sábado, fevereiro 13, 2016

That's the point

Eis aí algo em que eu acredito.
Quem é do métier sabe...


Trabalho e tédio. ─ Buscar trabalho pelo salário ─ nisso quase todos os homens dos países civilizados são iguais; para eles o trabalho é um meio, não um fim em si; e por isso são pouco refinados na escolha do trabalho, desde que proporcione uma boa renda. Mas existem seres raros, que preferem morrer a trabalhar sem ter prazer no trabalho: são aqueles seletivos, difíceis de satisfazer, aos quais não serve uma boa renda, se o trabalho mesmo não for a maior de todas as rendas. A esta rara espécie de homens pertencem os artistas e contemplativos de todo gênero, mas também os ociosos que passam a vida a caçar, em viagens, em atividades amorosas e aventuras. Todos esses querem o trabalho e a necessidade, enquanto estejam associados ao prazer, e até o mais duro e difícil trabalho, se tiver de ser. De outro modo são de uma resoluta indolência, ainda que ela traga miséria, desonra, perigo para a saúde e a vida. Não é o tédio que eles tanto receiam, mas o trabalho sem prazer; necessitam mesmo de muito tédio, para serem bem-sucedidos no seu trabalho. Para o pensador e para todos os espíritos inventivos, o tédio é aquela desagradável “calmaria” da alma, que precede a viagem venturosa e os ventos joviais; ele tem de suportá-la, tem de aguardar em si o seu efeito: ─ é justamente isso o que as naturezas menores não conseguem obter de si! Afastar o tédio a todo custo é vulgar: assim como é vulgar trabalhar sem prazer [...].


[Nietzsche. A Gaia Ciência. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2001, Livro I, Aforismo 42, p. 85].

quinta-feira, fevereiro 11, 2016

A voz da divina Loucura


Com a palavra, a Loucura:


"Sou difamada diariamente pelos homens, estes seres que estão acostumados a ferir minha reputação e conheço muito bem quanto soa mal o meu nome aos ouvidos dos mais tolos, mas me orgulho em vos dizer que esta Loucura que estais assistindo é a única que pode alegrar a vida dos deuses e dos mortais. A comprovação disso está na incontrolável alegria que brilhou nos olhos de todos quando eu surgi sublime, diante deste abundante palco" (p.17).



Pow! Acho essa abertura do Elogio da Loucura, de Erasmo de Rotterdam, um desbunde. O livro é bem louco rsr, interessante e polêmico. Nele, é a Loucura quem vos fala. Ela está ali, personificada na voz de uma deusa que, como ela mesma diz, basta a sua "nobre presença para conseguir aquilo que vigorosos oradores jamais alcançariam com um fastidioso e meditado discurso para expulsar de vossa alma... o tédio" (p.18). 

Extremamente irônica, a obra é uma sátira à sociedade dos séculos XV e XVI - um discurso pilhérico proferido pela própria Moria (e, note-se, esse detalhe é importante, a Loucura é feminina - é mulher). Esta, por usa vez, ridiculariza a sabedoria, os sistemas, os costumes, as crenças e os homens, incluído-se, aí, os acadêmicos, soberanos e papas. Ela deseja mostrar que tudo que diz é a cristalina verdade. Não há, na Loucura, nenhuma falsa modéstia. Ao contrário, numa roupagem excêntrica, trata-se de um auto-elogio, de uma auto-celebração, afinal, como ela mesma diz: "quem poderá fazer a minha pintura com mais veracidade do que eu mesma" (p.19)? Ela diz tudo que lhe vem à boca, sem papas na língua. E se regozija tremendamente com isso (p.20). 

"Adeus, pois, ilustres e caros amigos! Aplaudi, vivei, bebei, ó muito nobres iniciados nos segredos da Loucura" (p.191). 


Foi mesmo um prazer insano.

The grand finale
William Henry Barribal


(Rotterdam, Erasmo. Elogio da Loucura. Tradução de Ana Paula Pessoa. São Paulo: Sapienza, 2005).

terça-feira, fevereiro 09, 2016

Silêncio eloquente

VI

Por mais que se fale ou pense ou
escreva, eis o veredicto:
sobre o que não há de ser dito
deve-se guardar silêncio.
Ser, não-ser, devir, dasein,
ser-pra-morte, ser-no-mundo:
Valei-me, são Wittgenstein,
neste brejo escuro e fundo
sede minha ponte pênsil,
escutai o meu não-grito:
pois quando não há o que ser dito
deve-se guardar silêncio.

