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domingo, julho 15, 2018

Refrigescere


A Pantera
(No Jardin des Plantes, Paris)

De tanto olhar as grades seu olhar
esmoreceu e nada mais aferra.
Como se houvesse só grades na terra:
grades, apenas grades para olhar.

A onda andante e flexível do seu vulto
em círculos concêntricos decresce,
dança de força em torno a um ponto oculto
no qual um grande impulso se arrefece.

De vez em quando o fecho da pupila
se abre em silêncio. Uma imagem, então,
na tensa paz dos músculos se instila
para morrer no coração.



[ Rainer Maria Rilke | Novos poemas I | (1907) | In: CAMPOS, Augusto de (organização e tradução) | Coisas e anjos de Rilke | São Paulo | Perspectiva | 2013 | p. 120-121 ]




(não entendo nada de alemão, mas eis, abaixo, o poema na língua original)



Der Panther
(Im Jardin des Plantes, Paris)

Sein Blick ist vom Vorübergehn der Stäbe
so müd geworden,dass er nichts mehr hält.
Ihm ist, als ob es tausend Stäbe gäbe
und hinter tausend Stäben keine Welt.

Der weiche Gang geschmeidig starker Schritte,
der sich im allerkleinsten Kreise dreht,
ist wie ein Tanz von Kraft um eine Mitte,
in der betäubt ein grosser Wille steht.

Nur manchmal schiebt der Vorhang der Pupille
sich lautlos auf -. Dann geht ein Bild hinein,
geht durch der Glieder angespannte Stille –
und hört im Herzen auf zu sein.

[Rainer Maria Rilke | in “Neue gedichte – I” (1907)]



Rilke
by Helmuth Westhoff
 1902

terça-feira, junho 12, 2018

A morte feliz




"... Tudo se esquece, até mesmo os grandes amores. É o que há de triste e ao mesmo tempo de exaltante na vida. Há apenas uma certa maneira de ver as coisas, e ela surge de vez em quando. É por isso que, apesar de tudo, é bom ter tido um grande amor, uma paixão infeliz na vida. Isso constitui pelo menos um álibi para os desesperos sem razão que se apoderam de nós".

[Albert Camus | A Morte Feliz]


sábado, março 03, 2018

Notas sobre um acidente



Derrapou! E eis que salta a gigantesca abóbada do império. O automóvel toma vida própria, tal como se dissesse.

─ My lady, agora quem manda aqui sou eu. Adeus e passe bem, talvez mesmo desta para melhor. No freedom, no liberty, no power. Não há nada que possas fazer. Não há braço, cálculo, controle. Não há destreza, freio, câmbio, pneu ou direção. Testemos as engrenagens de tua vida. Vejamos se os gonzos estão bem ajustados. Testemos a tua sorte.

A estrada é perigosa. Não é à toa que a chamam de estrada da morte. Naquele minuto, a mente relê a história ─ a 120 quilômetros por hora. Dentro, tudo gira sobre si ao som de estilhaços. Fora, há o frio, a garoa, a neblina, a curva, o óleo na pista, o barranco, a vala, a lama.

Vê-se a viola em cacos. Os óculos, os sapatos, o notebook,  a tese. Livros, artigos, documentos, celulares ─ a vida  ─ tudo pelos ares.  Capotadas, piruetas, solavancos, hematomas e dores pelo corpo. But no cuts, no bloodno serious injuries, no broken bones. Lá se vai um brinco. Também um carro, um presente, um passado.


photo by © Tami Bone

segunda-feira, fevereiro 12, 2018

Everything bare




How heavy the days are.
There's not a fire that can warm me,
Not a sun to laugh with me,
Everything bare,
Everything cold and merciless,
And even the beloved, clear
Stars look desolately down,
Since I learned in my heart that
Love can die.

Hermann Hesse | Translated by James Wright

............................

Perambulando outro dia pela net, deparei-me com esse poema. Tentei encontrar a referência precisa (ao menos para me certificar de sua autoria e autenticidade), mas não consegui. Naveguei, naveguei e, digamos assim, morri na praia. Algumas dizem que Hesse o escreveu em 1911. Foi o máximo que consegui saber, afora o nome do tradutor. Não sei em que obra se encontra. Anyway, sendo ou não de Hesseo poema pesa, comprime o peito e exala beleza e tragicidade.


