É tão doloroso pensar que o amor também cessa quando a morte vem. Justo o amor, pelo qual juramos eterna sujeição, pelo qual derramamos sangue, suor, saliva, lágrima – é insuportável considerar que ele seja aniquilado pela câmara da morte, como um inseto.  Justo o amor, essa tina asquerosa e tóxica, dentro da qual chafurdamos. O amor, parente tão próximo do ódio. Eu pressinto que a morte não poupa nada, nem mesmo o amor, embora me doa esse pressentimento na alma como uma agulha dói quando enfiada na pele sem aviso."

(em http://streichspielen.blogspot.com.br/2010/05/sobre-morte.html)


Pois bem, posso reconhecer nessa reflexão alguns traços do pensamento de Epicuro (quanto à morte como dissolução e fim da consciência e, portanto, da dor e do sofrimento - um mergulho no nada) e Schopenhauer (no que respeita à sua teoria da prevalência do mal e do sofrimento na vida). E posso reconhecer, além de tudo isso e muito mais, um representante de uma nova geração de filósofos: "os filósofos do perigoso talvez a todo custo" - que Nietzsche prenuncia em Além do bem e do mal § 2, p.10-11).


[todos as obras de arte acima publicadas são de Ygor Raduy]

sexta-feira, agosto 12, 2016

GT Hume na ANPOF



Eis que o GT Hume se consolidou na ANPOF:

Dedicado primariamente à discussão da obra do filósofo escocês David Hume (1711-1776), o GT Hume pretende analisar temas tipicamente filosóficos da obra deste autor, tais como epistemologia, teoria das paixões, filosofia moral, filosofia da religião e filosofia política, bem como outros trabalhos de Hume em áreas como economia política, teoria política e história. Além disso, interessa ao GT Hume as relações desse filósofo não apenas com outros filósofos modernos, mas também com o contexto histórico do século XVIII e filósofos de outros períodos.

Coordenadora:

Profa. Dr.a Lívia Mara Guimarães (UFMG)
Email: liviamguimaraes@gmail.com

Núcleo de sustentação:

Prof. Dr. André Olivier (Unisinos)
Prof. Dr. Adriano Naves de Britto (Unisinos) (Membro do GT Filosofia da Linguagem)
Prof. Dr. Bruno Pettersen (FAJE)
Prof. Dr. Cesar Kiraly (UFF/IUPERJ)
Prof. Dr. Cícero Araújo (USP)
Prof. Dr. Fernão de Oliveira Salles (UFSCAR)
Prof. Dr. Giovani Lunardi (Membro do GT Ética)
Prof. Dr. Hugo Cerqueira (Cedeplar-UFMG)
Prof. Dr. Jaimir Conte (UFSC)
Prof. Dr. Marco Antônio Azevedo (Unisinos) (Membro do Núcleo de Sustentação do GT Ética)
Prof. Dr. Marcos Balieiro (UFS) (Membro do Núcleo de Sustentação do GT Filosofia da História e Modernidade)
Profa. Dra. Maria Isabel Limongi (UFPR)
Prof. Dr. Pedro Paulo Pimenta (USP)
Prof. Dr. Renato Lessa (Biblioteca Nacional) (Membro do GT História do Ceticismo)
Prof. Dr. Rogério Arthmar (Economia-UFES)
Profa. Dra. Sara Albieri (História Social-USP) (Membro do GT História do Ceticismo)

Membros do Grupo de Apoio ao GT:

Prof. Dr. André Klaudat (UFRGS) (Membro do GT Filosofia da Ciência)
Profa. Dra. Andrea Cachel (UEL)
Prof. Dr. Flávio Williges (UFSM) (Membro do Núcleo de Sustentação do GT História do Ceticismo)
Prof. Dr. Flávio Zimmermann (UFFS)
Profa. Dra. Marília Côrtes de Ferraz (UFSC)