[Paulo Henriques Britto | Sete peças acadêmicas | Tarde | 2007]


 kasimira miller by maggie west

quarta-feira, fevereiro 03, 2016

O último suspiro

Lembrei-me que uma vez li, ouvi ou vi num filme (de fato não sei onde nem exatamente quando) um epitáfio escrito assim: 

Excuse my dust! 

Achei engraçado. Fiquei com aquela frase na cabeça, curiosa, imaginando quem a teria escrito. Não tinha a menor ideia de quem era. Achei que a tinha visto num filme do Woody Allen (mas não tinha certeza). Ao menos é bem a cara dele: esse estilo de tirar sarro das próprias desgraças e também das alheias. Ele é mesmo um mestre do bom humor  do humor sarcástico, intelectualizado, corrosivo, meio nefasto and... Enfim, eu gosto desse estilo. 

Pois bem, fustigada pela curiosidade, resolvi jogar a frase no Google (ai, como é fácil hoje em dia querer saber alguma coisa). Coloquei lá: Excuse my dust! E descobri que a frase é de ninguém mais ninguém menos que a espirituosa e extravagante Dorothy Parker. Na época, eu ainda não a conhecia (excuse my ignorance, please). 



Li algumas coisas bem interessantes sobre ela e segui um link que me levou a um Ensaio intitulado O que eles disseram antes do último suspiro. Um texto divertido, de puro entretenimento mesmo, gentilmente cedido pelo autor para o site Digestivo Cultural, mas que foi originalmente publicado no "Caderno2", de O Estado de São Paulo, em 15 de junho de 1996 (ou seja, long time ago). (e eu já escrevi esse post há uns três anos. Sim sim, ele estava engavetado).

Ali, o autor Sérgio Augusto apresenta o que algumas eminentes personalidades disseram antes do último suspiro. Ele conta, por exemplo, que o poeta inglês John Keats, embora tenha sucumbido à tuberculose na presença de uma testemunha (o pintor Joseph Severn) disse: "'Vou morrer naturalmente. Não se assuste. Graças a Deus chegou a minha hora’, tendo ao fundo uma sonata de Brahms". Segundo Augusto, "John Keats será sempre lembrado pela inscrição que sugeriu para a sua tumba: 'Sinto as flores crescendo em cima de mim'" (achei belo, meio engraçado e nefasto ao mesmo tempo). 

Já George Bernard Shaw, "ranzinza como ele só, irritou-se com a enfermeira que se esfalfava para mantê-lo vivo: ‘Irmã, você está tentando me manter vivo como uma peça de antiguidade, mas eu já acabei, cheguei ao fim, estou morrendo.’ E morreu mesmo. Com uma antiga idade, 94 anos.”

Por sua vez, “o teatrólogo e grande frasista da Broadway Wilson Mizner [nunca tinha ouvido falar, excuse my ignorance again], ao sair do coma, ainda teve cabeça para dar um fora no padre que tentava convencê-lo dos benefícios da confissão: ‘Por que me abrir com você se já falei com o seu patrão?’”

Há, no Ensaio, alusões aos últimos suspiros de Oscar Wilde, Goethe, Rousseau, Hegel, Stanislau Ponte Preta, Assis Chateaubriand, Voltaire, Diderot, Graciliano Ramos, Machado de Assis, Tolstoi, Platão, Sócrates e outros mais.

Mas estava eu lá lendo e me divertindo quando, no meio do caminho, tropecei numa pedra. Augusto diz que Sócrates “revelou-se um moribundo tão pragmático quanto P.T. Barnum" (até então, mais um ilustre desconhecido para mim). Segundo o autor, Sócrates, "antes de baixar sepultura, pediu a Cristo que saldasse uma dívida para ele”. 

