Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador literatura. Mostrar todas as postagens

sábado, agosto 08, 2015

Afinal, por que não?

Pensei em escrever sobre algumas declarações, frases e expressões que li e ouvi nos últimos dias. Elas suscitaram vários temas interessantes (que vou elencar abaixo) sobre os quais eu poderia escrever, assim, numa ordem que não alteraria o resultado, pois todos levariam a um mesmo ponto.

Eu poderia escrever sobre valores e referências sagradas. Sobre jogar com ambiguidades de sentimentos. Sobre a inteireza nas relações amorosas, o silêncio necessário, o silêncio excessivo e cruel, a hora de falar, a hora de calar e a hora de jogar a toalha. 

Eu poderia escrever sobre o significado e importância das pessoas em nossas vidas. Sobre estratégias ocultas e a busca de satisfação do nosso querido e amado eu. Sobre nos colocarmos no lugar e nas mãos do outro. Sobre estilo, intuição e abandono. Gosto, falta de gosto, filosofia e olhos nos olhos. 

Eu poderia escrever sobre ciúmes, posses e palavras sopradas em ouvidos sensíveis. Sexo, literatura, perdão, abismos e pirilampos. Sobre desejos, sinais confusos, corações quentes, frios, feridos, sobressaltados e algo mais. 

Eu poderia escrever sobre decisões frágeis, negligências, filmes, afetos e atenções. Sobre versos tristes, rir e passear de mãos dadas. Meias-verdades, facebook, beijos e desculpas esfarrapadas. Sobre carências, carinhos, explicações, dedicatórias, teses e dissertações.

Eu poderia escrever sobre enredar pessoas nas teias pérfidas da manipulação. Sobre histórias de amor e ilusões perdidas. Sobre sermos ou não indiferentes aos sentimentos dos outros. Sobre choros e compulsões. Etta James, Van Morrison, zelo, emails, telefonemas, mensagens, cigarros e aviões.  

Eu poderia escrever sobre moleskines, olhos cansados e mentes turvas. Viagens mentais e a inexorabilidade do tempo. Sobre contar e não contar com o outro em nossas vidas. O significado de lutar por um amor, conservar e proteger esse amor. Sobre o ato de ludibriar com palavras, ter a posse do coração de alguém, e BB King quando canta Guess Who, Waiting for you call e Come rain or come shine

Eu poderia escrever sobre dedicação e capacidade de amar. Johnny Winter e Johnny Cash in Hurtin' So Bad. Temores e tremores. Sobre sussurros, persuasão, solidão e silêncio confortável. Sonhos, cumplicidade, Eric Clapton, mágoas e rancores. Sobre melancolia, dores, ironia, o valor das palavras e a responsabilidade com o que dizemos.

Eu poderia escrever sobre Piazzolla e ideias que se desfiam. Sobre bons e maus argumentos. Sobre talentos e a falta deles. Ray Charles e palavras ao vento. Sobre culpa, lealdade, proteção, Robert Cray e Imelda May. Tolices e corações que sangram. Mentiras e enrolações. 

Eu poderia escrever sobre pedidos de espera, direitos e sinceridade. Sorrisos e estrelas apagadas. Sobre cartas, declarações de amor, bolhas de sabão e crueldade. Céu nublado, migalhas, hesitações, garantias vãs e tentativas frustradas. Sobre riscos, estranhos amores, leveza e felicidade. Sobre ventanias, prazeres e arrependimentos solenes. 

Eu poderia escrever, também, sobre loucuras, voragens e castelos de areia. Ella Fitzgerald, Schopenhauer e Leonard Cohen. Sobre pressa, ânsia, urgência e peças que não se encaixam. Abraços, contradições e flutuações anímicas. Sobre sangue, caráter e formação. Ressentimentos, Tom Waits, blues and rock’n’roll

Eu poderia escrever, ainda, sobre o que há de mais importante na vida. Sobre prosas, poesias e facadas no peito. Tangos e frequências eletromagnéticas. Raridades, belezas e economia de vida. Sobre Hume, almas leves, ternura, Lorca e Neruda. 

Eu poderia escrever sobre instinto, drogas e remédios para dormir. Sobre a morte, reclusão, apetites e deliberações. Sarah Vaughan, Allan Poe, feelings e maturidade. Sobre consistência, raízes, solo firme e profundidade. 