Para acessar a página do grupo diretamente na ANPOF clique em

http://anpof.org/portal/index.php/pt-BR/2013-11-25-22-44-25/grupos-de-trabalho/category-items/2-grupos-trabalho/157-hume

domingo, maio 22, 2016

Vida, amor, valor e morte


Dia calmo, chuvoso, cinza, frio, manso e melancólico. Havia escrito algo que emergiu, de repente, em minha mente, enquanto tomava meu longo e lento banho quente (poderia ter se tornado um poema, mas não). Assim que saí e me enrolei na toalha, ainda com as mãos úmidas, peguei o celular e, para que meus pensamentos não se perdessem, derramei-os rapidamente no aplicativo Day One. Mais tarde, na hora em que eu ia enviar o esboço para meu email, num minuto de bobeira, sem querer, apaguei-o inteirinho (e não há nesse aplicativo nenhuma alternativa do tipo CTRL Z do Word que possa recuperá-lo). Lá se foram meus pensamentos que não voltam mais, ao menos do modo natural e espontâneo com o qual eu os havia escrito.

No banho, eu pensava sobre a morte ─ um dos temas filosoficamente mais interessantes. Quanto mais vivo e estudo, quanto mais o tempo passa (ou eu passo por ele), mais penso sobre a morte, embora eu a tenha pensado desde que me entendo por gente (como se diz por aí). Porém, antes d'eu começar a estudar filosofia, era um pensar diferente: mais leve, mais solto, digamos, mais descompromissado e menos constante. Com o natural e implacável avanço da idade, o estudo da filosofia, o acúmulo de experiências na vida e a literatura, a morte passou a ocupar mais insistentemente (e de maneira mais profunda e sistematizada) minhas reflexões. Quero dizer, quanto mais o inexorável ciclo da existência me aproxima da morte, mais penso sobre a vida ─ sua natural acompanhante ─ e no valor dos valores que elegi para a minha vida.

[Amore et Mortem. Roberto Ferri]

Mutatis mutandis, esse tema é o fio condutor da novela A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, que entra no assunto aqui porque me lembrei de um comentário dessa obra feito por Alain de Botton em seu livro Desejo de Status (com essa inflexão, perdi o fio da meada e vou acabar escrevendo tudo de modo muito diferente do que havia escrito. Anyway...)

Quem já leu a novela de Tolstói sabe que ela versa sobre a agonia e sofrimento de um respeitável e bem sucedido juiz que, ao saber-se acometido de uma grave doença, aos 45 anos, vê-se diante do abismo da morte. Ao dar de cara com a morte, Ivan passa a reavaliar todo o seu passado, "sua criação, sua educação e carreira" e, aos poucos, chega à desgraçada e infeliz conclusão de que viveu toda a sua vida “motivado pelo desejo de parecer importante aos olhos dos outros”, e que “seus próprios interesses e sua sensibilidade foram sacrificados para impressionar as pessoas que, só agora ele vê, não deram a mínima para ele" (Botton, p.211). "Os prazeres que Ivan Ilitch obteve com o trabalho eram os do orgulho; os prazeres que obteve com a sociedade eram os da vaidade..." (Botton, p.210).

"[...] A sensação de ter desperdiçado sua curta vida é composta pelo reconhecimento de que era somente de seu status que as pessoas gostavam, não de seu eu verdadeiro e vulnerável. Ele foi respeitado por ser juiz, por ser um pai e chefe de família rico, mas com esses ativos prestes a desaparecer, em agonia e medo, ele não poderia contar com o amor de ninguém” (Botton, p.211-212) ─ tudo o que ele mais precisava.

O comentário de Botton ilustra sua tese de que a causa mais primária e profunda do desejo de status (enquanto valor e importância que temos aos olhos do mundo), intrínseco à natureza humana, é o desejo de ser amado ─ um desejo maior do que o de possuir dinheiro, fama e influência. Quer dizer, todo desejo de status que, segundo Botton, naturalmente possuímos, tem sua fonte primária no simples desejo de ser amado. De uma perspectiva filosófica e histórica (eu diria também psicológica), Botton apresenta algumas teses acerca das causas da obsessão contemporânea por status, e sugere, posteriormente, algumas soluções (que vou chamar aqui de pílulas filosóficas) que poderiam nos propiciar uma existência mais plena e significativa do que aquela que busca prestígio, fama e renome.