Ah? Helooooo!!! Será que li bem? Como assim? Sócrates pediu a Cristo? (mas como poderia se morreu em 399 antes de Cristo?). Não conheço as fontes de Augusto, mas conheço a frase de Sócrates. Ela está aqui ao meu lado, no Fédon de Platão. As últimas palavras de Sócrates foram: “Críton, devemos um galo a Asclépio; não te esqueças de pagar essa dívida” (p.132). Ops, quer dizer que Críton, de repente, tornou-se Cristo? Ora, certamente o autor não cometeria esse anacronismo tão crasso. Só pode ser um erro de digitação (perdoemo-lo, pois).

Well, o Ensaio termina ressuscitando “a mais divertida de todas as despedidas desta vida: Protagonista: o trêfego José do Patrocínio Filho, finado em 1929. Quando estava nas últimas, arruinado por drogas e biritas, sem apetite para nada, seu médico apelou para um alimento especial: leite humano. Ao ver a dificuldade com que a enfermeira tirava o leite dos belos e fartos seios de uma doadora profissional, para depositá-lo numa minúscula colher, Zequinha do Patrocínio arregalou os olhos e sugeriu: ‘Doutor, não é melhor eu mamar’? E em seguida foi mamar no além”... há há há.


Good bye...

segunda-feira, janeiro 25, 2016

Ossos do Ofício


[Man Ray. Anatomies, 1929]


                        O que se pensa não é o que se canta.
                        Difícil sustentar um raciocínio
                        com a rima atravessada na garganta.
                        
                        [...]


[Paulo Henrique Britto. Tarde. São Paulo: Companhia das Letras, 2007].

segunda-feira, janeiro 04, 2016

The bath


Há tempos guardei essa foto em meus arquivos. Volta e meia olhava pra ela e me perguntava: mas por quê? Por que guardei essa foto? Ora bolas, porque achei bonita. Não há nenhum mistério nisso. Nenhuma explicação profunda ou abstrusa, como dizem os filósofos. 

Agradam-me, simplesmente, a beleza e a circunspecção da moça. Sua pose, suas luvinhas pretas, suas pulseiras e seu cigarro na mão esquerda; a mão direita apoiada no queixo, uma certa aridez na paisagem desfocada ao fundo, silenciosa; os fartos cabelos loiros presos no coque, o discreto brinquinho na orelha direita, os braços fortes, a tatuagem, o olhar de soslaio, o fato de estar nua, de costas, a contemplar tal paisagem, talvez o horizonte perdido, o nada, ou mesmo a si mesma. Não se sabe. Não se sabe o que ela vê para além dos limites da foto em branco, preto, e seus diversos tons de cinza.

O título desta foto, de Alexander Malchev, é The Bath. Porém, por mais que eu tente, não consigo ver água nessa banheira. Se ela está a tomar um banho, deve ser, ou ao menos parece ser, um banho de espera: aliás, um belo banho de espera, diga-se de passagem. 

segunda-feira, dezembro 28, 2015

Sorry


Ela acorda cedo, desce a escada e avista uma aranha. Tira rapidinho o chinelo e... paaaaaá nela! Depois, com ar de mulher corajosa, conta pra filha: 
- Tive que matar uma aranha hoje... 
A filha olha os restos mortais da defunta e diz:
- Ahhh mãe... não era. Era um sirizinho preto. 
A mãe, surpresa, exclama: 
- Ai que dóooo! um filhotinho. Putz, tava sem óculos... 

sexta-feira, dezembro 25, 2015

Da inconstância de nossas ações


"Não somente o vento dos acidentes me agita de acordo com a sua inclinação, mas, além disso, eu me agito e perturbo a mim próprio pela instabilidade de minha postura; e quem quer que se observe atentamente, dificilmente se encontrará duas vezes no mesmo estado. Dou à minha alma ora uma face ora outra, segundo o lado para o qual me volto. Se falo de mim de diferentes maneiras é porque me vejo de diferentes maneiras. Toda as contradições, de um modo ou outro, encontram-se em mim. Envergonhado, insolente, casto, luxurioso, tagarela, taciturno, laborioso, delicado, engenhoso, atordoado, aflito, afável, mentiroso, veraz, sábio, ignorante, liberal, avaro e pródigo: tudo isso vejo em mim de algum modo, conforme o lado para o qual me viro. E quem quer que se estude muito atentamente encontrará em si, e até mesmo em seu próprio julgamento, esta volubilidade e discordância. Não há nada que eu possa dizer de mim mesmo de modo completo, simples e sólido, sem confusão ou mistura, tampouco em uma única palavra".