Eu poderia escrever sobre o ato de aliviar um coração, Montaigne, black coffee, viagens e aventuras. Sobre confiança, história e aprendizado. O amor, a amizade, ventos uivantes e promessas não cumpridas. Sobre dúvidas, incertezas e Georgia on my mind. Sobre compreender e não compreender. A franqueza, Kafka, Zweig, admiração, miséria, pequenez e borboletas azuis. 

Eu poderia escrever sobre whatsApp, egoísmo, Camus e altivez. Sobre protestos, omissões e lamentações diversas. Atitudes, prazos e tensões amorosas. Sobre o futuro, Balzac, Willie Nelson cantando Crazy, e Nina Simone Let it be me

Enfim (sei que já me excedi), eu poderia escrever sobre imagens distorcidas, Dostoiévski, comparações e angústias. Águas pantanosas e areias-movediças. Móveis ocultos, mensagens codificadas, esperanças, decepções, cálculos, escolhas, doçura, paixão, liberdade e muito mais, bem como, para encerrar, um conto de fadas que pode dar certo. Afinal, por que não?



segunda-feira, julho 27, 2015

A carta de amor



"Como desejo, a carta de amor espera sua resposta; ela impõe implicitamente ao outro de responder, sem o que a imagem dele se altera, se torna outra. '[...] Eternos monólogos sobre um ser amado, que não são nem ratificados nem alimentados pelo ser amado, acabam em ideias falsas sobre as relações mútuas, e nos tornarão estranhos um ao outro quando nos encontrarmos novamente, e acharmos então as coisas diferentes do que, por não termos nos certificado delas, se imaginava.” 

(Freud. Correspondência, 39, apud Barthes, Roland. Fragmentos de um Discurso Amoroso. p.33).

[ Francine Van Hove: Hand-Painted Oil Painting on Canvas]

domingo, junho 14, 2015

Amizade Estelar

" ─ Nós éramos amigos e nos tornamos estranhos um para o outro. Mas está bem que seja assim, e não vamos nos ocultar e obscurecer isto, como se fosse motivo de vergonha. Somos dois barcos que possuem, cada qual, seu objetivo e seu caminho, podemos nos cruzar e celebrar juntos uma festa, como já fizemos ─ e os bons navios ficaram placidamente no mesmo porto e sob o mesmo sol, parecendo haver chegado a seu destino e ter tido só um destino. Mas então a todo-poderosa força de nossa missão nos afastou novamente, em direção a mares e quadrantes diversos, e talvez nunca mais nos vejamos de novo ─ ou talvez nos vejamos, sim, mas sem nos reconhecermos: os diferentes mares e sóis nos modificaram! Que tenhamos de nos tornar estranhos um para o outro é a lei acima de nós: justamente por isso devemos nos tornar também mais veneráveis um para o outro! Justamente por isso deve-se tornar mais sagrado o pensamento de nossa antiga amizade! Existe provavelmente uma enorme curva invisível, uma órbita estelar em que nossas tão diversas trilhas e metas estejam incluídas como pequenos trajetos ─ elevemo-nos a esse pensamento! Mas nossa vida é muito breve e nossa vista muito fraca, para podermos ser mais que amigos no sentido dessa elevada possibilidade. ─ E assim vamos crer em nossa amizade estelar, ainda que tenhamos de ser inimigos na Terra."

(Nietzsche. A Gaia Ciência IV §279, p.189-190)



Não me lembro quando li pela primeira vez esse aforismo de A Gaia Ciência. Provavelmente foi quando comecei a estudar Nietzsche, a fim de desenvolver um projeto de iniciação científica (CNPq), na época de minha graduação (idos de 2000-2002). Há algum tempo, ao retomar minhas leituras de partes da obra deste autor perturbador, tropecei várias vezes neste belo e trágico aforismo, já tão lido, relido, trelido, pensado, sentido, interrogado e grifado. Pensei: por que ele me chama tanto a atenção? Por que ele me afeta tanto? Por que meu coração se ressente ao lê-lo? Well, não estabeleci nenhuma relação do que Nietzsche afirma nele com a pessoa para a qual ele destina este aforismo. Pois tal aforismo nunca fez propriamente parte dos temas que me propus a estudar. Minha interpretação sempre foi, num certo sentido, totalmente parcial e descontextualizada do restante de sua obra (se é que me permitem...). Sempre admirei o teor poético, imagético e passional (bem ao estilo amor-fati) do que Nietzsche escreve. Ao lê-lo, sentia em meu coração (e sinto sempre que o leio) uma dorzinha aguda e gelada. Pensava no valor da amizade e lembrava da minha amizade mais cara. Perguntava-me: será que será assim? E repetia a mim mesma, como quem torce fazendo figa: tomara que não, tomara que não! Quero continuar a crer em nossa amizade terrena, ainda que ela possa ser também estelar e celestial.