[photo by Cem Edisboylu]

quarta-feira, novembro 01, 2017

Nos Jardins de Epicuro


No ensaio O Epicurista  ─ o primeiro dos quatro Ensaios considerados Sobre a Felicidade ─ Hume é admiravelmente poético, o que faz com que eu, por ora, não queira promover uma discussão filosófica sobre a possibilidade de Hume  ter cometido um equívoco ao interpretar a ética de Epicuro, “quase sempre confundida com o gozo imoderado dos prazeres mundanos, como se não se distinguisse do hedonismo puro e simples” (Epicuro. Carta sobre a Felicidade (A Meneceu). Introd. p.10). Nada disso!

No fundo, confesso que estou com a maior preguiça de discutir qualquer coisa, e também de explicar por que Hume parece ter compreendido mal a doutrina epicurista, ainda que em sua defesa se possa argumentar que, tal como podemos encontrar numa nota do próprio Hume a'O Epicurista, “a intenção deste e dos três ensaios seguintes (O Estoico – ou o homem de ação e virtude; O Platônico – ou o homem de contemplação e devoção filosófica; e O Cético), não é tanto explicar acuradamente as opiniões das antigas seitas (sects) filosóficas, quanto interpretar as opiniões das seitas que se formam naturalmente no mundo, ensejando diferentes ideias sobre a vida humana e a felicidade.” 

Hume é claro em dizer que deu “a cada uma delas o nome da seita filosófica com a qual elas apresentam maior afinidade” (nota p.255). Creio que tal observação permite-nos eximir Hume do compromisso filosófico de apresentar fielmente a doutrina de Epicuro. E antes que eu comece a me alongar demais nesse assunto, quero deixar claro que meu interesse, ao publicar esse pequeno excerto do ensaio, é o de apenas louvar a beleza da passagem citada (que versa sobre a felicidade, o amor, o prazer, as paixões, a fugacidade da vida e a inexorabilidade da morte), e o talento literário de David Hume. Todo o ensaio é belíssimo, mas a passagem abaixo é uma daquelas que enleva nossos corações e eleva-nos às alturas.


O Epicurista
Ou o homem da elegância e do prazer

“Ainda não avancei muito por entre as sombras do espesso bosque, que espalham ao meu redor uma dupla noite, quando, quase logo, creio avistar na penumbra a deslumbrante Célia, a amada dos meus desejos (the mistress of my wishes), que vagueia impaciente pelo bosque e, antecipando-se à hora prevista, censura silenciosamente os meus passos tardios. Mas a alegria que ela recebe de minha presença é minha melhor desculpa, e, dissipando qualquer pensamento de ansiedade ou raiva, não deixa lugar para nada a não ser alegria e arrebatamento mútuos. Com que palavras, minha bela, poderei exprimir minha ternura ou descrever as emoções que agora aquecem o meu peito em chamas? As palavras são fracas demais para descrever meu amor; e, se por desgraça, não sentires dentro de ti a mesma chama, em vão me esforçarei para transmitir-te sua justa concepção. Mas cada uma de tuas palavras, cada um de teus gestos é suficiente para me tirar esta dúvida; e, ao mesmo tempo em que eles exprimem a tua paixão, servem também para incendiar a minha. Como são adoráveis esta escuridão, este silêncio, esta solidão! Nenhum objeto vem perturbar a alma arrebatada. O pensamento, os sentidos, tudo está inteiramente repleto de nossa mútua felicidade, que se apodera completamente do espírito e produz uma satisfação que os iludidos mortais inutilmente procuram nos outros prazeres.”

“Mas por que o teu peito estremece com esses suspiros, e por que tuas luminosas faces estão banhadas de lágrimas? Por que distrair teu coração com uma ansiedade tão tola? Por que me perguntas tantas vezes Quanto tempo vai durar o meu amor? Ah, minha Célia, posso eu resolver esta questão? Sei eu quanto tempo minha vida vai durar? Mas também isto perturba teu terno coração? Por acaso a imagem de nossa frágil mortalidade está em ti constantemente presente, para desanimar-te nas horas mais felizes e envenenar até mesmo aquelas alegrias inspiradas pelo amor? Considere que, se a vida é frágil e a juventude é transitória, temos mais motivos ainda para desfrutar bem do momento presente, sem nada perder de uma existência assim tão perecível. Apenas mais um momento e ela não existirá mais. Seremos como se jamais tivéssemos sido. Nenhuma recordação de nós restará sobre a face da Terra, e nem as sombras fabulosas do além poderão nos dar guarida. Nossa estéril ansiedade, nossos vãos projetos, nossas incertas especulações, tudo será engolido e perdido. Nossas dúvidas atuais sobre a causa original de todas as coisas, oh! jamais serão dissipadas. Podemos estar certos apenas de uma única coisa ─ é que se existe um espírito supremo que preside nossos destinos, deve lhe agradar ver-nos realizar a finalidade de nosso ser, gozando aquele prazer para o qual fomos criados. Que esta reflexão dê repouso para teus ansiosos pensamentos, mas sem tornar tuas alegrias demasiado sérias a ponto de te fixares nelas para sempre. Basta ter conhecido uma vez esta filosofia para dar livre curso ao amor e à alegria, e dissipar todos os escrúpulos de uma superstição tola. Porém, minha bela, ao mesmo tempo em que a juventude e a paixão satisfazem nossos ávidos desejos, é preciso encontrar assuntos mais alegres para misturar às nossas amorosas carícias” 