[Montaigne. Essais II. Chapter I, De l'inconstance de nos actions]


domingo, dezembro 20, 2015

O canto do desejo



Hora

Sinto que hoje novamente embarco
Para as grandes aventuras,
Passam no ar palavras obscuras
E o meu desejo canta — por isso marco
Nos meus sentidos a imagem desta hora.
Sonoro e profundo
Aquele mundo
Que eu sonhara e perdera
Espera
O peso dos meus gestos.

E dormem mil gestos nos meus dedos.

Desligadas dos círculos funestos
Das mentiras alheias,
Finalmente solitárias,
As minhas mãos estão cheias
De expectativa e de segredos
Como os negros arvoredos
Que baloiçam na noite murmurando.

Ao longe por mim oiço chamando
A voz das coisas que eu sei amar.

E de novo caminho para o mar.

[Sophia de Mello Breyner Andresen]


sábado, dezembro 12, 2015

Apenas o teu sonho

Nenhuma outra Viajará pela Sombra Comigo

Já és minha. Repousa com teu sono no meu sono.
Amor, dor, trabalhos, devem dormir agora.
Gira a noite em suas rodas invisíveis
e ao meu lado és pura como o âmbar adormecido.

Nenhuma outra, amor, dormirá com meus sonhos.
Irás, iremos juntos pelas águas do tempo.
Nenhuma outra viajará pela sombra comigo,
apenas tu, sempre-viva, sempre sol, sempre lua.

Já tuas mãos abriram os punhos delicados
e deixaram cair suaves signos sem rumo,
teus olhos fecharam-se como duas asas cinzentas,

enquanto eu sigo a água que levas e me leva:
a noite, o mundo, o vento fiam o seu destino,
e sem ti já não sou senão apenas o teu sonho.

[Pablo Neruda, in: Cem Sonetos de Amor]

(Alexander Pushkin at the Seashore, by Leonid O. Pasternak)


Pablo é 
e sempre será
Neruda
qualquer comparação
desnecessária
qualquer comentário
excessivo


terça-feira, dezembro 01, 2015

Intimidade


Acabo de ler um trabalho sobre Nietzsche, no qual o(a) aluno(a) chama este autor de Nit. De acordo com Nit... Nit afirma... Nit declara... Segundo Nit. Nit pra cá, Nit pra lá rsr. Pensei:  que maravilha! quanta intimidade! Achei um mimo... hehehe.

Acho que vou começar a chamar Hume de Davizinho, Kant de Emmanuelito, Descartes de René, Aristóteles de Arizinho, Wittgeinstein de Witt, Hobbes de Hobbinho, Schopenhauer de Schop... and so on...

sexta-feira, novembro 13, 2015

terça-feira, novembro 10, 2015

Sem depois


Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.

.....................................................................

Mia Couto: Poema: Sem depois. Idades Cidades Divindades: Lisboa: Caminho, 2007




quarta-feira, novembro 04, 2015

III Colóquio de Ética e Filosofia Política - UFFS




Programação dia 30.11.2015

Minicurso
Local: Auditório – Bloco B
14h00

Profa. Dra. Vanessa Fontana
A Ética na Fenomenologia de Husserl
Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste)

Conferência
Local: Auditório – Bloco B
19h30

Prof. Dr. Jaimir Comte
Anatomia Moral em Hume
Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)

Programação dia 01.12.2015

Mesa
Local: Auditório – Bloco B 
16h00-18h00

Prof. Dr. Gonzalo Montenegro
"Três versões da ética em Deleuze: acontecimento, encontro e etologia"
Universidade Federal de Integração Latino-Americana (UNILA)

Prof. Dr. Ricardo Niquetti
Ética em Deleuze
Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS)

Conferência
Local: Auditório – Bloco B
19h30

Prof. Dr. Evandro Leonardi
Republicanismo em Maquiavel
Instituto Federal do Paraná (IFPR)

Programação dia 02.12.2015

Comunicações
16-19h
Local: Salas [a definir]

