Naturalmente, algumas
pessoas vieram ontem me perguntar o que achei da questão sobre Hume na prova do ENEM
2015. Eu já havia tomado conhecimento da polêmica desencadeada por ela, mas não havia
me habilitado a discuti-la (por pura preguicite aguda de domingão chuvoso rs).
Bom, não deu pra escapar. Eis, então, a minha opinião:
A meu ver, a questão
está mal formulada. Do contrário, não teria gerado tanta polêmica. E ela está
mal formulada, arrisco a dizer, porque a terminologia empregada, extremamente imprecisa, dá margens a dúvidas em relação às alternativas de respostas. Vejam só... (prova retirada da internet):
Bom, as alternativas (C) e (D) penso que estão fora de cogitação. Abstenho-me, por enquanto, de
comentá-las. Só farei isso se alguém vier a defender que alguma delas possa ser
considerada correta. A polêmica, pelo que vi no facebook, gira em torno das outras três, em virtude do
emprego de alguns termos e expressões discutíveis.
A alternativa (A) “os conteúdos das ideias no intelecto têm origem na sensação” poderia ser considerada correta, embora o uso do termo intelecto não seja apropriado, uma vez que Hume não fala, salvo
engano, em intelecto (no índex da EHU e THN não se encontra), e fale em
faculdades intelectuais [intellectual faculties] da mente, incluindo aí a memória, a imaginação, a razão,
o entendimento e, num certo sentido, também a vontade. No final do parágrafo 7
Hume fala “da única forma pela qual uma ideia pode ter acesso à mente, a saber,
por um efetivo sentimento ou sensação” (IEH 2 #7), não obstante apresente, em
seguida, um fenômeno contraditório, bastante singular, cito Hume, “que quase não vale a
pena examiná-lo, e tampouco merece que, apenas por sua causa, venhamos a
alterar nossa tese geral” (IEH 2 #8).
A alternativa (E) “as ideias têm como fonte específica o
sentimento cujos dados são colhidos na empiria” também poderia ser considerada
correta, ainda que pareça não levar em conta as ideias complexas (sem mencionar a discussão que pode ser levantada em torno da origem da ideia de conexão necessária). Esta alternativa parece limitar a questão às ideias simples, que são cópias de
impressões originais. De qualquer modo, a fonte primordial, quer dizer, a
primeira fonte de uma ideia sempre será uma impressão original, um dado
sensível. Hume diz: "quando
analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais complexos e grandiosos que
sejam, sempre verificamos que eles se decompõem em ideias simples copiadas de
alguma sensação ou sentimento precedente” (IEH 2 #6). Isso significa que o
termo “específico” não elimina propriamente a alternativa, pois, ao fim e ao
cabo, a primeira impressão é a fonte original de uma ideia, ainda que algumas
ideias possam ser derivadas das relações que estabelecemos entre elas.
Há também a polêmica acerca
da alternativa usar, além do termo “específico”, também o termo “sentimento.” Acontece
que Hume emprega sim o termo sentimento: "all the materials of Thinking are derived either
from our outward or inward sentiment" (EHU 2 #5).
Alguém poderia argumentar que se é "sensação ou sentimento precedente" (na tradução do José
Oscar de A. Marques; estou sem a do Aiex aqui) não é especificamente sentimento.
Mas, pergunto, qual a diferença entre sensação e sentimento? Se há diferença, ela é
extremamente sutil. Hume diz:
“when we analyze our thoughts or ideas, however compounded or sublime, we
always find, that they resolve themselves into such simple ideas as were copied
from a precedent feeling or sentiment”
(EHU 2 #6).
Não fica claro se
ele está tomando os termos como sinônimos ou se seria um ou outro (no caso de
não tomar como sinônimos). Aparentemente ele está concebendo os termos como
sinônimos. Feeling pode ser
traduzido tanto por sensação quanto por sentimento. Débora Danowski, ao traduzir o Tratado da Natureza Humana, assinala a dificuldade de traduzir Feeling (“a mais problemática”), no uso
que Hume faz desse termo (p.9).
A alternativa (B) “o espírito é capaz de classificar os dados da percepção sensível” também
não poderia ser facilmente descartada. O termo “classificar” poderia ser considerado
adequado sim, na medida em que dizer que a mente (mind, traduzida aqui, a meu ver, inadequadamente,
por espírito) é capaz de classificar os dados da percepção sensível ─ isso está
correto. Pois o que significa classificar? No caso, aqui, basicamente dividir,
misturar e compor: a ideia de sereia é composta da divisão ou decomposição da
ideia de uma mulher e da ideia de um peixe. Somando-se duas das partes divididas
dá-se origem à ideia de um outro objeto, quer dizer, de dois objetos primeiramente
divididos e, depois, compostos ou misturados, forma-se a ideia de um terceiro
objeto “sereia” , sendo cada qual classificado por um termo específico: temos
então as classes do objeto “mulher”, do objeto “peixe” e do objeto “sereia”. Ou
seja, a alternativa também poderia ser considerada correta se afrouxarmos o rigor
do uso preciso dos termos que Hume emprega e das opções de tradução que os termos
nos oferecem.
Então, se alguém me
perguntasse qual seria a alternativa correta, eu diria que a questão deve ser
anulada, pois está mal formulada, dando ensejo a dúvidas e a mais de uma
alternativa razoavelmente consistente. Faltou, creio eu, um elemento indispensável na
formulação da questão: o rigor filosófico no uso dos termos.
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