(Hume, David. Essays Moral, Political, and Literary. Liberty Fund, 1987, p.144-145).


Imagens: William-Adolphe Bouguereau (1825-1905); Eleanor Fortescue-Brickdale (1872-1945)

domingo, julho 16, 2017

Ausência de tudo


Há apenas o que chamamos silêncio
ou uma ausência de tudo: nome este que damos
à instância que nos remete ao nada,
à constância que nos remete ao vácuo,
o inapelável que nos remete à morte.

Há um rangido macio, sem quebras
mas com rodopios, falsetes, arabescos:
é o que chamamos sonho, miragem,
clivagem de entraves espaçados,
aragem dos frutos na colheita.

Há um susto, um murmúrio surdo,
um baque sem ouvintes, vestimenta:
é quando um poeta deixa de crer na linguagem.
Tão inteiro então é o silêncio
que é como se a noite mesma se fechasse.

Como se o ar, parado se abismasse;
e o fruto mesmo então é inconsistente;
e as vagas cedem, recrudescem à procura
De um pouso inabitável. Ou ainda:
inexistente.

[ poema & pintura | ygor raduy ]



quarta-feira, maio 24, 2017

A um ausente


Tenho razão de sentir saudade,
tenho razão de te acusar.
Houve um pacto implícito que rompeste
e sem te despedires foste embora.

Detonaste o pacto.
Detonaste a vida geral, a comum aquiescência
de viver e explorar os rumos de obscuridade
sem prazo sem consulta sem provocação
até o limite das folhas caídas na hora de cair.

Antecipaste a hora.
Teu ponteiro enlouqueceu,
enlouquecendo nossas horas.
Que poderias ter feito de mais grave
do que o ato sem continuação, o ato em si,
o ato que não ousamos nem sabemos ousar
porque depois dele não há nada?

Tenho razão para sentir saudade de ti,
de nossa convivência em falas camaradas,
simples apertar de mãos, nem isso, voz
modulando sílabas conhecidas e banais
que eram sempre certeza e segurança.

Sim, tenho saudades.
Sim, acuso-te porque fizeste
o não previsto nas leis da amizade e da natureza
nem nos deixaste sequer o direito de indagar
por que o fizeste, por que te foste.


Carlos Drummond de Andrade | 'A Um Ausente' | In: Farewell | Poesia Completa | Editora Nova Aguilar | Rio de Janeiro | 2007



Qualquer ser humano que conhece o amor e a dor da perda de um amor, ou de um amigo, sentir-se-ia, creio eu, profundamente tocado por esse belíssimo e penetrante poema. Mas nem todos, talvez, procurassem saber a trágica história que ele conta. A quem interessar possa, deixo aqui o link que a conta, por Marcelo Bortoloti:

http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2015/07/1659927-a-homossexualidade-na-vida-e-na-obra-de-carlos-drummond-de-andrade.shtml


quarta-feira, novembro 02, 2016

Canto fúnebre sem música




Dirge Without Music

I am not resigned to the shutting away of loving hearts in the hard ground.
So it is, and so it will be, for so it has been, time out of mind:
Into the darkness they go, the wise and the lovely. Crowned
With lilies and with laurel they go; but I am not resigned.

Lovers and thinkers, into the earth with you.
Be one with the dull, the indiscriminate dust.
A fragment of what you felt, of what you knew,
A formula, a phrase remains, — but the best is lost.

The answers quick and keen, the honest look, the laughter, the love,
They are gone. They are gone to feed the roses. Elegant and curled
Is the blossom. Fragrant is the blossom. I know. But I do not approve.
More precious was the light in your eyes than all the roses in the world.