[Há uma ano e meio li a biografia de Lou Salomé e pensei se Nietzsche teria escrito esse aforismo pensando nela. Eu não havia feito ainda nenhuma pesquisa a respeito. Na época, não fui adiante com minha dúvida. Mas, lendo-o novamente esses dias, fiquei curiosa. E fui conferir. Descobri que Nietzsche escreveu-o de modo a deixar "claro que não poderia atender ao apelo" do grande compositor Richard Wagner "para resgatar uma amizade perdida." Ao menos é o que está dito na sinopse do livro Amizade Estelar: Schopenhauer, Wagner e Nietzsche, de Rosa Maria Dias, que, aliás, ainda não li. Quem sabe um dia. Até lá... (ou talvez para sempre) mantenho minha leitura parcial, ainda que agora eu saiba que a relação de amizade que serviu de mote a este aforismo é outra].

terça-feira, junho 02, 2015

Urgentemente


É urgente o Amor,
É urgente um barco no mar.

É urgente destruir certas palavras
ódio, solidão e crueldade,
alguns lamentos,
muitas espadas.

É urgente inventar alegria,
multiplicar os beijos, as searas,
é urgente descobrir rosas e rios
e manhãs claras.

Cai o silêncio nos ombros,
e a luz impura até doer.
É urgente o amor,
É urgente permanecer.


(Eugénio de Andrade)

domingo, março 15, 2015

Desculpe o beijo que se desvanece em pó


Aquele domingo em que você acorda às 6:30 da manhã porque dormiu cedo demais, porque estava com dor de garganta, frágil, o peito ardendo, febril e cansada, e pensa no monte de coisas que tem pra fazer, e se pergunta: o que devo fazer primeiro? e se responde: faça o que mais gosta!

Uma vozinha sussurra lá do fundo do meu eu: ─ vá lá, Marília! escreva qualquer coisa (nem que seja uma bobagem qualquer). Aproveite ao menos um de seus diversos e intermináveis esboços rascunhados em seus papeizinhos e cadernetas espalhadas pelas gavetas e prateleiras de seu refúgio ─ guardião de seus sentimentos e pensamentos. Traga-os à tona. Mas não viajes demais. Lembra-te que tens que escrever uma comunicação para o V Encontro Hume. Escrever não! (a voz me corrige): reescrever, repensar e reescrever, porque um texto a respeito já foi ensaiado outrora. Retome e desenvolva aquele ponto. Teu prazo está acabando.

Mas daí a Marília, diletante como ela é, abre um caderninho aqui, outro ali, passeia os olhos pelas prateleiras de livros, dedilha algumas páginas, procura algo sem saber ao certo o quê! Abre uma gaveta. Encontra diversas anotações rabiscadas. Abre outra. Encontra mais um tanto. Lê umas, lê outras, e vai se distraindo com elas, pensando na vida, rememorando suas ideias e experiências. Dependendo do que lê, Marília sente uma dorzinha aqui, outra ali. Ou então um prazer, seguido de uma enorme satisfação, e, depois, seguido de uma mágoa, de uma raiva, sucedidas por um novo pensamento, uma nova lembrança e prazer, que seguem alternadamente circulando junto ao sangue... que vai e vem e vai e vem... in transe...

Ela decide, então, assim, num impulso e ao acaso, abrir seu bom e velho dicionário amoroso. O verbete que se estampa intitula-se FESTA: “o sujeito apaixonado vive cada encontro com o ser amado como uma festa”.

“Esta noite ─ tremo ao dizê-lo ─, eu a tinha nos braços, apertada contra o meu peito, eu cobria de beijos intermináveis seus lábios que murmuravam palavras de amor, e meus olhos se afogavam na embriaguez dos seus! Deus! serei castigado, se ainda agora experimento uma celeste felicidade ao me lembrar dessas ardentes alegrias, ao revivê-las no mais profundo do meu ser” (Werther) ?