Ao rememorar os comentários de Botton sobre a obra de Tolstói, eu pensava no valor de todas essas coisas e, especialmente, no valor de certas pessoas em minha vida ─ aquelas que contribuíram para que ela se tornasse melhor, mais rica, exuberante e plena de significado. Pensava também no quanto o caminhar implacável para a morte (apesar de toda jovialidade de espírito, forma e movimentos que ainda habita o meu ser) faz com que eu reavalie o valor de todos os valores que nutri e nutro hoje em minha vida.

Mas o texto que eu havia escrito era completamente diferente. Mais inspirado, solto e saltitante. Também não fazia referências às obras supracitadas. A leitura delas foi apenas o ponto de partida. Na verdade, eu começava assim: ei, você aí, meu querido leitor, tão longe e tão perto, antes que seja tarde, deixe-me perguntar: o que torna tua vida mais inspirada e plena de significado? O que a faz valer a pena? O que é que contribui verdadeiramente para que ela viceje? O que a torna mais garrida? Quem, verdadeiramente, se importaria com a tua morte? E por aí eu ia... e eu mesma respondia: tens quase tudo que queres. Falta-te pouco, muito pouco. Mas esse pouco significa muito.

Tais pensamentos nada mais eram, pois, do que um diálogo sobre a vida, o amor e a morte  ─  bem como o valor de todos esses valores ─ travado entre o meu eu lírico e o meu leitor igualmente lírico (ou, se se quiser, meu interlocutor imaginário), enquanto tomava um longo e lento banho quente.

terça-feira, abril 19, 2016

Hume e João Paulo Monteiro

Before yesterday, meu orientador de doutorado (uma figura sui generis) passed away. Fui sua última orientanda. Na época, a convite de meu colega e amigo Jaimir Conte, escrevi uma resenha sobre a primeira edição brasileira de seu livro 'Hume e a Epistemologia' (revisão do também meu colega e amigo Frederico Diehl). 


Tive também o prazer de trazê-lo a Londrina para uma conferência na UEL, cujo evento foi promovido pelo Departamento de Filosofia; Especialização em Filosofia Moderna e Contemporânea; e Especialização em Filosofia Política e Jurídica.

Em homenagem a ele, deixo aqui 'mon adieu affectueux' e o link de acesso à resenha: 



domingo, abril 10, 2016

Beleza e melancolia


Eis abaixo um exemplo do que Hume chama de "delicadeza do gosto" [delicacy of taste]: uma sensibilidade apurada para a beleza e para a deformidade nas ações, livros, obras de arte, ciências, etc... Refiro-me aqui, especialmente, à fusão entre pintura, música e poesia que o vídeo apresenta.

"Nada é tão benéfico ao temperamento quanto o estudo das belezas, seja da poesia, da eloquência, da música ou da pintura. Estas proporcionam uma certa elegância de sentimento estranha ao resto da humanidade. As emoções que elas excitam são suaves e ternas. Elas libertam a mente das pressões dos negócios e interesses; estimulam a reflexão; predispõem o espírito à tranquilidade; e produzem uma agradável melancolia que, de todas as disposições da mente, é a mais adequada ao amor e à amizade" (Essays I. Of the delicacy of taste and passion, #6).

Then, dear reader, para tornar teu domingo, tua vida e teu gosto mais delicados e sensíveis, take a look ... and... 


