quarta-feira, janeiro 17, 2024

Carro-fantasma

Quando estive em San Francisco, em Janeiro do ano passado, vi carros que andam sozinhos pelas ruas, sem motorista e sem passageiros. É curioso e assustador ao mesmo tempo. 

Numa das noites em que estive por lá, minha filha parou rapidamente em fila dupla para que eu descesse em frente ao seu apartamento, no coração da cidade, numa rua bem íngreme, feito várias que têm por lá (é um sobe e desce que não tem tamanho). 

Dali minha filha ia procurar um lugar para estacionar — artigo raro; de luxo mesmo, a ponto de me fazer pensar que o metro quadrado daquela cidadezinha de terras e mares recortados deve custar uma fortuna. Há muitos predinhos de três ou quatro andares que, dadas as especificidades da cidade, têm apenas uma garagem. Muita gente tem que estacionar nas ruas.

Logo atrás de nós vinha um desses carros sem motorista e passageiro. Já havia visto, durante o dia, un passant, um ou outro mapeando a cidade, tal como minha filha me explicou. Mas esse, daquela noite, parou bem atrás de nós. Tipo freou de repente para não bater atrás, e o carro ficou enviesado. Desci e, quando o vi, tão de perto, parado com as luzes piscando, fiquei perplexa. Era tarde da noite. Umas 11 pm. Estava bem escuro. E sempre tive medo de ficar sozinha numa rua escura.

Paulinha já havia se mandado rapidinho para procurar uma vaga, plugada no 220, comme d’habitude.  Corri até a porta do prédio e, ali, do lado de fora, me embananei com as chaves. Estava nervosa, com o coração na boca. 

Aquele carro vazio ficou ali emperrado, piscando suas luzes como quem não está entendendo nada. Não saía do lugar. Parecia mesmo ter parado no susto, como se o script tivesse mudado. Não havia ninguém dentro dele. Nenhum motorista, nenhum passageiro. 

Gentemm, parecia um carro-fantasma a me observar pelas costas. 

A porta do prédio era de vidro liso e transparente. Depois de me acertar com as chaves, entrei e me tranquei. Ali fiquei a observar os próximos acontecimentos, ansiosa para que minha filha (toda destemida) chegasse logo. Ela conhece os passos da cidade. Anda tranquilamente por lá. Eu? me senti completamente estrangeira. E era mesmo. A começar pela enrolação na língua 😛 na hora de travar uma conversa, solicitar uma informação, pagar uma conta, enfim, quando precisava me comunicar com desenvoltura. 

Voltando ao relato do episódio sinistro, de repente, um carro “normal”, com motorista, parou atrás, uma vez que, parado ali de soslaio, o carro-fantasma estava a obstruir a passagem. O cara de trás deu umas duas ou três buzinadas. O carro-fantasma entendeu a mensagem, deu uma rezinha, endireitou-se na rua e desceu calmamente como se nada tivesse acontecido.

Paulinha chegou. Subimos para o apto. Vida que segue.



Print de tela de um vídeo que fiz ao encontrar com um desses carros descendo, num dia lindo, a mais famosa rua de San Francisco: a Lombard Street, com 40 graus de inclinação em zigue-zague.






domingo, dezembro 31, 2023

to disappear


vou logo ali
tomar um chá
de sumiço

sair de cena
sumir do mapa
dar um tempo

sem rima
sem poesia
sem métrica

sem nada
.
.
.

[marília côrtes]