“A festa [...] é um júbilo e não uma explosão: gozo do jantar, da conversa, da ternura, da promessa certeira do prazer: ‘uma arte de viver acima do abismo’”.

“(Então, não significa nada para você ser a festa de alguém?).”

Ela guarda a pergunta e segue o dia... absorta em seus pensamentos.

BARTHES, Roland | Fragmentos de um discurso amoroso | 9ª. Ed. | Tradução de Hortênsia dos Santos | Rio de Janeiro| F. Alves | 1989 | p.113

sábado, janeiro 31, 2015

domingo, novembro 23, 2014

No silêncio da rocha



"Secaram as sementes no silêncio da rocha e mineral. As palavras que não chegamos a gritar, as lágrimas retidas, as pragas que se engolem, a frase que se encurta, o amor que matamos, tudo isso transformado em minério magnético, em turmalina, em ágata, o sangue congelado em cinábrio, sangue calcinado tornado galena, oxidado, aluminizado, sulfatado, calcinado, o brilho mineral de meteoros mortos e sóis exaustos numa floresta de árvores secas e desejos mortos."

(NIN, Anaïs. A Casa do Incesto. Tradução de Isabel Hub Faria. Porto: Assírio & Alvim, 1997, p.41)

[photo by Heitor Magno]

domingo, novembro 02, 2014

Sou-te como tu me és

"Vou deixar-te levar-me até à fecundidade da destruição. Por isso me atribuo um corpo, um rosto e uma voz. Eu sou-te como tu me és. Cala o fluxo sensacional do teu corpo e encontrarás em mim, intactos, os teus medos e as tuas penas. [...] Sai do papel que te atribuis e descansa no centro dos teus verdadeiros desejos. Por um momento deixa as tuas explosões de violência. Renuncia à tensão furiosa e indomável. Para de tremer, de te agitar, de sufocar, de amaldiçoar, e reencontra o teu fundo que eu sou. Descansa das complicações, destorces e deformações. Por uma hora serás eu; ou antes, a outra metade de ti... Aquela parte de ti que tu perdeste. O que queimaste, partiste, estragaste, encontra-se entre as minhas mãos. Eu sou guarda de coisas frágeis e preservei de ti o que há de indissolúvel."


(NIN, Anaïs. A Casa do Incesto. Tradução de Isabel Hub Faria. Porto: Assírio & Alvim, 1997, p.15-16)

sábado, outubro 25, 2014

Esta noite ou nunca mais

"Não consigo mais ouvir em silêncio. Tenho de falar com você com os meios que estão ao meu alcance. Você trespassa a minha alma. Sou agonia e esperança. Não me diga que é tarde demais, que tais preciosos sentimentos se foram para sempre. Eu volto a me oferecer a você, com um coração ainda mais seu do que quando você quase o partiu, oito anos e meio atrás. Não ouse dizer que os homens se esquecem mais rápido do que as mulheres, que o amor deles morre mais cedo. Só a você tenho amado. Posso ter sido injusto, fui fraco e ressentido, mas nunca inconstante. Só por você vim a Bath. Só por você eu penso e faço planos. Será que você não viu? Será que você não conseguiu entender meus desejos? [...] Tenho de ir, incerto de meu futuro; mas vou voltar para cá [...]. Uma palavra, um olhar serão o bastante para decidir se entrarei na casa de seu pai esta noite ou nunca mais."

(Capitão Frederick Wentworth à Anne Elliot, pp.280-281).

