quinta-feira, fevereiro 14, 2019

Canção de já-não-mais




Se digo “estou”, mesmo em hora morta,
o silêncio contesta: “esteve”. Se ouso “sou”,
o mesmo hiato repara: “eras, foste, estiveste,
viste, feriste, vagaste.” E eu mesmo, 
já em doce genuflexão, concedo: 

“Daqui, pouco falta que me sustém sem partir,
espaçar, romper o que une flanco e flanco 
rumo ao sem susto, sem lastro, sem solidez.”

O silêncio aquiesce sem um gesto.

E se vieste, cabe “logo vais”;
e se estamos cabe “já não mais”.
Pois basta um zás – não mais estar:
o possível escasso que vos alinhaste sobre o chão 
agora vos é fosso, ataúde, desvão. 

Repara que nada vos sustenta, 
alinha, indica, oferece linha-guia 
ou pouso onde, abrigado do incerto,
possas reclamar-te existente fora do
limite esguio que vos cabe.

O vento que se nega transpassar-te.
A noite que te oculta o dele ventre,
olhos, pélvis, voz: tudo o que dele,
ausente, se demora e te suspende.

A dor que é tua mais perene mandatária.
A morte que te aguarda indiferente.
A noite se retrai e se afasta desdenhosa,
alada, para espaços mais egrégios.

Resta a ti, como leito perpétuo, a escuridão.
Escuridão e silêncio.




[ poema & pintura | ygor raduy ]

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* o último verso faz referência direta ao verso final do poema "The moon and the yew tree", de Sylvia Plath: "And the message of the yew tree is darkness. / Darkness and silence." In: "Ariel and other poems".

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hoje o facebook resgatou a lembrança desse meu amigo tão denso, querido e talentoso. Pena que de vez em quando ele mergulha nessa escuridão e silêncio. E dá uma sumida. Mas de vez em quando também ele volta, e ilumina tudo. Digo que lamento apenas retoricamente (ainda que sinta saudades dele), porque no fundo sei que ele se nutre dessa escuridão e silêncio para, em algum momento, ascender à luz.

Um comentário:

Gay Writers disse...

Querida,

você não conseguiria calcular o prazer que me dá ver um texto-imagem meus no seu blog. Só me falta pular pela janela de alegria. E sabe o porquê de tal estado eufórico? Vou te explicar. Uma voz fala em mim da seguinte forma:

"Pois é, você anda ultimamente achando que os seus escritos não valem nada, que o melhor a ser feito é deixa isso de poesia e poemas de lado. (O que vem mesmo acontecendo.) E veja que surpresa você recebe - o seu texto no blog da Marília. E perceba, não estou falando de uma qualquer. Se em uma pessoa os céus foram generosos com um misto de sensibilidade, conhecimento e gosto estético - esse alguém é a Marília. Então tire essa bunda da poltrona e comece logo a trabalhar!"

De verdade, querida, esse tipo de postagem que você faz me dá um mega estímulo para continuar a escrever. De coração, obrigado.

Um beijo grande,

Y.