Down, down, down into the darkness of the grave
Gently they go, the beautiful, the tender, the kind;
Quietly they go, the intelligent, the witty, the brave.
I know. But I do not approve. And I am not resigned.


Canto fúnebre sem música

Não me conformo em ver baixarem à terra dura os corações amorosos,
É assim, assim há de ser, pois assim tem sido desde tempos imemoriais:
Partem para a treva os sábios e os encantadores. Coroados
De louros e de lírios, partem; porém não me conformo com isso.

Amantes, pensadores, misturados com a terra!
Unificados com a triste, indistinta poeira.
Um fragmento do que sentíeis, do que sabíeis,
Uma fórmula, uma frase resta — porém o melhor se perdeu.

As réplicas vivas, rápidas, o olhar sincero, o riso, o amor
foram-se embora. Foram-se para alimento das rosas. Elegante, ondulosa
é a flor. Perfumada é a flor. Eu sei. Porém não estou de acordo.
Mais preciosa era a luz em vossos olhos do que todas as rosas do mundo.

Vão baixando, baixando, baixando à escuridão do túmulo
Suavemente, os belos, os carinhosos, os bons.
Tranquilamente baixam os espirituosos, os engraçados, os valorosos.
Eu sei. Porém não estou de acordo. E não me conformo.


Edna St. Vincent Millay, 1892-1950

"Poesia Traduzida"
Tradução de Carlos Drummond de Andrade
Editora Cosacnaify

sábado, agosto 27, 2016

A vida como fenômeno estético

Uma vez comentei com uma amiga sobre algumas obras de arte extremamente belas e delicadas (criação de uma artista grega chamada Mantha Tsialiou) que conheci, por acaso, pelo facebook. Mostrei as fotos de algumas obras à minha amiga que, por sua vez, mostrou-me, ali também pelo facebook, as obras de um amigo dela chamado Ygor Raduy (já publiquei um poema dele aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2016/08/na-borda-da-palpebra.html ). 

Bah... fiquei impressionada! Achei os desenhos e pinturas daquele rapaz, até então desconhecido pra mim, simplesmente maravilhosas, inquietantes, perturbadoras, especialmente suas figuras do abismo.

Não resisti e, completamente seduzida por aquelas obras, num impulso atrevido, enviei a ele uma solicitação de amizade pelo facebook. Digo impulso atrevido porque não costumo enviar convites de amizades a desconhecidos, e quase nem mesmo a conhecidos. Mas queria acompanhá-lo de perto. Tornamo-nos amigos "no face" (expressão engraçada, mas que está na boca de todos os seus usuários) e acabamos trocando algumas ideias numa conversa inbox tipo olá quem é você como chegou e o que faz aqui? Apresentei-me, falei um pouco do que percebia e sentia ao contemplar seus trabalhos e, a partir de então, passei a acompanhar as publicações não apenas de suas pinturas, mas também, para minha agradável surpresa, de seus textos literários e incrivelmente filosóficos.

Não tenho dúvidas de que ele tem uma extraordinária sensibilidade artística e filosófica, eu diria mesmo que ele é um artista genuinamente genial, bem ao modo como Schopenhauer fala da figura do artista-gênio no livro III de O mundo como vontade e representação, e bem ao gosto da tese de Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, segundo a qual a vida só tem sentido e pode ser justificada como fenômeno estético. Há claramente em suas obras uma fusão entre arte, filosofia e vida. Ele não apenas produz belas obras de arte, como também escreve maravilhosamente bem e, ainda, filosofa naturalmente. Tenho acompanhado seu facebook as an experiment, seus relatórios com diversos títulos e temas (relatório sobre nada muito importante, relatório sobre qualquer coisa, relatório com verdades definitivas, relatório sobre coisas esparsas), suas pinturas, desenhos e revisões de cânones, suas histórias esquisitas, seus exercícios de escrita, suas fotografias e reflexões em geral. Tudo é de uma tragicidade, riqueza e profundidade abissais.

