Para não dizerem que eu só falo de amor (rsr), ao mexer hoje em meus arquivos, encontrei a seguinte crítica de La Bruyère [1645-1696] ao estoicismo. Diz ele:
"O estoicismo é um divertimento do espírito e uma ideia semelhante à da República de Platão. Os estoicos inventaram que se podia rir na pobreza; que se podia ser insensível às injúrias, à ingratidão, à perda dos bens como à dos amigos e parentes; que a morte devia ser olhada friamente, como coisa que não deve alegrar nem entristecer; que o prazer e a dor não nos venceriam; sentir o ferro e o fogo dilacerando ou queimando o corpo, sem exalar um suspiro, nem verter lágrimas; a esse fantasma de virtude e de constância assim imaginado, aprouve-lhes dar o nome de sábio. Deixaram aos homens todos os defeitos que nele encontraram e quase não modificaram nenhuma de suas fraquezas. Em vez de fazer dos vícios pinturas horríveis ou ridículas que lhe servissem para corrigi-lo, mostraram-lhe o perfil de uma perfeição e de um heroísmo de que ele é incapaz e exortaram-no assim a realizar o impossível. Desse modo o sábio, que não o é, ou que é somente imaginário, julga-se naturalmente superior a todos os acontecimentos e a todos os males; nem a gota mais dolorosa nem a cólica mais aguda poderiam lhe arrancar uma queixa; o céu e a terra podem desabar sem que consigam arrastá-lo em sua queda e ele haveria de permanecer firme sobre as ruínas do universo, enquanto o homem que perdeu realmente seu sentido exaspera, grita, se desespera, escancara os olhos e perde a respiração só por um cão perdido ou por uma porcelana feita em pedaços" (La Bruyère, Jean de. Caracteres ou costumes deste século. Do homem, §3. p.177-178).
Anotei essa passagem porque quando a li me lembrei de algumas críticas de Hume que vêm ao encontro das de La Bruyère, embora não se possa dizer que Hume não seria simpático a, ao menos, algumas teses estoicas, o que aqui não vem ao caso.
No contexto da problemática relação entre a divindade e a existência do mal no mundo, Hume [1711-1776], na Investigação sobre o entendimento humano, ao tratar do tema da liberdade e necessidade, antecipa algumas objeções que podem ser levantadas contra a teoria que acabara de apresentar. Uma delas, de caráter religioso, emerge da conclusão inevitável que se segue a essa teoria, qual seja, a de que ou as ações humanas não são criminosas, ou, se forem, é a divindade, e não o homem, responsável por elas - o que comprometeria, no mínimo, os atributos da perfeição e suprema benevolência divinas. Uma dessas objeções, eu dizia, defende que “após um rigoroso exame de todos os fenômenos da natureza, pode-se concluir que o todo, considerado como um sistema único, está em cada período de sua existência, ordenado com perfeita benevolência, e que a máxima felicidade possível resultará, ao final, para todas as criaturas, sem a menor mistura de mal ou miséria no sentido positivo ou absoluto” (IEH 8.2.§34).
No entanto, Hume observa que, dessa ampla perspectiva, filósofos, entre os quais os estoicos, extraíram, em meio a todas as aflições, tópicos consolatórios que se revelaram completamente ineficientes. Eles tentavam mostrar a seus discípulos que os seus sofrimentos eram, ao fim e ao cabo, bens para o universo. Porém, Hume adverte-nos de que "embora essas considerações sejam agradáveis e sublimes, logo se revelam fracas e ineficazes na prática. Certamente iríamos antes irritar que apaziguar um homem que sofre as dores torturantes da gota ao louvarmos a retidão das leis gerais que produziram os humores malignos em seu corpo e os conduziram, através de canais apropriados, aos tendões e nervos onde agora provocam aqueles agudos tormentos" (IEH 8.2.§34).
É provável, segundo Hume, que a adoção de um tal panorama possa, por um momento, aprazer a imaginação de uma mente especulativa que não se encontre em situação de desconforto e insegurança, mas não pode habitar constantemente a índole de um homem, mesmo que este não esteja perturbado por dores ou sofrimentos. E, evidentemente, será ainda menos constante a adoção de tais amplas e remotas perspectivas quando o homem estiver acometido por intensas dores e infortúnios (cf. IEH 8.2.§34).
Eis aí, pois, o ponto no qual "o filósofo se encontra perdido no homem" (cf. Essays. O Cético, nota ao § 51).
Um comentário:
Caro oráculo,
Esta me parece a investigação correta acerca de um repetitivo conflito que a todos surpreende. O motivo, a plausibilidade possível para um comportamento insurrecto diante de um infortúnio pessoal, ocorrido a quem se nos pareça deter a serenidade da sabedoria - que deveria logicamente indicar uma capacidade soberba de superar aquele infortúnio, ou, talvez, até, sublimar definitivamente a causalidade da desgraça até que se modele como reação descontrolada.
O homem pode ser sábio. Um homem de fato e empenho pode ser sábio. Mas os fatos se sucedem sem uniformidade em suas naturezas. E fatos podem - e de fato ocorrem - por naturezas distintas, ásperas, grotescas, imprevisíveis, indesejáveis. Desarranjam a organização límpida e viçosa da sabedoria, levando invariavelmente o homem - sábio - aos estertores do controle - e sua superioridade em saber, em auto-controlar-se, se transforma. Ele, então, parecerá igualar-se, no eclodir da ira, àqueles que o admiravam e se sentiam inferiores a ele. Ou, também, demonstrar, para infelicidade própria e dos admiradores, não deter - e nunca talvez ter detido - as habilidades da sublimação.
Nossa presença neste mundo é uma relação desigual. Somos entidades que se relacionam com uma entidade em particular, grande, experiente, que, aliás, reúne, em si, toda as outras milhões de entidades similares a nós - mulheres e homens. Essa entidade com que convivemos e tentamos nos relacionar é o mundo.
Somos infantis e imprecisos, e ainda permanecemos, quando já experientes e mesmo que já nos julgando sábios, porque diante de uma entidade maior e muito mais vivida e estruturada.
Essa entidade sobrevive à nossa passagem, resiste à nossa interferência, e quase ignora a nossa existência. O mundo caçoa de nosso infortúnio, ri de nossa história, e se esquece de nossa memória! Mas, enquanto o adoramos pela beleza de uma paisagem, pelos momentos de amor correspondido, pela fortuna transitória de alguma sorte ou esperteza nossa, pela saúde que vigente jamais observamos com gratidão, ele gesta em silêncio um novo e aterrorizante teste.
Quando frente a essa provação, mesmo se fortes ou estruturados, astutos ou sábios, quedamos à condição reles da insurreição, e perdemos o controle dos bem-sucedidos.
É um evento deveras conhecido por nós todos, mas sempre um desafio para nossa constituição de sabedoria. Mas, sempre repito: um homem não pode jamais ser julgado, sem que lhe seja concedido o desagravo pela dimensão exacerbada de seu prejuízo. Ótimo, o homem, não. Mas e a sabedoria? Qual deveria ser nosso recondicionamento do conceito de sabedoria, quando frente a esse desafio - quando concedemos o benefício da compaixão?
Não existe sabedoria sem homem. É da mulher e do homem ser sábio. O indulgido fetiche do saber... E, se ao homem é dado o desconto desse perdão, também não o deveríamos conceder à sabedoria?
Eu, particularmente, te absolvo, Sabedoria, porque preciso de ti para o momento seguinte da baixeza, quando tua grandeza, por meu perdão incontinente, intransigente, estiver devolvida ao altar da glória, que eu jamais desejo abdicar!
Sidney Giovenazzi
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