Don't explain


Edward Hopper & Nina Simone



quinta-feira, março 31, 2016

O filósofo perdido no homem


Para não dizerem que eu só falo de amor (rsr), ao mexer hoje em meus arquivos, encontrei a seguinte crítica de La Bruyère [1645-1696] ao estoicismo. Diz ele:

"O estoicismo é um divertimento do espírito e uma ideia semelhante à da República de Platão. Os estoicos inventaram que se podia rir na pobreza; que se podia ser insensível às injúrias, à ingratidão, à perda dos bens como à dos amigos e parentes; que a morte devia ser olhada friamente, como coisa que não deve alegrar nem entristecer; que o prazer e a dor não nos venceriam; sentir o ferro e o fogo dilacerando ou queimando o corpo, sem exalar um suspiro, nem verter lágrimas; a esse fantasma de virtude e de constância assim imaginado, aprouve-lhes dar o nome de sábio. Deixaram aos homens todos os defeitos que nele encontraram e quase não modificaram nenhuma de suas fraquezas. Em vez de fazer dos vícios pinturas horríveis ou ridículas que lhe servissem para corrigi-lo, mostraram-lhe o perfil de uma perfeição e de um heroísmo de que ele é incapaz e exortaram-no assim a realizar o impossível. Desse modo o sábio, que não o é, ou que é somente imaginário, julga-se naturalmente superior a todos os acontecimentos e a todos os males; nem a gota mais dolorosa nem a cólica mais aguda poderiam lhe arrancar uma queixa; o céu e a terra podem desabar sem que consigam arrastá-lo em sua queda e ele haveria de permanecer firme sobre as ruínas do universo, enquanto o homem que perdeu realmente seu sentido exaspera, grita, se desespera, escancara os olhos e perde a respiração só por um cão perdido ou por uma porcelana feita em pedaços" (La Bruyère, Jean de. Caracteres ou costumes deste século. Do homem, §3. p.177-178). 

Anotei essa passagem porque quando a li me lembrei de algumas críticas de Hume que vêm ao encontro das de La Bruyère, embora não se possa dizer que Hume não seria simpático a, ao menos, algumas teses estoicas, o que aqui não vem ao caso.

No contexto da problemática relação entre a divindade e a existência do mal no mundo, Hume [1711-1776], na Investigação sobre o entendimento humano, ao tratar do tema da liberdade e necessidade, antecipa algumas objeções que podem ser levantadas contra a teoria que acabara de apresentar. Uma delas, de caráter religioso, emerge da conclusão inevitável que se segue a essa teoria, qual seja, a de que ou as ações humanas não são criminosas, ou, se forem, é a divindade, e não o homem, responsável por elas - o que comprometeria, no mínimo, os atributos da perfeição e suprema benevolência divinas. Uma dessas objeções, eu dizia, defende que “após um rigoroso exame de todos os fenômenos da natureza, pode-se concluir que o todo, considerado como um sistema único, está em cada período de sua existência, ordenado com perfeita benevolência, e que a máxima felicidade possível resultará, ao final, para todas as criaturas, sem a menor mistura de mal ou miséria no sentido positivo ou absoluto” (IEH 8.2.§34).

No entanto, Hume observa que, dessa ampla perspectiva, filósofos, entre os quais os estoicos, extraíram, em meio a todas as aflições, tópicos consolatórios que se revelaram completamente ineficientes. Eles tentavam mostrar a seus discípulos que os seus sofrimentos eram, ao fim e ao cabo, bens para o universo. Porém, Hume adverte-nos de que "embora essas considerações sejam agradáveis e sublimes, logo se revelam fracas e ineficazes na prática. Certamente iríamos antes irritar que apaziguar um homem que sofre as dores torturantes da gota ao louvarmos a retidão das leis gerais que produziram os humores malignos em seu corpo e os conduziram, através de canais apropriados, aos tendões e nervos onde agora provocam aqueles agudos tormentos" (IEH 8.2.§34). 

É provável, segundo Hume, que a adoção de um tal panorama possa, por um momento, aprazer a imaginação de uma mente especulativa que não se encontre em situação de desconforto e insegurança, mas não pode habitar constantemente a índole de um homem, mesmo que este não esteja perturbado por dores ou sofrimentos. E, evidentemente, será ainda menos constante a adoção de tais amplas e remotas perspectivas quando o homem estiver acometido por intensas dores e infortúnios (cf. IEH 8.2.§34).