Ao pensar sobre um tema caro à filosofia (e à vida de qualquer mortal-comum), isto é, a morte, vejam só o que ele escreve:


"Eu penso sobre a morte. Sem motivo algum, imagino que seja suave. Talvez seja macia como um acalanto é macio na infância. Talvez seja um envolver-se, um devolver-se, um deixar-se. Talvez morrer seja sedoso, como um imenso leito onde se repousa.  Talvez seja tentadora, a morte, como um mergulhar, um abandonar-se, um despir-se.  Para um corpo que vive, não há nada mais obsceno que a morte.  Mas já que sou humano, penso sobre ela. Será  a morte como um corte abrupto? Um baque? Um repentino desligar-se? Imagino a morte aveludada – talvez porque a vida seja tão áspera. A vida, aprendi, é dor. É o budismo que o diz. É a minha carne e o meu coração que o confirmam. Dor e Alegria, simultâneas. Mas a morte - talvez a morte seja a ausência, talvez o silêncio mais puro. Talvez seja o nada, talvez nela nos percamos de nós, talvez nos desliguemos – talvez seja um infinito esquecimento, um cessar, um interromper. A morte, eu imagino, é generosa, pois acolhe todo aquele que nela penetra. Quem está nela, já não sorri, já não goza, já não erra, já não avança, já não ama, já não sangra, já não arde. Meu único desejo é que na morte se possa ouvir Música. Não consigo suportar a ideia de um silêncio tão severo. Mas sei que a Música pertence à Vida. Quando a morte vem, a Música cessa. E há uma outra questão que me intriga: quando a morte vem, para onde vai o amor? É tão doloroso pensar que o amor também cessa quando a morte vem. Justo o amor, pelo qual juramos eterna sujeição, pelo qual derramamos sangue, suor, saliva, lágrima – é insuportável considerar que ele seja aniquilado pela câmara da morte, como um inseto.  Justo o amor, essa tina asquerosa e tóxica, dentro da qual chafurdamos. O amor, parente tão próximo do ódio. Eu pressinto que a morte não poupa nada, nem mesmo o amor, embora me doa esse pressentimento na alma como uma agulha dói quando enfiada na pele sem aviso."

(em http://streichspielen.blogspot.com.br/2010/05/sobre-morte.html)


Pois bem, posso reconhecer nessa reflexão alguns traços do pensamento de Epicuro (quanto à morte como dissolução e fim da consciência e, portanto, da dor e do sofrimento - um mergulho no nada) e Schopenhauer (no que respeita à sua teoria da prevalência do mal e do sofrimento na vida). E posso reconhecer, além de tudo isso e muito mais, um representante de uma nova geração de filósofos: "os filósofos do perigoso talvez a todo custo" - que Nietzsche prenuncia em Além do bem e do mal § 2, p.10-11).


[todos as obras de arte acima publicadas são de Ygor Raduy]

domingo, agosto 14, 2016

Na borda da pálpebra


A Morte do Amor



Sou eu quem parto ou és tu,
pequeno animal, que te distancias de mim?

É minha obra a morte do amor
ou foste tu que com tuas punhaladas
consumaste o crime?

Parto de ti, sem olhar-te.

Pois na calçada, enquanto conversávamos,
algo dentro de mim enfim consumou-se:
um oceano transformado em pó.

Mas se for pensar em ti, ainda meu coração reclama.
E resisto a ti, como o sol resiste às nuvens depois
de longa tempestade e sobre o chão lança seu primeiro raio.

Se for pensar em ti, ainda uma lágrima hesita:
mas resiste, na borda da pálpebra,
como resisto eu, à beira de tudo, sem teu braço,
despido de tudo, sabendo que és nada,
que o amor foi amor por nada,
que cada palavra de cada poema foi em vão.

Resisto, pois, a tudo  - e já não tenho o teu retrato
exposto, já não sei mais do teu rosto, esqueci como
o teu corpo se move e da angulação do teu torso
e dos vincos ao redor da tua boca quando sorris.

Deixa-me, então, sozinho.

Deixa-me, pois, assim como estou:
os olhos abertos, o pulso acelerado,
o peito repleto de ar e assustado.

Ou deixo-te eu, sem olhar-te,
mesmo querendo olhar-te,
ainda que todo o meu corpo proteste
e a minha alma proteste – deixa-me só,
pois não tenho mais sangue
e o meu coração está crestado,
como um catedral em ruína.

(Mas é manhã - e há um anúncio de ventura
quando uma luz benfazeja, por entre as fendas
e sobre os escombros de argamassa e rocha
 estica a alça amarelada de seu brilho.)