sexta-feira, outubro 24, 2014

Question mark


Otto havia saído e batido a porta. Ella pegou um cigarro, sentou-se ao chão da sala e ali, paralisada, permaneceu. Não sentia as lágrimas molharem seu rosto, seus cabelos, suas roupas. Não sentia as pernas adormecerem. Sabia apenas que não conseguia se mover. Ella estava ali e não estava. O telefone tocava como um ruído ao longe. Ella só sentia a ardência do cigarro em sua garganta. O choro, feito convulsão, não veio naquele momento, era somente uma água salgada e silenciosa que, por ausência de força, não conseguia enxugar. O pensamento ficou completamente borrado. De repente, sentiu uma dor tão violenta como se nunca mais pudesse sair daquela posição. Faltara-lhe o grito, o desespero, a fúria. A dor provocara-lhe a contenção de qualquer movimento voluntário. As lágrimas continuavam a escorrer e a grudar por todo seu corpo. Quando, finalmente, conseguiu se perceber no tempo e no espaço, Ella resolveu sair. No carro, enxergava o trânsito como por detrás de um fundo de garrafa. Tudo tinha ficado inaudível. À noite, depois de um esforço imenso, o pensamento de Ella começou, lentamente, a se organizar. Repassou cada movimento de Otto. Ouviu mil vezes cada palavra que havia sido dita. Reviu todos os olhares que ele lhe havia lançado. Tentou, friamente, reconstruir aqueles dias ─ o que lhe custou cavar e revirar ainda mais o buraco aberto em seu peito. Cada gesto do qual Ella se lembrava, agitava-lhe o entendimento que, por sua vez, lutava desesperado contra toda tentativa de compreensão. Nela, só havia incompreensão. E um enorme ponto de interrogação.

quinta-feira, setembro 11, 2014

Missiva

"Por que recorri novamente à escritura?
Não é preciso, querida, fazer pergunta tão evidente,
Porque, na verdade, nada tenho para te dizer;
Entretanto... [ah... entretanto], tuas mãos queridas receberão este papel"

(Os sofrimentos do jovem Werther. Göethe, apud Freud, apud Barthes, in: Fragmentos de um Discurso Amoroso, p.32).

[Fabian Perez]

Well, tendo ou não tendo nada a dizer, o que importa é que "tuas mãos queridas receberão este papel." Não ter nada a dizer e escrever assim mesmo, apenas para que o papel seja recebido e tocado pelas "tuas mãos queridas"... ah... que poético!

segunda-feira, agosto 25, 2014

Num trago


Ella entra no bar e fica ali a refestelar-se pelo balcão. Otto chega e, inadvertidamente, se aproxima. Ella não se mexe. Acende um cigarro, traga-o com força e, resoluta, permanece em silêncio, sem ao menos olhar para Otto. Otto também não fala nada. Apenas fica ali, parado, a fitá-la fixamente. A atmosfera se adensa. O silêncio pesa. E se estende... 
Passados alguns minutos, como se fossem horas, Ella irrompe:
- Garçon! Um copo de cólera, por favor! E sem gelo!
Ella bebe num gole só.
E tchau!

sábado, agosto 23, 2014

Rito


Egon Schiele [1890 - 1918]. Femme Assise Avec Le Genou Plié 

"São quatro da madrugada, Lucrécia querida", pensou dom Rigoberto. Como quase todos os dias, havia acordado na turva umidade do amanhecer para celebrar o rito que repetia cacofonicamente desde que dona Lucrécia fora morar no Olivar de San Isidro: sonhar acordado, criar e recriar sua mulher por invocação daqueles cadernos onde hibernavam seus fantasmas. 'E onde, desde o dia em que te conheci, tu és rainha e senhora.'"

"Contudo, à diferença de outras madrugadas desoladas ou ardentes, hoje não lhe bastava imaginá-la e desejá-la, conversar com sua ausência, amá-la com a própria fantasia e com o próprio coração, de onde ela nunca se havia afastado; hoje, precisava de um contato mais material, mais certo, mais tangível. 'Hoje, eu poderia me suicidar', pensou, sem angústia."

[...]

"No primeiro caderno que abriu, uma frase oportuníssima saltou e o mordeu: 'Meus ferozes despertares ao amanhecer têm sempre como ânimo, meu amor, uma imagem tua, real ou inventada, que inflama meu desejo, enlouquece minha saudade, deixa-me em suspenso e me arrasta a esta escrivaninha para me defender contra o aniquilamento, amparando-me no antídoto de meus cadernos, gravuras e livros. Somente isso me cura'".

Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.225-226.

Quem conhece essa obra de Lhosa (bem como O Elogio da Madrasta, anterior a este), saberá que o inquietante Egon Schiele não está aqui por acaso.

domingo, agosto 10, 2014

Os restos de Ella


Há tempos Ella se sentia partida ao meio. De um lado, estava esvaziada, como se dentro dela houvesse apenas um silêncio devastador. De outro, sentia-se um bicho enjaulado a querer vomitar tudo que pensava e sentia – uma massa gordurosa que estava a lhe corroer. Não era um silêncio escolhido. Era simplesmente o que lhe restava. Estava anestesiada. Nada podia fazer, a não ser recolher-se em seu próprio sofrimento.



sábado, agosto 09, 2014

Excuse my dust


"Casa dos espelhos para onde torno e retorno, devolvida a mim mesma, labirinto especular no qual continuo vagando, os pés feridos nos meus próprios cacos, armadilhas obstinadas a me reter, infinitamente, destruir-me, reconstruir-me, incessantemente, em dor, em pó" (Denser, Márcia. Diana Caçadora, p.41).