Lissy Elle's Photography

sábado, novembro 18, 2023

Episódios do day by day

Hoje tive que ir ao shopping Catuaí e resolvi almoçar por lá mesmo. Entrei num restaurante (Original Prime Grill) e, na hora em que fui escolher o que comer na mesa de self-service, encostei numa mesinha lateral que tinha uma caixa de acrílico grande, cheia de latas de refrigerantes, sucos, garrafas de água etc… todas mergulhadas numa água com bastante gelo. Apenas toquei nela com o quadril. E eis que, não sei por que cargas d’água, a mesinha escorregou e a caixa espatifou no chão, fazendo um barulhão danado. E, claro, a água espirrou pra todo lado me dando um banho gelado. Todos do restaurante me olharam assustados. Eu apenas sorri, pedi desculpas aos funcionários (que logo se organizaram para enxugar o chão) e, meio encabulada, disse: nossa! mal encostei nela (dando a entender que não entendi como aquilo havia ocorrido). E acrescentei: tudo bem. Até que o banho foi bom, dado o calor infernal. Me servi, sentei e almocei calmamente. Quando fui pagar a conta, a moça do caixa me disse: não, você não precisa pagar nada. Ora, como assim? perguntei. E ela: dado o acidente com a caixa, o gerente pede desculpas e seu almoço fica por conta da casa. Eu insisti: imagina, não foi nada, não precisa. Olhei para o gerente e ele: faço questão, assentindo com a cabeça e um sorriso no rosto. Vi que ele não arredaria o pé da gentileza. Achei fofo demais. 

domingo, novembro 12, 2023

Sarau Marginal



People, no dia 29/11/2023 vai rolar o II Sarau Marginal da UENP, a partir das 21:00 h, na Petiscaria Universitária, ao lado do CCHE e da Ágora. 
Quem foi no primeiro sabe que a vibe foi eletrizante. Então, bora lá beber poesia e arte.

O II Sarau Marginal faz parte da programação da XVI Jornada de Debates: Encontros com a Filosofia: Filosofia e Literatura: uma transa? & XIII Encontro de Iniciação Científica em Filosofia da UENP. Acesse https://jornadadedebates2023.blogspot.com/   e saiba mais sobre as conferências, minicursos, intervenções culturais, inscrições e tudo mais...

quinta-feira, outubro 26, 2023

Filosofia e Literatura: uma transa?

de 28/11/2023 a 01/12/2023


Pode-se dizer que a relação entre a filosofia e a literatura vem sendo debatida há séculos. A história da filosofia está repleta de reflexões em torno desse tema. Reflexões que remontam, ao menos, à Grécia Antiga, com Platão e Aristóteles, e atravessam seus mais de 2.500 anos. Em cada período de sua história — antiga, medieval, moderna e contemporânea — há, nessa galáxia, uma constelação de filósofos-literatos e muita filosofia escrita em gêneros literários distintos: ensaios, diálogos, epístolas, tragédias, confissões, tratados, investigações, aforismos, romances filosóficos, romances autobiográficos, contos e poemas. 

Afora esse aspecto em torno dos gêneros textuais, tanto filosóficos quanto literários, temos, de um lado, em seu sentido primordial, a filosofia em busca da sabedoria, do conhecimento e compreensão das questões mais fundamentais da existência, e, de outro, a literatura, como arte criativa, expressa por meio da linguagem e suas mais diversas narrativas. Ambas se expressam por meio da linguagem, das palavras, dos discursos. E produzem textos, isto é, são textualmente transmissíveis, cada qual a seu modo.

Nesse horizonte, o que se percebe é que, embora a filosofia e a literatura sejam disciplinas distintas, mostram-se, em seus variados gêneros, temas, aspectos, perspectivas e problemas, profundamente entrelaçadas. Dá-se, digamos assim, uma relação transacional entre elas, isto é, de transação, no sentido, entre outros, que Benedito Nunes deu a essa relação, em seu ensaio Poesia e filosofia: uma transa (2010), designando o termo poesia “no sentido estrito de composição verbal, vazada em gênero poético, [...], mas designando, também, no sentido lato, o elemento espiritual da arte [...] que acompanha o poético do romance, do conto e da ficção em geral”. Ali Nunes também esclarece o uso e significado do vocábulo ‘filosofia’, estendendo-o da noção de um “sistema e da elaboração reflexiva à denominação dos escritos, textos ou obras filosóficas que os formulam” (NUNES, 2010).

Dessa perspectiva, o próprio evento também se torna transacional, na medida em que propõe pontes com o curso de Letras, num momento em que as ciências, sobretudo as ciências humanas, encontram-se tão isoladas, e que as humanidades perdem espaço nos currículos da educação básica. Diante desse cenário, buscamos promover um debate acerca de um possível parentesco discursivo entre essas duas áreas das ciências humanas, bem como em torno de suas críticas, semelhanças, dificuldades, diferenças, limites, gêneros, temas e problemas.