Eis aí, pois, o ponto no qual "o filósofo se encontra perdido no homem" (cf. Essays. O Cético, nota ao § 51).


sábado, fevereiro 13, 2016

That's the point

Eis aí algo em que eu acredito.
Quem é do métier sabe...


Trabalho e tédio. ─ Buscar trabalho pelo salário ─ nisso quase todos os homens dos países civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma boa renda. Mas existem seres raros, que preferem morrer a trabalhar sem ter prazer no trabalho: são aqueles seletivos, difíceis de satisfazer, aos quais não serve uma boa renda, se o trabalho mesmo não for a maior de todas as rendas. A esta rara espécie de homens pertencem os artistas e contemplativos de todo gênero, mas também os ociosos que passam a vida a caçar, em viagens, em atividades amorosas e aventuras. Todos esses querem o trabalho e a necessidade, enquanto estejam associados ao prazer, e até o mais duro e difícil trabalho, se tiver de ser. De outro modo são de uma resoluta indolência, ainda que ela traga miséria, desonra, perigo para a saúde e a vida. Não é o tédio que eles tanto receiam, mas o trabalho sem prazer; necessitam mesmo de muito tédio, para serem bem-sucedidos no seu trabalho. Para o pensador e para todos os espíritos inventivos, o tédio é aquela desagradável “calmaria” da alma, que precede a viagem venturosa e os ventos joviais; ele tem de suportá-la, tem de aguardar em si o seu efeito: ─ é justamente isso o que as naturezas menores não conseguem obter de si! Afastar o tédio a todo custo é vulgar: assim como é vulgar trabalhar sem prazer [...].


[Nietzsche. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, Livro I, Aforismo 42, p. 85].

quinta-feira, fevereiro 11, 2016

A voz da divina Loucura


Com a palavra, a Loucura:


"Sou difamada diariamente pelos homens, estes seres que estão acostumados a ferir minha reputação e conheço muito bem quanto soa mal o meu nome aos ouvidos dos mais tolos, mas me orgulho em vos dizer que esta Loucura que estais assistindo é a única que pode alegrar a vida dos deuses e dos mortais. A comprovação disso está na incontrolável alegria que brilhou nos olhos de todos quando eu surgi sublime, diante deste abundante palco" (p.17).



Pow! Acho essa abertura do Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, um desbunde. O livro é bem louco rsr, interessante e polêmico. Nele, é a Loucura quem vos fala. Ela está ali, personificada na voz de uma deusa que, como ela mesma diz, basta a sua "nobre presença para conseguir aquilo que vigorosos oradores jamais alcançariam com um fastidioso e meditado discurso para expulsar de vossa alma... o tédio" (p.18). 

Extremamente irônica, a obra é uma sátira à sociedade dos séculos XV e XVI - um discurso pilhérico proferido pela própria Moria (e, note-se, esse detalhe é importante, a Loucura é feminina - é mulher). Esta, por usa vez, ridiculariza a sabedoria, os sistemas, os costumes, as crenças e os homens, incluído-se, aí, os acadêmicos, soberanos e papas. Ela deseja mostrar que tudo que diz é a cristalina verdade. Não há, na Loucura, nenhuma falsa modéstia. Ao contrário, numa roupagem excêntrica, trata-se de um auto-elogio, de uma auto-celebração, afinal, como ela mesma diz: "quem poderá fazer a minha pintura com mais veracidade do que eu mesma" (p.19)? Ela diz tudo que lhe vem à boca, sem papas na língua. E se regozija tremendamente com isso (p.20). 

"Adeus, pois, ilustres e caros amigos! Aplaudi, vivei, bebei, ó muito nobres iniciados nos segredos da Loucura" (p.191). 


Foi mesmo um prazer insano.

