No ensaio O Epicurista ─ o primeiro dos quatro Ensaios considerados Sobre a Felicidade ─ Hume é admiravelmente poético, o que faz com que eu, por ora, não queira
promover uma discussão filosófica sobre a possibilidade de Hume ter cometido um equívoco ao interpretar a ética de Epicuro, “quase sempre confundida com
o gozo imoderado dos prazeres mundanos, como se não se distinguisse do
hedonismo puro e simples” (Epicuro. Carta
sobre a Felicidade (A Meneceu). Introd.
p.10). Nada disso!
No fundo, confesso que estou com a maior preguiça de discutir qualquer coisa, e também de explicar por
que Hume parece ter compreendido mal a doutrina epicurista, ainda que em sua
defesa se possa argumentar que, tal como podemos encontrar numa nota do próprio Hume a'O Epicurista, “a intenção deste e
dos três ensaios seguintes (O Estoico –
ou o homem de ação e virtude; O Platônico – ou o homem de contemplação e
devoção filosófica; e O Cético), não é tanto explicar acuradamente as
opiniões das antigas seitas (sects) filosóficas,
quanto interpretar as opiniões das seitas que se formam naturalmente no mundo, ensejando
diferentes ideias sobre a vida humana e a felicidade.”
Hume é claro em dizer
que deu “a cada uma delas o nome da seita filosófica com a qual elas apresentam
maior afinidade” (nota p.255). Creio que tal observação permite-nos
eximir Hume do compromisso filosófico de apresentar fielmente a doutrina de
Epicuro. E antes que eu comece a me alongar demais nesse assunto, quero deixar claro que meu
interesse, ao publicar esse pequeno excerto do ensaio, é o de apenas louvar
a beleza da passagem citada (que versa sobre a felicidade, o amor, o prazer, as
paixões, a fugacidade da vida e a inexorabilidade da morte), e o talento
literário de David Hume. Todo o ensaio é belíssimo, mas a passagem abaixo é uma
daquelas que enleva nossos corações e eleva-nos às alturas.
O
Epicurista
Ou
o homem da elegância e do prazer
“Ainda não avancei muito
por entre as sombras do espesso bosque, que espalham ao meu redor uma dupla
noite, quando, quase logo, creio avistar na penumbra a deslumbrante Célia, a
amada dos meus desejos (the mistress of
my wishes), que vagueia impaciente pelo bosque e, antecipando-se à hora
prevista, censura silenciosamente os meus passos tardios. Mas a alegria que ela
recebe de minha presença é minha melhor desculpa, e, dissipando qualquer
pensamento de ansiedade ou raiva, não deixa lugar para nada a não ser alegria e
arrebatamento mútuos. Com que palavras, minha bela, poderei exprimir minha
ternura ou descrever as emoções que agora aquecem o meu peito em chamas? As palavras
são fracas demais para descrever meu amor; e, se por desgraça, não sentires
dentro de ti a mesma chama, em vão me esforçarei para transmitir-te sua justa
concepção. Mas cada uma de tuas palavras, cada um de teus gestos é suficiente
para me tirar esta dúvida; e, ao mesmo tempo em que eles exprimem a tua paixão,
servem também para incendiar a minha. Como são adoráveis esta escuridão, este
silêncio, esta solidão! Nenhum objeto vem perturbar a alma arrebatada. O
pensamento, os sentidos, tudo está inteiramente repleto de nossa mútua
felicidade, que se apodera completamente do espírito e produz uma satisfação
que os iludidos mortais inutilmente procuram nos outros prazeres.”
“Mas por que o teu peito
estremece com esses suspiros, e por que tuas luminosas faces estão banhadas de
lágrimas? Por que distrair teu coração com uma ansiedade tão tola? Por que me
perguntas tantas vezes Quanto tempo vai
durar o meu amor? Ah, minha Célia, posso eu resolver esta questão? Sei eu quanto tempo minha vida vai durar?
Mas também isto perturba teu terno coração? Por acaso a imagem de nossa frágil
mortalidade está em ti constantemente presente, para desanimar-te nas horas
mais felizes e envenenar até mesmo aquelas alegrias inspiradas pelo amor? Considere
que, se a vida é frágil e a juventude é transitória, temos mais motivos ainda para desfrutar
bem do momento presente, sem nada perder de uma existência assim tão perecível.
Apenas mais um momento e ela não
existirá mais. Seremos como se jamais tivéssemos sido. Nenhuma recordação de
nós restará sobre a face da Terra, e nem as sombras fabulosas do além poderão
nos dar guarida. Nossa estéril ansiedade, nossos vãos projetos, nossas incertas
especulações, tudo será engolido e perdido. Nossas dúvidas atuais sobre a causa
original de todas as coisas, oh! jamais serão dissipadas. Podemos estar certos
apenas de uma única coisa ─ é que se existe um espírito supremo que preside
nossos destinos, deve lhe agradar ver-nos realizar a finalidade de nosso ser,
gozando aquele prazer para o qual fomos criados. Que esta reflexão dê repouso
para teus ansiosos pensamentos, mas sem tornar tuas alegrias demasiado sérias a
ponto de te fixares nelas para sempre. Basta ter conhecido uma vez esta
filosofia para dar livre curso ao amor e à alegria, e dissipar todos os
escrúpulos de uma superstição tola. Porém, minha bela, ao mesmo tempo em que a
juventude e a paixão satisfazem nossos ávidos desejos, é preciso encontrar
assuntos mais alegres para misturar às nossas amorosas carícias”
(Hume, David. Essays Moral, Political, and Literary. Liberty
Fund, 1987, p.144-145).
Imagens: William-Adolphe Bouguereau (1825-1905); Eleanor Fortescue-Brickdale (1872-1945)