Pergunta-se: em que sentido filosofia e literatura se aproximam? Dialogam? Com que olhares se veem? Em que sentido haveria uma transa entre elas? Em que aspectos se diferenciam? Para discutir essas questões, a filosofia sai em busca de um encontro (um date) com a literatura. Promove uma jornada de debates, propõe um diálogo, um flerte, um caso de amor. Ambas como espaço de humanidades, de expressões da vida humana. Quer especular o que literatos e literatas têm a dizer sobre a filosofia, e o que filósofos e filósofas têm a dizer sobre a literatura. Quer saber o que nossos alunos, professores, artistas, estudiosos, autodidatas, diletantes e curiosos pensam a respeito. 

Em um evento de somente uma tarde e quatro noites, isso seria beber apenas uma gota do vasto e profundo oceano das Humanidades — conceito mais do que relevante nesse universo, e que deve ser sempre trazido à baila, tanto no ambiente acadêmico quanto fora dele. 



Coordenação Geral

Marília Côrtes de Ferraz

Vice-coordenação

Renan Henrique Baggio


Comissão Organizadora

Professores

Alexander Gonçalves
Antônio Carlos de Souza
Constança Barahona
Gerson Vasconcelos Luz
Guilherme Müller Junior
Luana Talita da Cruz
Marília Côrtes de Ferraz
Renan Henrique Baggio


Acadêmicos

Giovana Andrea da Silva
Giovanna Maria Koba Vieira
Isabella D'Aquino Marcondes Noronha
Mário André de Oliveira
Olga Heroany Cassemiro
Yuri Claro de Moraes Campos Miranda

Comissão Científica

Alexander Gonçalves
Antônio Carlos de Souza
Constança Barahona
Gerson Vasconcelos Luz
Guilherme Müller Junior
Luana Talita da Cruz
Luciana Brito
Marília Côrtes de Ferraz
Renan Henrique Baggio


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terça-feira, agosto 15, 2023

Poesia e Filosofia


"Toda verdade pronunciada, conforme martelou Nietzsche, deixa atrás de si 'uma multidão movente de metáforas, de metonímias, de antropomorfismos, em suma, uma soma de relações humanas poética e retoricamente realçadas, transpostas, ornadas…'" 

(NUNES, Benedito. Poesia e filosofia: uma transa. In: Ensaios Filosóficos. São Paulo: Martins Fontes, 2010).



The passion of creation | Leonid Pasternak | 1892


sábado, julho 29, 2023

Inteligência Artificial x Estultice Natural

 Uma tal inteligência artificial anda me ligando. Quando ela diz:

- olá, eu sou a inteligência artificial da Vivo e tenho pra você blá blá blá... já desligo na cara dela. Recuso-me a falar com inteligências artificiais e suas vozes robóticas (embora tenha, às vezes, de recorrer a elas).

Esses sistemas de vendas (Vivo e afins) e/ou tentativas de resolver problemas técnicos (Net Claro e afins) por meio daquelas gravações intermináveis, nas quais a gente nunca consegue falar com um ser humano com o mínimo de inteligência natural, esses sistemas, eu dizia, deveriam ser chamados de sistemas de estultices naturais. 

Em geral, os serviços são terceirizados por empresas que mal se comunicam. Para cada assunto, depois de repetidas tentativas frustradas e muito tempo perdido nas malditas gravações, damos de cara com um atendente ou um técnico diferente, que só entende de uma parte do sistema operacional da porra toda. E o problema não se resolve. 

Há semanas encontro-me mobilizada em busca de uma solução para meu problema com os canais da Net Claro TV. Várias tentativas, horas e horas de conversas truncadas, técnicos que vão e voltam em sua casa sem que o problema se resolva, outros que não vêm, deixando-nos em esperas vãs,  porque os sistemas não se comunicaram entre eles e a tal visita técnica não ficou devidamente marcada, enfim, ao que tudo indica, a coisa não tem fim...




domingo, maio 14, 2023

Poema antigo


Está tudo planejado:
se amanhã o dia for cinzento,
se houver chuva
se houver vento,
ou se eu estiver cansado
dessa antiga melancolia
cinza fria
sobre as coisas
conhecidas pela casa
a mesa posta
e gasta
está tudo planejado
apago as luzes, no escuro
e abro o gás
de-fi-ni-ti-va-men-te
ou então
visto minhas calças vermelhas
e procuro uma festa
onde possa dançar rock
até cair

..................................................