[Photo: Erwin Blumenfeld - Teddy Thurman - New York 1948]

segunda-feira, julho 28, 2014

Ausência

Uma das oitenta "figuras" que Roland Barthes apresenta em seus Fragmentos de um Discurso Amoroso é a ausência. Essa figura (seja qual for dentre as oitenta) é, como diz Barthes, "o enamorado em ação" (o sujeito universal apaixonado). Aquele que pode ser reconhecido no discurso que se passa. Discurso tecido de desejo, de lembrança, de saudade, de angústia, de espera, de cansaço, imaginário, loucura... e por aí vai... o enamorado(a) em ação, no poema Ausência, de Jorge Luís Borges:


[ by Jacob Sutton]

Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.

domingo, julho 27, 2014

Persuasão



"Ela tentou permanecer calma, deixar as coisas acontecerem, e procurou concentrar-se muito neste argumento de natureza racional: 'Com certeza, se houver uma afeição constante, nossos corações não tardarão a se compreender.'” 

(Anne Elliot, in Persuasão, de Jane Austin, p.261)
[photo by Uwe Steger]

sexta-feira, julho 25, 2014

Na brevidade do verso



CARPE DIEM

Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio — nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.

[Poema de Nuno Júdice] - [Arte: Untitled II by Fabian Perez]

quarta-feira, julho 23, 2014

Nas garras de um grito


Ella adorava tomar um longo e demorado banho quente. Muito quente. Podia ser de manhã, de noite, ou a qualquer hora. Ficava ali, debaixo do chuveiro, a deleitar-se naquela água corrente, ardente, a aquecer-lhe o corpo, a alma, o sangue e a imaginação, enquanto observava seus pensamentos escorrerem pelo ralo.  Friorenta como Ella era, tinha necessidade vital desses banhos.

Naquele dia, Ella acordou com um pequeno poema ressoando em sua cabeça. Ella não gostava de todos os poemas que lia, ainda que fossem escritos pelas penas dos mais famosos e consagrados escritores. Era seletiva. Gostava de alguns, mas nem sempre em sua completude. Às vezes, abraçava-os por inteiro. Outras, apreciava apenas um fragmento. Identificava-se com um verso, uma linha, uma expressão, ou simplesmente um sentimento suscitado. Fosse pela profundidade, beleza ou doçura. Fosse pela loucura, sensualidade, tristeza ou luxúria; ou mesmo pela composição de duas ou mais dessas qualidades.

Todos os dias Ella divagava por algumas horas em seus livros de filosofia e literatura. Navegava pelos links e hiperlinks disponíveis em sua era high-tech, procurando algo que lhe arrebatasse os sentidos. Anotava em seus diversos caderninhos tudo que lhe tocava a alma. E o corpo! Pois Ella sentia que vivia, dissessem o que dissessem alguns filósofos, num corpo inseparável de sua alma: Ella era uma substância só, inteiramente indivisível.

Naquela gélida manhã sem graça, sufocada como se tivesse uma corda amarrada ao pescoço, Ella acordou com um grito querendo saltar de seu peito. Levantou, despiu-se, abriu o chuveiro e entrou debaixo d'água quente. Ressoava em três linhas um verso do poema Olmo, de Sylvia Plath, que havia anotado em um de seus caderninhos.

Dentro de mim mora um grito. 
De noite, ele sai com suas garras, à caça 
de algo para amar!

Resolveu, então, tomar um banho gelado. 
Não suportou. Escorreu pelo ralo. E se foi.

quarta-feira, julho 16, 2014

Por ti

Das páginas de meu Moleskine...


"[...] Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me maltratarás irremediavelmente. Tuas carícias me envolvem como as trepadeiras aos muros sombrios. Esqueci teu amor e não obstante te adivinho atrás de todas as janelas. Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem".

[Pablo Neruda]

(ahh... o que seria de mim sem poesia..?)