The grand finale
William Henry Barribal


(Rotterdam, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução de Ana Paula Pessoa. São Paulo: Sapienza, 2005).

terça-feira, fevereiro 09, 2016

Silêncio eloquente

VI

Por mais que se fale ou pense ou
escreva, eis o veredicto:
sobre o que não há de ser dito
deve-se guardar silêncio.
Ser, não-ser, devir, dasein,
ser-pra-morte, ser-no-mundo:
Valei-me, são Wittgenstein,
neste brejo escuro e fundo
sede minha ponte pênsil,
escutai o meu não-grito:
pois quando não há o que ser dito
deve-se guardar silêncio.

[Paulo Henriques Britto | Sete peças acadêmicas | Tarde | 2007]


 kasimira miller by maggie west

sexta-feira, dezembro 25, 2015

Da inconstância de nossas ações


"Não somente o vento dos acidentes me agita de acordo com a sua inclinação, mas, além disso, eu me agito e perturbo a mim próprio pela instabilidade de minha postura; e quem quer que se observe atentamente, dificilmente se encontrará duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora uma face ora outra, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diferentes maneiras é porque me vejo de diferentes maneiras. Toda as contradições, de um modo ou outro, encontram-se em mim. Envergonhado, insolente, casto, luxurioso, tagarela, taciturno, laborioso, delicado, engenhoso, atordoado, aflito, afável, mentiroso, veraz, sábio, ignorante, liberal, avaro e pródigo: tudo isso vejo em mim de algum modo, conforme o lado para o qual me viro. E quem quer que se estude muito atentamente encontrará em si, e até mesmo em seu próprio julgamento, esta volubilidade e discordância. Não há nada que eu possa dizer de mim mesmo de modo completo, simples e sólido, sem confusão ou mistura, tampouco em uma única palavra".

[Montaigne. Essais II. Chapter I, De l'inconstance de nos actions]


terça-feira, dezembro 01, 2015

Intimidade


Acabo de ler um trabalho sobre Nietzsche, no qual o(a) aluno(a) chama este autor de Nit. De acordo com Nit... Nit afirma... Nit declara... Segundo Nit. Nit pra cá, Nit pra lá rsr. Pensei:  que maravilha! quanta intimidade! Achei um mimo... hehehe.

Acho que vou começar a chamar Hume de Davizinho, Kant de Emmanuelito, Descartes de René, Aristóteles de Arizinho, Wittgeinstein de Witt, Hobbes de Hobbinho, Schopenhauer de Schop... and so on...

segunda-feira, outubro 26, 2015

ENEM 2015: Hume


Naturalmente, algumas pessoas vieram ontem me perguntar o que achei da questão sobre Hume na prova do ENEM 2015. Eu já havia tomado conhecimento da polêmica desencadeada por ela, mas não havia me habilitado a discuti-la (por pura preguicite aguda de domingão chuvoso rs). Bom, não deu pra escapar. Eis, então, a minha opinião:

A meu ver, a questão está mal formulada. Do contrário, não teria gerado tanta polêmica. E ela está mal formulada, arrisco a dizer, porque a terminologia empregada, extremamente imprecisa, dá margens a dúvidas em relação às alternativas de respostas. Vejam só... (prova retirada da internet):



Bom, as alternativas (C)(D) penso que estão fora de cogitação. Abstenho-me, por enquanto, de comentá-las. Só farei isso se alguém vier a defender que alguma delas possa ser considerada correta. A polêmica, pelo que vi no facebook, gira em torno das outras três, em virtude do emprego de alguns termos e expressões discutíveis.