[Caio Fernando Abreu | Revista Bravo | Fev 2006]




domingo, abril 23, 2023

Vazio



A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente as casas,
Os bondes, os automóveis, as pessoas,
Os fios telegráficos estendidos,
No céu os anúncios luminosos.

A poesia fugiu do mundo.
O amor fugiu do mundo —
Restam somente os homens,
Pequeninos, apressados, egoístas e inúteis.
Resta a vida que é preciso viver.
Resta a volúpia que é preciso matar.
Resta a necessidade de poesia, que é preciso contentar.

.
.
.

[In: SCHMIDT, Augusto Frederico | Poesias completas | 1928/1955 | Rio de Janeiro | J. Olympio | 1956]

domingo, março 26, 2023

no need


não precisamos
tagarelar sobre
o óbvio.
exaurir sentidos.
exclamar pequenos
momentos.
gastar sentimentos.
podemos ser elegantes.
apenas instantes.
nem precisamos falar
desses dissabores.
desses segredos.
dos nossos amores.
só o silêncio e o vento
falam alguma coisa
noite adentro.

..............................................

[Iara Rossini Lessa (1965 - 2021)]

amiga que partiu,
assim,
de repente,
sem se despedir.

talvez por saber que,
na verdade, 
sua vida se esvaía,
mas ela permaneceria.

Robert Van Vorst Sewell, Nymph [1887]


sábado, março 11, 2023

Freud-se II

 "Aí estão os elementos, que parecem zombar de toda coerção humana; a terra, que treme, se fende e soterra tudo que é humano e obra do homem; a água, que, em rebelião, inunda e afoga tudo; a tempestade, que sopra tudo para longe; aí estão as doenças, que apenas há pouco tempo reconhecemos como sendo ataques de outros seres vivos; por fim, o doloroso enigma da morte, para o qual até agora não se descobriu nenhum remédio e provavelmente nunca se descubra. Com tais forças, a natureza se subleva contra nós, imponente, cruel e implacável, colocando-nos outra vez diante dos olhos a nossa fraqueza e o nosso desamparo, de que pensávamos ter escapado graças ao trabalho da cultura." 

[Sigmund Freud | In: O Futuro de uma Ilusão]






domingo, fevereiro 26, 2023

conversa de whats

outro dia um amigo poeta, daqueles que a gente mal conhece (porque encontra pouco), mas sente uma atração antiga, escondida nos silêncios e trocas de olhares, me mandou um whats, assim, do nada (como só deus poderia fazê-lo):

olá...
como você está?
como tem passado?

(e eu, pega de surpresa, respondi):

enlouquecida,
frisante,
cheia de vida,
cheia de morte,
enrolada em muitas vírgulas,
e trabalhando pra caramba.
(pergunta complexa essa... rs).
e tu?

vinda de você, não poderia supor outra resposta que não fosse essa: 
profunda
cheia de graça
e de poesia.

eu me sinto como você: 
esse elemento da vida, 
que é bela 
e repleta de desconfortos...


moi-même, toute décoiffée

sexta-feira, fevereiro 10, 2023

Cogito

eu sou como eu sou
pronome
pessoal intransferível
do homem que iniciei
na medida do impossível

eu sou como eu sou
agora
sem grandes segredos dantes
sem novos secretos dentes
nesta hora

eu sou como eu sou
presente
desferrolhado indecente
feito um pedaço de mim

eu sou como eu sou
vidente
e vivo tranquilamente
todas as horas do fim.

[Torquato Neto | Cogito | In: Melhores poemas]

segunda-feira, janeiro 30, 2023

Plenitude

Estive vasculhando algumas velhas anotações e encontrei a seguinte passagem: 

"só aquele que permanece inteiramente ele próprio pode, com o tempo, permanecer objeto do amor, porque só ele é capaz de simbolizar para o outro a vida, ser sentido como tal. Assim, nada há de mais inepto em amor do que se adaptar um ao outro, de se polir um contra o outro, e todo esse sistema interminável de concessões mútuas... e, quanto mais os seres chegam ao extremo do refinamento, tanto mais é funesto de se enxertar um sobre o outro, em nome do amor, de se transformar em um parasita do outro, quando cada um deles deve se enraizar robustamente em um solo particular, a fim de se tornar todo um mundo para o outro" (Lou Andreas-Salomé).