Conferência
Local: Auditório – Bloco B 
19h30

Profa. Dra. Marília Côrtes de Ferraz
‘Sense and Sensibility’ em O Cético de Hume

segunda-feira, outubro 26, 2015

ENEM 2015: Hume


Naturalmente, algumas pessoas vieram ontem me perguntar o que achei da questão sobre Hume na prova do ENEM 2015. Eu já havia tomado conhecimento da polêmica desencadeada por ela, mas não havia me habilitado a discuti-la (por pura preguicite aguda de domingão chuvoso rs). Bom, não deu pra escapar. Eis, então, a minha opinião:

A meu ver, a questão está mal formulada. Do contrário, não teria gerado tanta polêmica. E ela está mal formulada, arrisco a dizer, porque a terminologia empregada, extremamente imprecisa, dá margens a dúvidas em relação às alternativas de respostas. Vejam só... (prova retirada da internet):



Bom, as alternativas (C)(D) penso que estão fora de cogitação. Abstenho-me, por enquanto, de comentá-las. Só farei isso se alguém vier a defender que alguma delas possa ser considerada correta. A polêmica, pelo que vi no facebook, gira em torno das outras três, em virtude do emprego de alguns termos e expressões discutíveis.

A alternativa (A) “os conteúdos das ideias no intelecto têm origem na sensação” poderia ser considerada correta, embora o uso do termo intelecto não seja apropriado, uma vez que Hume não fala, salvo engano, em intelecto (no índex da EHU e THN não se encontra), e fale em faculdades intelectuais [intellectual faculties] da mente, incluindo aí a memória, a imaginação, a razão, o entendimento e, num certo sentido, também a vontade. No final do parágrafo 7 Hume fala “da única forma pela qual uma ideia pode ter acesso à mente, a saber, por um efetivo sentimento ou sensação” (IEH 2 #7), não obstante apresente, em seguida, um fenômeno contraditório, bastante singular, cito Hume, “que quase não vale a pena examiná-lo, e tampouco merece que, apenas por sua causa, venhamos a alterar nossa tese geral” (IEH 2 #8).

A alternativa (E) “as ideias têm como fonte específica o sentimento cujos dados são colhidos na empiria” também poderia ser considerada correta, ainda que pareça  não levar em conta as ideias complexas (sem mencionar a discussão que pode ser levantada em torno da origem da ideia de conexão necessária). Esta alternativa parece limitar a questão às ideias simples, que são cópias de impressões originais. De qualquer modo, a fonte primordial, quer dizer, a primeira fonte de uma ideia sempre será uma impressão original, um dado sensível. Hume diz: "quando analisamos nossos pensamentos ou ideias, por mais complexos e grandiosos que sejam, sempre verificamos que eles se decompõem em ideias simples copiadas de alguma sensação ou sentimento precedente” (IEH 2 #6). Isso significa que o termo “específico” não elimina propriamente a alternativa, pois, ao fim e ao cabo, a primeira impressão é a fonte original de uma ideia, ainda que algumas ideias possam ser derivadas das relações que estabelecemos entre elas.

Há também a polêmica acerca da alternativa usar, além do termo “específico”, também o termo “sentimento.” Acontece que Hume emprega sim o termo sentimento: "all the materials of Thinking are derived either from our outward or inward sentiment" (EHU 2 #5).

Alguém poderia argumentar que se é "sensação ou sentimento precedente" (na tradução do José Oscar de A. Marques; estou sem a do Aiex aqui) não é especificamente sentimento. Mas, pergunto, qual a diferença entre sensação e sentimento? Se há diferença, ela é extremamente sutil. Hume diz: “when we analyze our thoughts or ideas, however compounded or sublime, we always find, that they resolve themselves into such simple ideas as were copied from a precedent feeling or sentiment” (EHU 2 #6).

Não fica claro se ele está tomando os termos como sinônimos ou se seria um ou outro (no caso de não tomar como sinônimos). Aparentemente ele está concebendo os termos como sinônimos. Feeling pode ser traduzido tanto por sensação quanto por sentimento. Débora Danowski, ao traduzir o Tratado da Natureza Humana, assinala a dificuldade de traduzir Feeling (“a mais problemática”), no uso que Hume faz desse termo (p.9).