A alternativa (A) “os conteúdos das ideias no intelecto têm origem na sensação” poderia ser considerada correta, embora o uso do termo intelecto não seja apropriado, uma vez que Hume não fala, salvo engano, em intelecto (no índex da EHU e THN não se encontra), e fale em faculdades intelectuais [intellectual faculties] da mente, incluindo aí a memória, a imaginação, a razão, o entendimento e, num certo sentido, também a vontade. No final do parágrafo 7 Hume fala “da única forma pela qual uma ideia pode ter acesso à mente, a saber, por um efetivo sentimento ou sensação” (IEH 2 #7), não obstante apresente, em seguida, um fenômeno contraditório, bastante singular, cito Hume, “que quase não vale a pena examiná-lo, e tampouco merece que, apenas por sua causa, venhamos a alterar nossa tese geral” (IEH 2 #8).

A alternativa (E) “as ideias têm como fonte específica o sentimento cujos dados são colhidos na empiria” também poderia ser considerada correta, ainda que pareça  não levar em conta as ideias complexas (sem mencionar a discussão que pode ser levantada em torno da origem da ideia de conexão necessária). Esta alternativa parece limitar a questão às ideias simples, que são cópias de impressões originais. De qualquer modo, a fonte primordial, quer dizer, a primeira fonte de uma ideia sempre será uma impressão original, um dado sensível. Hume diz: "quando analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais complexos e grandiosos que sejam, sempre verificamos que eles se decompõem em ideias simples copiadas de alguma sensação ou sentimento precedente” (IEH 2 #6). Isso significa que o termo “específico” não elimina propriamente a alternativa, pois, ao fim e ao cabo, a primeira impressão é a fonte original de uma ideia, ainda que algumas ideias possam ser derivadas das relações que estabelecemos entre elas.

Há também a polêmica acerca da alternativa usar, além do termo “específico”, também o termo “sentimento.” Acontece que Hume emprega sim o termo sentimento: "all the materials of Thinking are derived either from our outward or inward sentiment" (EHU 2 #5).

Alguém poderia argumentar que se é "sensação ou sentimento precedente" (na tradução do José Oscar de A. Marques; estou sem a do Aiex aqui) não é especificamente sentimento. Mas, pergunto, qual a diferença entre sensação e sentimento? Se há diferença, ela é extremamente sutil. Hume diz: “when we analyze our thoughts or ideas, however compounded or sublime, we always find, that they resolve themselves into such simple ideas as were copied from a precedent feeling or sentiment” (EHU 2 #6).

Não fica claro se ele está tomando os termos como sinônimos ou se seria um ou outro (no caso de não tomar como sinônimos). Aparentemente ele está concebendo os termos como sinônimos. Feeling pode ser traduzido tanto por sensação quanto por sentimento. Débora Danowski, ao traduzir o Tratado da Natureza Humana, assinala a dificuldade de traduzir Feeling (“a mais problemática”), no uso que Hume faz desse termo (p.9).

A alternativa (B) “o espírito é capaz de classificar os dados da percepção sensível” também não poderia ser facilmente descartada. O termo “classificar” poderia ser considerado adequado sim, na medida em que dizer que a mente (mind, traduzida aqui, a meu ver, inadequadamente, por espírito) é capaz de classificar os dados da percepção sensível ─ isso está correto. Pois o que significa classificar? No caso, aqui, basicamente dividir, misturar e compor: a ideia de sereia é composta da divisão ou decomposição da ideia de uma mulher e da ideia de um peixe. Somando-se duas das partes divididas dá-se origem à ideia de um outro objeto, quer dizer, de dois objetos primeiramente divididos e, depois, compostos ou misturados, forma-se a ideia de um terceiro objeto “sereia” , sendo cada qual classificado por um termo específico: temos então as classes do objeto “mulher”, do objeto “peixe” e do objeto “sereia”. Ou seja, a alternativa também poderia ser considerada correta se afrouxarmos o rigor do uso preciso dos termos que Hume emprega e das opções de tradução que os termos nos oferecem.




Então, se alguém me perguntasse qual seria a alternativa correta, eu diria que a questão deve ser anulada, pois está mal formulada, dando ensejo a dúvidas e a mais de uma alternativa razoavelmente consistente. Faltou, creio eu, um elemento indispensável na formulação da questão: o rigor filosófico no uso dos termos.