Não sei quando a anotei, nem de onde a extraí. Tenho duas biografias de Lou Salomé. Uma delas, li e grifei inteirinha (a que tem um prefácio da Anaïs Nin), cujo título é LOU, minha irmã, minha esposa, de H. F. Peters (Jorge Zahar). A outra, de Dorian Astor (L&PM Pocket), li e grifei boa parte, mas não a li inteira ainda.

Fiz uma rápida pesquisa e é certo que tal passagem se encontra aos borbotões na internet, todas sem referências pontuais, o que me faz desconfiar se a passagem é dela mesma, se a tradução é boa ("funesto de se enxertar um sobre o outro?" não soa bem, há termos melhores para designar o que se quer dizer), ou se se trata de mais uma daquelas imposturas que encontramos pelas nets. Mas isso, aqui, não tem importância. Importa o que a passagem diz, e o porquê desse trecho ter me chamado a atenção (provavelmente há uns 10 ou 15 anos). 

Creio que desejava alcançar esse estado de vida, pois, naquele tempo, ao amar louca e apaixonadamente, não me sentia propriamente "eu mesma", ao menos em toda a minha inteireza, tal como me sinto hoje: plena, sem necessidade de me adaptar a ninguém, ou de fazer concessões que possam trair, em nome do amor, meus próprios princípios, opiniões e/ou sentimentos. Hoje, posso dizer que me encontro enraizada em meu solo particular, robusto e independente (ainda que não tenha garantia de que será sempre assim). Hoje, sou todo um mundo, seja apenas para mim mesma, ou mesmo para um outro amor, além do meu próprio. E isso não tem preço. Tem valor, mas não tem preço, se é que vocês me entendem...



photo by
Ryan Widger 
The Conversation | 2006

sábado, janeiro 07, 2023

O seu santo nome


Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
..........................

Carlos Drummond de Andrade | 'O Seu Santo Nome' | In: Corpo | Editora Record | Rio de Janeiro | 1984

Lying woman 1917 - Egon Schiele

sexta-feira, dezembro 30, 2022

Tecido de horrores

"É impossível passar os olhos por qualquer jornal, de qualquer dia, mês ou ano, sem descobrir em todas as linhas os traços mais pavorosos da perversidade humana [...] Qualquer jornal, da primeira à última linha, nada mais é do que um tecido de horrores. Guerras, crimes, roubos, linchamentos, torturas, as façanhas malignas dos príncipes, das nações, de indivíduos particulares; uma orgia de atrocidade universal. E é com este aperitivo abominável que o homem civilizado diariamente rega o seu repasto matinal".

Charles Baudelaire apud Susan Sontag

In: Diante da Dor dos Outros


Art by Walter Crane | Pandora (1885)


sábado, dezembro 24, 2022

Artigos de luxo

"Temos de reaprender o que é satisfação. Estamos tão desorientados, que achamos que satisfazer-se é ir às compras. Um luxo verdadeiro é um encontro humano, um momento de silêncio diante da criação, fruir de uma obra de arte ou de um trabalho bem-feito. Satisfações verdadeiras são aquelas que embargam a alma de gratidão e nos predispõem ao amor."

.................................................................

"... nós nos salvaremos pelos afetos. O mundo nada pode contra um homem que canta na miséria."

[Ernesto Sabato | A Resistência]

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[art by William-Adolphe Bouguereau | Pietà | 1876]

domingo, dezembro 04, 2022

In love

O amor,
Minha gente,
É um poema bem curtinho,
Que na sua incomensurável forma de ser,
Nos fode,
Sem a gente perceber.