(Ygor Raduy)



[Art Photography by Kasia Derwinska]


Para quem não conhece ainda o talentoso autor desse belíssimo poema (e quer conhecer), clique aqui http://streichspielen.blogspot.com.br/ e encontrará, como ele mesmo diz, um "poeta, fotógrafo, mestre em Letras, humano, animal, interessado em explorar a região confusa onde poesia e pensamento se misturam". Na verdade, eu diria, ele é mais e faz mais do que isso...


quarta-feira, junho 29, 2016

Do abismo do desconsolo

Torturado, Amadeus se perguntava: - Como ela podia ter brincado com ele daquele jeito? Ter-lhe escrito que o coração dela era dele? Ter-lhe colocado no céu ao despertar-lhe as mais doces esperanças para, depois, lançá-lo ao abismo sem fundo do desconsolo? Não! Amadeus não podia compreender por que ela havia virado as costas para a paz, a serenidade, a sabedoria e o contentamento espiritual que ele lhe proporcionara por tantos anos. Não podia compreender por que ela jogava ao mar a vela que a levava longe, colocando-se, assim, à mercê das tempestades hedonistas que paralisariam sua alma aprisionada às demandas brutas de seu belo corpo. Era como se ela tivesse virado o rosto para seu próprio rosto. Sem o saber, iludida, afastando-se dele, afastava-se de si mesma, enterrando, assim, a possibilidade de sua alma receber o alimento que a mantinha governante de sua própria vida ─ a mais bela das vidas, o mais refrescante dos sopros. 

Dilacerado, Amadeus desejou que ela estivesse morta. Mas ela estava viva. Então, ele a matou em seu peito.



domingo, maio 22, 2016

Vida, amor, valor e morte


Dia calmo, chuvoso, cinza, frio, manso e melancólico. Havia escrito algo que emergiu, de repente, em minha mente, enquanto tomava meu longo e lento banho quente (poderia ter se tornado um poema, mas não). Assim que saí e me enrolei na toalha, ainda com as mãos úmidas, peguei o celular e, para que meus pensamentos não se perdessem, derramei-os rapidamente no aplicativo Day One. Mais tarde, na hora em que eu ia enviar o esboço para meu email, num minuto de bobeira, sem querer, apaguei-o inteirinho (e não há nesse aplicativo nenhuma alternativa do tipo CTRL Z do Word que possa recuperá-lo). Lá se foram meus pensamentos que não voltam mais, ao menos do modo natural e espontâneo com o qual eu os havia escrito.

No banho, eu pensava sobre a morte ─ um dos temas filosoficamente mais interessantes. Quanto mais vivo e estudo, quanto mais o tempo passa (ou eu passo por ele), mais penso sobre a morte, embora eu a tenha pensado desde que me entendo por gente (como se diz por aí). Porém, antes d'eu começar a estudar filosofia, era um pensar diferente: mais leve, mais solto, digamos, mais descompromissado e menos constante. Com o natural e implacável avanço da idade, o estudo da filosofia, o acúmulo de experiências na vida e a literatura, a morte passou a ocupar mais insistentemente (e de maneira mais profunda e sistematizada) minhas reflexões. Quero dizer, quanto mais o inexorável ciclo da existência me aproxima da morte, mais penso sobre a vida ─ sua natural acompanhante ─ e no valor dos valores que elegi para a minha vida.

[Amore et Mortem. Roberto Ferri]

Mutatis mutandis, esse tema é o fio condutor da novela A Morte de Ivan Ilitch, de Leon Tolstói, que entra no assunto aqui porque me lembrei de um comentário dessa obra feito por Alain de Botton em seu livro Desejo de Status (com essa inflexão, perdi o fio da meada e vou acabar escrevendo tudo de modo muito diferente do que havia escrito. Anyway...)

Quem já leu a novela de Tolstói sabe que ela versa sobre a agonia e sofrimento de um respeitável e bem sucedido juiz que, ao saber-se acometido de uma grave doença, aos 45 anos, vê-se diante do abismo da morte. Ao dar de cara com a morte, Ivan passa a reavaliar todo o seu passado, "sua criação, sua educação e carreira" e, aos poucos, chega à desgraçada e infeliz conclusão de que viveu toda a sua vida “motivado pelo desejo de parecer importante aos olhos dos outros”, e que “seus próprios interesses e sua sensibilidade foram sacrificados para impressionar as pessoas que, só agora ele vê, não deram a mínima para ele" (Botton, p.211). "Os prazeres que Ivan Ilitch obteve com o trabalho eram os do orgulho; os prazeres que obteve com a sociedade eram os da vaidade..." (Botton, p.210).

"[...] A sensação de ter desperdiçado sua curta vida é composta pelo reconhecimento de que era somente de seu status que as pessoas gostavam, não de seu eu verdadeiro e vulnerável. Ele foi respeitado por ser juiz, por ser um pai e chefe de família rico, mas com esses ativos prestes a desaparecer, em agonia e medo, ele não poderia contar com o amor de ninguém” (Botton, p.211-212) ─ tudo o que ele mais precisava.