A alternativa (B) “o espírito é capaz de classificar os dados da percepção sensível” também não poderia ser facilmente descartada. O termo “classificar” poderia ser considerado adequado sim, na medida em que dizer que a mente (mind, traduzida aqui, a meu ver, inadequadamente, por espírito) é capaz de classificar os dados da percepção sensível ─ isso está correto. Pois o que significa classificar? No caso, aqui, basicamente dividir, misturar e compor: a ideia de sereia é composta da divisão ou decomposição da ideia de uma mulher e da ideia de um peixe. Somando-se duas das partes divididas dá-se origem à ideia de um outro objeto, quer dizer, de dois objetos primeiramente divididos e, depois, compostos ou misturados, forma-se a ideia de um terceiro objeto “sereia” , sendo cada qual classificado por um termo específico: temos então as classes do objeto “mulher”, do objeto “peixe” e do objeto “sereia”. Ou seja, a alternativa também poderia ser considerada correta se afrouxarmos o rigor do uso preciso dos termos que Hume emprega e das opções de tradução que os termos nos oferecem.




Então, se alguém me perguntasse qual seria a alternativa correta, eu diria que a questão deve ser anulada, pois está mal formulada, dando ensejo a dúvidas e a mais de uma alternativa razoavelmente consistente. Faltou, creio eu, um elemento indispensável na formulação da questão: o rigor filosófico no uso dos termos.

domingo, outubro 25, 2015

Leveza


Dia calmo
levemente chuvoso
levemente cinza
levemente melancólico
levemente silencioso
levemente leve
levemente nu

quarta-feira, outubro 21, 2015

Observações triviais II

Meus cantos, 
ângulos 
e cantinhos.
25 graus 
céu predominantemente nublado
cinza claro
calmo 
fresquinho 
gostosinho 
calminho 
beijinho.

segunda-feira, outubro 19, 2015

Free maço vermelho

Uma fumante sai às 21:15 hs para comprar cigarros, mesmo com a maior preguiça, não porque o dela acabou, mas porque ela sabe que vai ficar sem nenhum lá pelo meio da madrugada, quando estiver, como quase sempre, entre livros e leituras. Até aí tudo bem. O duro é que ela pediu dois maços de Free Vermelho (dois para garantir que não iria precisar se preocupar com isso nos próximos três dias), mas, ao chegar em casa (depois de subir quatro andares de escadas) e abrir a sacolinha que trazia também um guaraná, deu de cara com dois maços de Marlboro - aquele forte, de filtro amarelo, que lembra cowboy, e que ela detesta. Bufou, xingou, reconstruiu a cena, rangeu os dentes, planejou o futuro, respirou fundo. E  acendeu um free maço vermelho.

domingo, outubro 18, 2015

There is a solitude of space


There is a solitude of space 
A solitude of sea 
A solitude of death, but these 
Society shall be 
Compared with that profounder site 
That polar privacy 
A soul admitted to itself – 
Finite infinity. 

[Emily Dickhinson]


Há uma solidão do céu, 
uma solidão do mar 
e uma solidão da morte. 
Mas fazem todas companhia 
comparadas a este local profundo, 
esta polar intimidade, 
uma Alma que reconhece a Si mesma: 
finita infinidade. 

CAMPOS, Paulo. Mendes. de. Oito Poemas/Emily Dickinson (1969), Trinca de Copas. Rio de
Janeiro: Achiamé, 1984, p. 49

Painting: "The Yellow Sands"
John Reinhard Weguelin (1849-1927)



sábado, outubro 03, 2015

O nada



Transcrevo abaixo um pequeno trecho de "Xadrez", conto de Stefen Zweig escrito em 1941. O conto narra a história de um campeão mundial de xadrez (Mirko Czentovic) que, numa viagem de navio para Buenos Aires, enfrenta Dr. B., austríaco em fuga do regime nazista. 

A história se desenrola de modo simplesmente genial. Bom, mas é claro que não basta ser um excelente jogador de xadrez para saber apreciar a beleza, profundidade, maestria, sofisticação e densidade de Zweig ao narrar, descrever e articular seus temas, ambientes, conflitos e personagens. 