(Nelson Alexandre)


By Lucien Waléry [Nude - detail 1920]

sábado, outubro 29, 2022

Grito rubro que pulsa sob minha pele


Mesmo com a garganta
Perfurada pela lâmina do silêncio
O sangue pulsa vermelho

Mesmo que o carrasco
Arranque a língua insubmissa
O sangue grita vermelho

Mesmo sob a face do torturador
O corpo feito em pedaços
O sangue resiste vermelho

Mesmo com os olhos
Vagando na noite sem fim
O sangue brilha vermelho

Mesmo com rumores de ataques
Coturnos, bombas e tanques
O sangue da luta é vermelho

Mesmo com a corda no pescoço
Uma multidão pedindo nossas cabeças
O sangue permanece de pé, vermelho

Mesmo que os lábios toquem a lona
E sintam o gosto áspero da queda
O sangue levantará do chão, vermelho.


(Evilásio Júnior)


The Tomb of the Wrestlers, 1960 by Rene Magritte


sábado, setembro 24, 2022

Les clés

 


"Minha querida, não há nem muros nem jardins secretos para você. Você tem as chaves para todas as portas."

.........................

Albert Camus em carta a Maria Casarès, 12 agosto 1948, in Correspondance: 1944-1959. Paris: Gallimard, 2017. 

sábado, setembro 10, 2022

Tríptico II

I

[...]



II

Não sei como dizer-te que minha voz te procura
e a atenção começa a florir, quando sucede a noite
esplêndida e vasta.
Não sei o que dizer, quando longamente teus pulsos
se enchem de um brilho precioso
e estremeces como um pensamento chegado. Quando,
iniciado o campo, o centeio imaturo ondula tocado
pelo pressentir de um tempo distante,
e na terra crescida os homens entoam a vindima
— eu não sei como dizer-te que cem ideias,
dentro de mim, te procuram.

Quando as folhas da melancolia arrefecem com astros
ao lado do espaço
e o coração é uma semente inventada
em seu escuro fundo e em seu turbilhão de um dia,
tu arrebatas os caminhos da minha solidão
como se toda a casa ardesse pousada na noite.
— E então não sei o que dizer
junto à taça de pedra do teu tão jovem silêncio.
Quando as crianças acordam nas luas espantadas
que às vezes se despenham no meio do tempo
— não sei como dizer-te que a pureza,
dentro de mim, te procura.

Durante a primavera inteira aprendo
os trevos, a água sobrenatural, o leve e abstracto
correr do espaço —
e penso que vou dizer algo cheio de razão,
mas quando a sombra cai da curva sôfrega
dos meus lábios, sinto que me faltam
um girassol, uma pedra, uma ave — qualquer
coisa extraordinária.
Porque não sei como dizer-te sem milagres
que dentro de mim é o sol, o fruto,
a criança, a água, o deus, o leite, a mãe,
o amor,
que te procuram.

III

[...]


[Herberto Hélder, Tríptico II | in: A Colher na Boca | 1961]



quarta-feira, agosto 31, 2022

Tempo

"... queria te falar, te falar da morte de Ivan Illich, da solidão desse homem, desses nadas do dia a dia que vão consumindo a melhor parte de nós, queria te falar do fardo quando envelhecemos, do desaparecimento, dessa coisa que não existe mas é crua, é viva, o Tempo."

***

Hilda Hilst | In: "A obscena senhora D" | São Paulo : Globo | 1a edição | 2001




sexta-feira, agosto 26, 2022

Hope


Horas, horas sem fim,
pesadas, fundas,
esperarei por ti
até que todas as coisas sejam mudas.

Até que uma pedra irrompa
e floresça.
Até que um pássaro me saia da garganta
e no silêncio desapareça.

.......................................
Eugénio de Andrade




quinta-feira, agosto 18, 2022

Chuvosa




chore
chuva
chore seu pranto cinzento
estenda seu manto frio e úmido
sobre a cidade 

chore
chuva
lave bem suas ruas 
seus corpos
corações e calçadas

chore
chuva
derrame suas mágoas geladas
caia torrencialmente
e leve toda miséria 
dessa pobre humanidade.



...........................
marilia côrtes
agosto/2022

quinta-feira, março 31, 2022

Bom dia, deem uma viajadinha no tempo. Remontem aos anos finais do século XVIII — contexto da Revolução Francesa — e vejam o que essa mulher, Olympe de Gouges, ousou declarar em linhas que, dois anos mais tarde, entre outras, custaram-lhe a cabeça.


