sexta-feira, fevereiro 13, 2015

Um pico certeiro na veia



Dalton Trevisan disse uma vez que "um bom conto é pico certeiro na veia". A meu ver, ao dizer isso, Trevisan já nos dá um pico na veia. No entanto, não estou aqui para falar de contos, mas sim de filosofia.

Mutadis mutandis, penso que existem mais coisas boas, além de um bom conto, que podem ser consideradas um "pico certeiro na veia": uma frase forte, densa, profunda, curta e precisa (tal como essa picada dada pelo próprio Trevisan); três, cinco, ou, talvez, sete linhas contidas numa ideia breve, mas brilhante, que nos atinja como um olhar dardejante, ou mesmo uma paulada na cabeça, um corte na jugular ou um tiro na fonte. Sim, um pico certeiro na veia, tal como uma facada no peito, pode nos levar desta para o nada absoluto (pois não creio que a gente vá desta para melhor). 

Além dos literatos, alguns filósofos são especialistas em picar nossas veias. Schopenhauer é um deles. Ao tratar do tema "felicidade", um tópico caro à filosofia, bem como a qualquer mortal comum, ele tem coisas interessantes a dizer, ainda que possa soar no mínimo curioso um filósofo pessimista (que concebe o sofrimento como a essência da vida e a felicidade como simples ausência de dor) ter algo interessante a dizer sobre a arte de ser feliz. Acerca desse tema já teci alguns comentários aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2009/02/felicidade-amor-pelo-estudo-e-ilusoes.html e aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2009/03/ilusao-crenca-esperanca-paixao-e-auto.html a partir de outros autores da filosofia.

Em A Arte de Ser Feliz (um pequeno tratado que contém anotações, máximas e regras de vida), Schopenhauer afirma, entre muitas outras coisas, que a principal verdade da arte de ser feliz é a de que tudo depende muito menos daquilo que se tem ou representa do que daquilo que se é... e que "a personalidade é a felicidade suprema" (p. 126). Quer dizer, o que se tem (bens e posses) ou representa (a reputação, a categoria, a fama) são bens necessários para a felicidade, mas o que se é (a personalidade), é, de longe, mais fundamental para atingir tal fim (p.123). “Aquilo que alguém tem para si mesmo, aquilo que o acompanha na solidão e que ninguém pode lhe dar ou tirar é muito mais essencial do que tudo o que possui ou do que ele representa aos olhos alheios” (p.126).

Convém notar que o termo personalidade é aqui concebido em sentido muito mais amplo, “compreendendo a saúde, a força, a beleza, o caráter moral, a inteligência e a educação da inteligência" (A Arte de Ser Feliz, p.123). De acordo com Schopenhauer, a maior parte desses bens  ─ que não só contribuem para a felicidade, mas também estabelecem “a diferença na sorte dos mortais” (p.123) ─ depende do quanto a natureza foi ou não generosa conosco - o que não significa, obviamente, que não podemos fazer nada com o que a natureza fez de nós. Como e qual é a (suposta) margem de manobra (ou liberdade) que temos para alterar as determinações que a mãe ou, dependendo do caso, a madrasta natureza fez de nós seria matéria para outro post (que não sei se um dia vou escrever).

Ele diz também (e aqui me aproximo de onde quero chegar) que "em todas as ocasiões possíveis usufrui-se na verdade apenas de si mesmo: se o próprio eu não vale muito, então, todos os prazeres são como vinhos excelentes em boca azeda com fel” (Máxima 44, p.108).

Ora, quando Schopenhauer faz menção ao "próprio eu" (esse é o ponto), ele está a se referir especificamente ao caráter moral do sujeito, ou seja, àquilo que ele é em sua essência. Vale dizer, em sua consciência moral.

Em Sobre o Fundamento da Moral, Schopenhauer se serve da máxima expressa pelos escolásticos  “Operari sequitur esse” segundo a qual as “ações se seguem do ser” ou “o fazer se segue do ser”, para enfatizar a dependência da ação de alguém em relação ao seu caráter. “Como alguém é, assim tem de agir” (SFM § 10: 96). Nesse sentido, as ações dos homens são signos de seu caráter. Então, se queres conhecer alguém, observes regularmente como ele age, como ele se comporta, que tipo de coisas ele é capaz ou não de fazer. A observação constante do temperamento, do comportamento e das ações de uma pessoa, sob determinadas circunstâncias, é fator indispensável para o conhecimento de seu caráter. Essa é uma regrinha básica de sabedoria de vida que poderia ser considerada um truísmo caso não fosse pronunciada pela boca de um filósofo da envergadura de Schopenhauer (e de outros tantos do mesmo calibre). Pois não se exige propriamente filosofia para o seu conhecimento ─ a experiência confirma a regra.

Mas voltemos à picada na veia (deixando de lado os problemas que emergem da distinção schopenhaueriana acerca do caráter inteligível, caráter empírico e caráter adquirido, bem como as consequências disso tudo para a teoria sobre a liberdade e responsabilidade moral). 

A sentença segundo a qual se o caráter do indivíduo "não vale muito... todos os prazeres são como vinhos excelentes em boca azeda com fel" é, a meu ver, um pico certeiro na veiaFeliz de quem sacar essa “sabedoria de vida” e souber usar a margem de manobra que se tem para conseguir corrigir, com a experiência e a instrução (a educação da inteligência) os péssimos traços ou desvios de caráter com os quais a madrasta natureza por ventura o dotou. Ser belo, saudável, inteligente, sedutor, abastado (e possuir muitos outros bens) contribui em muito para a felicidade, mas se o caráter não for bom, dificilmente tal indivíduo será feliz ─ o que significa que a qualidade do caráter de um indivíduo é o que mais importa para a sua felicidade. 

Quem não teve a sorte de ser agraciado por uma natureza-mãe em sua constituição natural (especialmente quanto ao caráter e temperamento), e não compreender os princípios básicos da arte de ser feliz, jamais poderá saborear os néctares dos deuses, ainda que eles desçam dos céus e lhe ofereçam diretamente em seus lindos lábios.

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