" ─ Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho, podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos ─ e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido só um destino. Mas então a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo ─ ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos ─ elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. ─ E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra."
(Nietzsche. A Gaia Ciência IV §279, p.189-190)
Não me lembro quando li pela primeira vez esse aforismo de A Gaia Ciência. Provavelmente foi quando comecei a estudar Nietzsche, a fim de desenvolver um projeto de iniciação científica (CNPq), na época de minha graduação (idos de 2000-2002). Há algum tempo, ao retomar minhas leituras de partes da obra deste autor perturbador, tropecei várias vezes neste belo e trágico aforismo, já tão lido, relido, trelido, pensado, sentido, interrogado e grifado. Pensei: por que ele me chama tanto a atenção? Por que ele me afeta tanto? Por que meu coração se ressente ao lê-lo? Well, não estabeleci nenhuma relação do que Nietzsche afirma nele com a pessoa para a qual ele destina este aforismo. Pois tal aforismo nunca fez propriamente parte dos temas que me propus a estudar. Minha interpretação sempre foi, num certo sentido, totalmente parcial e descontextualizada do restante de sua obra (se é que me permitem...). Sempre admirei o teor poético, imagético e passional (bem ao estilo amor-fati) do que Nietzsche escreve. Ao lê-lo, sentia em meu coração (e sinto sempre que o leio) uma dorzinha aguda e gelada. Pensava no valor da amizade e lembrava da minha amizade mais cara. Perguntava-me: será que será assim? E repetia a mim mesma, como quem torce fazendo figa: tomara que não, tomara que não! Quero continuar a crer em nossa amizade terrena, ainda que ela possa ser também estelar e celestial.
[Há uma ano e meio li a biografia de Lou Salomé e pensei se Nietzsche teria escrito esse aforismo pensando nela. Eu não havia feito ainda nenhuma pesquisa a respeito. Na época, não fui adiante com minha dúvida. Mas, lendo-o novamente esses dias, fiquei curiosa. E fui conferir. Descobri que Nietzsche escreveu-o de modo a deixar "claro que não poderia atender ao apelo" do grande compositor Richard Wagner "para resgatar uma amizade perdida." Ao menos é o que está dito na sinopse do livro Amizade Estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, de Rosa Maria Dias, que, aliás, ainda não li. Quem sabe um dia. Até lá... (ou talvez para sempre) mantenho minha leitura parcial, ainda que agora eu saiba que a relação de amizade que serviu de mote a este aforismo é outra].