O comentário de Botton ilustra sua tese de que a causa mais primária e profunda do desejo de status (enquanto valor e importância que temos aos olhos do mundo), intrínseco à natureza humana, é o desejo de ser amado ─ um desejo maior do que o de possuir dinheiro, fama e influência. Quer dizer, todo desejo de status que, segundo Botton, naturalmente possuímos, tem sua fonte primária no simples desejo de ser amado. De uma perspectiva filosófica e histórica (eu diria também psicológica), Botton apresenta algumas teses acerca das causas da obsessão contemporânea por status, e sugere, posteriormente, algumas soluções (que vou chamar aqui de pílulas filosóficas) que poderiam nos propiciar uma existência mais plena e significativa do que aquela que busca prestígio, fama e renome.

Ao rememorar os comentários de Botton sobre a obra de Tolstói, eu pensava no valor de todas essas coisas e, especialmente, no valor de certas pessoas em minha vida ─ aquelas que contribuíram para que ela se tornasse melhor, mais rica, exuberante e plena de significado. Pensava também no quanto o caminhar implacável para a morte (apesar de toda jovialidade de espírito, forma e movimentos que ainda habita o meu ser) faz com que eu reavalie o valor de todos os valores que nutri e nutro hoje em minha vida.

Mas o texto que eu havia escrito era completamente diferente. Mais inspirado, solto e saltitante. Também não fazia referências às obras supracitadas. A leitura delas foi apenas o ponto de partida. Na verdade, eu começava assim: ei, você aí, meu querido leitor, tão longe e tão perto, antes que seja tarde, deixe-me perguntar: o que torna tua vida mais inspirada e plena de significado? O que a faz valer a pena? O que é que contribui verdadeiramente para que ela viceje? O que a torna mais garrida? Quem, verdadeiramente, se importaria com a tua morte? E por aí eu ia... e eu mesma respondia: tens quase tudo que queres. Falta-te pouco, muito pouco. Mas esse pouco significa muito.

Tais pensamentos nada mais eram, pois, do que um diálogo sobre a vida, o amor e a morte  ─  bem como o valor de todos esses valores ─ travado entre o meu eu lírico e o meu leitor igualmente lírico (ou, se se quiser, meu interlocutor imaginário), enquanto tomava um longo e lento banho quente.

quarta-feira, abril 06, 2016

Olvido


Desce por fim sobre o meu coração
O olvido. Irrevocável. Absoluto.
Envolve-o grave como véu de luto.
Podes, corpo, ir dormir no teu caixão.

A fronte já sem rugas, distendidas
As feições, na imortal serenidade,
Dorme enfim sem desejo e sem saudade
Das coisas não logradas ou perdidas.

O barro que em quimera modelaste
Quebrou-se-te nas mãos.

Viça uma flor...
Pões-lhe o dedo, ei-la murcha sobre a haste...
Ias andar, sempre fugia o chão,
Até que desvairavas, do terror.
Corria-te um suor, de inquietação...


[Camilo Pessanha | in 'Clepsidra' ]



                                            

terça-feira, novembro 10, 2015

Sem depois


Todas as vidas gastei
para morrer contigo.

E agora
esfumou-se o tempo
e perdi o teu passo
para além da curva do rio.

Rasguei as cartas.
Em vão: o papel restou intacto.
Só os meus dedos murcharam, decepados.

Queimei as fotos.
Em vão: as imagens restaram incólumes
e só os meus olhos se desfizeram, redondas cinzas.

Com que roupa
vestirei minha alma
agora que já não há domingos?

Quero morrer, não consigo.
Depois de te viver
não há poente
nem o enfim de um fim.

Todas as mortes gastei
para viver contigo.

.....................................................................

Mia Couto: Poema: Sem depois. Idades Cidades Divindades: Lisboa: Caminho, 2007




sexta-feira, julho 31, 2015

Para atravessar contigo o deserto do mundo


Para atravessar contigo o deserto do mundo
Para enfrentarmos juntos o terror da morte
Para ver a verdade para perder o medo
Ao lado dos teus passos caminhei.

Por ti deixei meu reino meu segredo
Minha rápida noite meu silêncio
Minha pérola redonda e seu oriente
Meu espelho minha vida minha imagem
E abandonei os jardins do paraíso.

Cá fora à luz sem véu do dia duro
Sem os espelhos vi que estava nua
E ao descampado se chamava tempo.