Adianto que os outros dois contos contidos no livro (Medo e Amok) também são de tirar o fôlego, aliás, não li nada ainda de Zweig que não me tenha agarrado pelos cabelos. 

Well, o que a passagem abaixo tem a ver com o instigante embate enxadrístico que ocorre entre esses dois personagens vocês só poderão saber se estiverem dispostos a lê-lo. Garanto que não vão se arrepender. Take a look!  

“Um quarto próprio num hotel – isso não soa extremamente humano? Mas o senhor pode acreditar que não nos reservaram de modo algum um tratamento humano, e sim um método mais refinado... Pois a pressão com a qual pretendiam extrair de nós o ‘material’ necessário deveria funcionar de modo mais sutil do que por meio de surras brutais ou torturas físicas: por meio do isolamento mais requintado que se pode imaginar. Não nos fizeram nada – simplesmente nos puseram no completo nada, pois é sabido que não há coisa alguma sobre a Terra que exerça maior pressão sobre a alma humana do que o nada. À medida que cada um de nós era trancado num vácuo absoluto, num quarto hermeticamente isolado do mundo exterior, deveria ser criada a partir de dentro, e não a partir de fora ─ por meio de pancadas e do frio ─, aquela pressão que acabaria por abrir nossas bocas.

À primeira vista, o quarto que me fora reservado não parecia de modo algum desconfortável. Ele tinha uma porta, uma cama, uma poltrona, uma bacia e uma janela com grades. Contudo, a porta permanecia fechada dia e noite, sobre a mesa não havia nenhum livro, jornal, folha de papel ou lápis, e a janela dava para um muro; em torno de mim e mesmo em meu próprio corpo foi construído o nada absoluto. Haviam tirado de mim todos os objetos, o relógio, para que eu não soubesse que horas eram, o lápis, de modo que eu não pudesse escrever, a faca, a fim de que eu não pudesse cortar os pulsos; até mesmo a mais leve distração de um cigarro me foi proibida. ... eu nunca via um rosto humano, nunca ouvia uma voz humana; ... todos os sentidos ficavam de manhã até a noite sem receber o mínimo alimento, a pessoa permanecia irremediavelmente sozinha consigo mesma, com seu corpo e os quatro ou cinco objetos silenciosos, a mesa, a cama, a janela, a bacia.

Vivia-se como um escafandrista submerso no oceano escuro desse silêncio, e mesmo como um mergulhador já consciente de que o cabo de ligação com o mundo exterior está rompido e ele nunca mais será puxado para fora das profundezas. Não havia nada para fazer, nada para ouvir, nada para ver, por toda parte e incessantemente se encontrava em torno do nada, o vazio mais completo, sem tempo nem espaço. Eu andava para lá e para cá. E comigo passeavam os pensamentos, para lá e para cá, para lá e para cá, repetidamente. Mas mesmo pensamentos, por mais imateriais que pareçam, precisam de um ponto de apoio, senão eles começam a rodar no vazio, a girar sem sentido em torno de si mesmos; eles também não suportam o nada. Esperava-se por alguma coisa, da manhã até a noite, e nada acontecia. Esperava-se sempre, sempre. E nada acontecia. Eu esperava, esperava, esperava, pensava, pensava, pensava, até a cabeça doer. Nada acontecia. Eu continuava sozinho. Sozinho. Sozinho".

(ZWEIG, S. Xadrez. In: Medo & outras histórias. Tradução de Lya Luft e Pedro Süssekind. Porto Alegre. RS: L&PM, 2007, pp181-182).

quinta-feira, outubro 01, 2015

Besta-quadrada

Ontem à noite, ao voltar da UFFS, um táxi tentou me ultrapassar pela direita. Mas deu com os burros n'água (ao dar de cara com uma baita cratera e desnível no asfalto) e teve que dar uma freada daquelas: quase bateu na minha traseira direita. E eu, como faço do trânsito um lugar para, em casos como esse, esbravejar sem que ninguém me ouça, imediatamente disse: 

VAI! SUA BESTA-QUADRADA. VAI..!

Pronto: minha mente inquisitiva pariu uma pergunta que eu já havia me feito outras vezes, mas nunca havia parado para levá-la a sério. Eis a pergunta: por que a besta é quadrada e não redonda? (E olha que nem me perguntei por que ela não é triangular, retangular, oval ou coisa que o valha). Limitei-me a perguntar por que a besta é quadrada e não redonda.



Lembrei-me da propaganda da SKOL que diz que essa cerveja “desce redondo”. A ideia é boa. Sugere que ela desce macia, lisa, como uma bola que rola sem obstáculos e percalços. Bom, e se descesse “quadrada”? Sugeriria que desce com dificuldade, machucando, com as pontas dos ângulos do quadrado, a laringe, a faringe, o esôfago and so on...? 

Oh... inquietantes questões! 

Será que se a besta fosse redonda seria menos besta? Well, besta é besta em qualquer figura ou situação, mas quero saber por que nos referimos a uma pessoa muito besta como quadrada e não numa outra figura geométrica qualquer.

Lá vou eu consultar o oráculo do século. E eis a resposta: a besta-quadrada não tem propriamente nada a ver com a figura geométrica. Na verdade, a expressão foi, digamos assim, “encolhida”. A versão original é "Besta elevada ao quadrado", o que significa que ela poderia ser besta-cubo (elevada ao cubo), mas também à quinta, décima e/ou enésima potência.

Bah! Quanta besteira rs!

segunda-feira, setembro 28, 2015

Ausência


Ainda mal te deixei,
e vais comigo, cristalina
ou trémula,
ou inquieta, ferida por mim mesmo
ou cheia de amor, como quando os teus olhos
se fecham sobre o dom da vida
que sem descanso te entrego.
Meu amor,
encontrámo-nos
sedentos e bebemos
toda a água e sangue,
encontrámo-nos
com fome
e mordemo-nos
como morde o fogo,
deixando-nos feridos.
Mas espera por mim,
guarda-me a tua doçura.
Dar-te-ei também
uma rosa.

[Pablo Neruda, Ausência, in Poemas de Amor, tradução de Nuno Júdice, Dom Quixote]

domingo, setembro 27, 2015

That all



dia chuvoso
tempo frio
céu nublado
coração choroso
tudo chove
inclusive eu
inclusive tu

domingo, setembro 20, 2015

Tácita aliança


Ele é o chefe. A divisão está lotada. Fila em todos os setores. Ella passa. O chefe? Arregala os olhos. Se atrapalha na entrevista sobre a greve. Ella percebe o impacto que sua passagem causa nele. E resolve se servir disso. Tudo é urgente. A burocracia é de ranger os dentes. E as soluções? Todas morosas. A divisão trabalha com poucos funcionários. Ella tem pressa.  Respira fundo, cresce o corpo, engrandece o espírito, e se exibe um pouco passando pra cá e pra lá como quem procura a pessoa certa para resolver seu problema. Ele, perturbado, dá a maior bandeira. Não consegue tirar os olhos dela. Ella passa, então, para o outro lado. Exibe-se um pouco mais. O chefe, todo atordoado, termina a entrevista, entra em sua sala, e manda um funcionário chamá-la. Tudo está implícito. Ambos sabem que não vai rolar nada. É suficiente que ele a olhe e que ela entenda o olhar dele. E, para ele, é suficiente que ela permita ser olhada com aquele olhar de quem diz que a quer, ainda que saiba que nunca vai tê-la. Ella é educada. Ele? Prestativo. Acompanha-a por todos os setores necessários, facilitando as coisas. Tudo se resolve rapidamente com a maior discrição e boa vontade. Ella estende a mão, agradece-o de modo cortês e, com um reservado sorrisinho no rosto, sai toda satisfeita e desenvolta. C'est tout.

quinta-feira, setembro 17, 2015

Uma Voz na Pedra


Não sei se respondo ou se pergunto.
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio.
Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra.
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho.
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante.
A minha tristeza é a da sede e a da chama.
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio.
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono.
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente.
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim.
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido.
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença.
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível.
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra.

[António Ramos Rosa]





domingo, setembro 13, 2015

Hurt




"o amor aperta meu pescoço, 
assim como uma mancha de sangue que se espalha 
mostra quando se está ferido..."


[Ludovico Vicedomini (Harvey Keitel) a Leda (Jane March), in: O Mercador de Pedras, 2006, Renzo Martinelli]