Por isso com teus gestos me vestiste
E aprendi a viver em pleno vento

[Sophia de Mello Breyner Andresen]
Livro Sexto (1962)

quarta-feira, abril 30, 2014

Por um instante...


"... pois desde que te vejo, por um instante, não me é mais possível articular uma palavra: mas minha língua se quebra e um fogo sutil desliza de repente sob a minha pele: meus olhos não têm olhar, meus ouvidos zumbem, o suor escorre pelo meu corpo, um arrepio toma conta de mim; fico mais verde do que o capim, e por pouco me sinto morrer..." 

(Safo, apud Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989, p.136).

quinta-feira, janeiro 30, 2014

Morte Lírica


Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa

que nos meus braços pousem então as aves (que, como eu,
trazem entre as penas a saudade de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na bainha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou (e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me

a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.


[A meu ver, uma mulher que pensa sente e expressa o que está acima dito, uma mulher que concebe essa combinação de ideias palavras imagens sons e sentimentos, não pode deixar de ser considerada, reverenciada e declarada em alto (e eu diria até... solene) e bom som, uma grande e admirável poetés: Maria do Rosário Pedreira]. 

sábado, novembro 30, 2013

A eternidade da morte


Conversando sobre a morte com a Bibi (minha filha de 19 anos), assim, ao acaso, ela me disse:

"não sei mãe
morrer... ah... morrer...
morrer é tão eterno né...?"

e eu: é!
no fundo...
morrer é que é eterno
e não viver
porque morrer é para sempre.

[Sculpture: Monumental Cemetery of Certosa di Bologna, Italy - by Renaud Martelli,1947]

quarta-feira, outubro 30, 2013

Eros e Thanatos

Num daqueles dias em que perambulo ao léu... procurando qualquer coisa que arrebente ou arrebate meu coração, ou mesmo que o estraçalhe de uma vez por todas, encontrei esse belo hino de Lou Andreas-Salomé. Não resisti à tentação. Não resisti a esse impulso de vida... e de morte! Voici!

Hino à Morte

No dia em que eu estiver no meu leito de morte
Faísca que se apagou -,
Acaricia ainda uma vez meus cabelos
Com tua mão bem-amada
Antes que devolvam à terra
O que deve voltar à terra,
Pousa sobre minha boca que amaste
Ainda um beijo.
Mas não esqueças: no esquife estrangeiro
Eu só repouso em aparência
Porque em ti minha vida se refugiou
E agora sou toda tua.

(NOVAES, Adauto (org.) Os Sentidos da Paixão. São Paulo: Cia das Letras, 1987)


[Jardin du Luxembourg. La fontaine Médicis. Polyphemus surprising Acis and Galatea (1866). Auguste-Louis-Marie Jenks Ottin (1811-1890)]

domingo, outubro 20, 2013

Dos umbrais do inferno


"... os pensamentos são tiranos que retornam várias e várias vezes para nos atormentar."


“... pois que é que existe, ante mim, que não esteja ligado a ela? Que é que não me lembra dela? Não posso sequer olhar para o chão, pois vejo as feições dela esculpidas nestas lajes. Em cada nuvem, em cada árvore enchendo o espaço; à noite, refletindo-se em cada objeto; durante o dia, vivo cercado pela imagem dela! Os mais vulgares rostos de homem ou de mulher, minhas próprias feições, zombam de mim com a sua semelhança. O mundo inteiro é uma terrível coleção de lembranças da existência dela e de que a perdi”!

[...]

“Não tenho medo, nem pressentimento, nem esperança de morte. [...] Contudo, não posso continuar assim! Tenho que me lembrar de respirar, tenho quase que lembrar meu coração de bater! Vivo como se me impulsionasse uma mola endurecida: é constrangido que realizo o ato mais insignificante, desde que esse ato não dependa daquele pensamento único; é constrangido que reparo em qualquer coisa viva ou morta, se ela não está associada à ideia que é para mim universal. Um único desejo alimento, e todo o meu corpo, todas as minhas faculdades anseiam por atingi-lo. Vêm ansiando por isso há tanto tempo, e tão inflexivelmente, que estou convencido de que esse desejo será satisfeito, e em breve, porque já devorou minha existência: já fui tragado pela expectativa de sua realização. [...] Oh, Senhor, que luta sem fim e como eu quisera vê-la acabada!"

(BRONTË, Emily. O Morro dos Ventos Uivantes. Tradução de Rachel de Queiroz. São Paulo: Abril, 2010. [p.404-405])