 

“Homem, você é capaz de ser justo? É uma mulher que lhe faz a pergunta — você não a despojará desse direito, pelo menos. Diga-me, quem lhe deu o poder soberano para oprimir meu sexo? A sua força? Os seus talentos? Observe o criador em sua sabedoria, percorra a natureza em toda a sua grandeza, da qual você parece querer aproximar-se, e dê-me, se você ousa, o exemplo desse império tirânico (n.1).

Retorne aos animais, consulte os elementos, estude os vegetais, enfim, olhe todas as modificações da matéria organizada, e renda-se à evidência, quando lhe ofereço os meios de fazê-lo. Procure, pesquise e distinga, se você puder, os sexos na administração da natureza. Em toda parte, você encontrará os sexos confundidos, em toda parte eles cooperam com um conjunto harmonioso para essa obra prima imortal.

Somente o homem costurou para si um princípio dessa exceção. Estranho, cego, inflado de ciências e degenerado, neste século de luzes e de sagacidade, na ignorância mais abjeta, ele quer comandar como déspota sobre um sexo que recebeu todas as faculdades intelectuais. Ele [este sexo] pretende usufruir da Revolução e reivindicar seus direitos à igualdade, para nada mais dizer.”

(N.1. De Paris ao Peru, do Japão ao Senegal, o homem é, a meu ver, o mais tolo animal (N.A.)).

[Acima, texto de abertura à Declaração dos direitos da mulher e da cidadã, 1791].

Olympe de Gouges (1748-1793), dramaturga, ativista política, abolicionista, autora da Declaração dos direitos da mulher e da cidadã (1791), foi acusada de traição e guilhotinada em 03 de novembro de 1793 “por haver esquecido as virtudes que convêm a seu sexo e por haver se intrometido nos assuntos da República” — um destino também compartilhado pela rainha Maria Antonieta da Áustria, esposa de Luís XVI. 

Tal Declaração, dedicada à rainha Maria Antonieta, é composta por um preâmbulo, dezessete artigos, um epílogo e mais algumas linhas sobre a “Forma do contrato social entre o homem e a mulher.” Encontra-se traduzida in: ROVERE, Maxime (Org.). Arqueofeminismo: Mulheres Filósofas e Filósofos Feministas. Séculos XVII e XVIII. São Paulo: n-1 Edições, 2019.

Vale muito a leitura!

segunda-feira, março 21, 2022

O último brinde

Bebo à casa arruinada,
às dores da minha vida,
à solidão lado a lado
e a ti também eu bebo –

aos lábios que me mentiram,
ao frio mortal nos olhos,
ao mundo rude e brutal
e a Deus que não nos salvou
.


..........................................
[ А́нна Ахма́това | 1889-1966 | in: “Anna Akhmátova: antologia poética” | seleção, tradução, apresentação e notas de Lauro Machado Coelho | Porto Alegre | L&PM Pocket | 2009 ]

Ilustración | Nicoletta Tomas Caravia | Espagne

http://www.nicoletta.info/

sábado, fevereiro 26, 2022

Louca, mas nem tanto...


Dia desses achei que estava ficando louca. Fui até a cozinha beber água, abri a geladeira e, sem perceber, peguei uma coca. Em seguida, fui buscar um copo. No meio do caminho, fumando um cigarrinho, vi um cinzeiro sobre a mesa. Em vez de pousar o cigarro no cinzeiro, ou simplesmente bater a cinza, abri a coca e quaase a despejei no cinzeiro. Percebi, então, o quanto estava ligada no automático. Bom, ao menos percebi. Pior se tivesse mesmo despejado a coca no cinzeiro e bebido. Ora bolas, ao que tudo indica, concluí, restava ainda um pouco de sanidade na minha cachola.

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imagem: collage surreal space art

quinta-feira, fevereiro 10, 2022

A sós sob o sol

Ontem encontrei em meio à praia quase deserta alguns abutres que voavam numa aerodinâmica belíssima em busca de alimento. Abutres são necrófagos, se alimentam de carniça. Por isso, são muito malvistos. Mas ontem fiquei a observar a beleza do voo dos abutres. Havia alguns poucos peixes mortos na areia. Desses que as ondas trazem naturalmente. Céu azul, sol radiante, água morna, vento fresco. Tudo muito calmo, sincronizado e tranquilo. 

Os abutres voavam lá no alto, organizados num grande círculo. Pareciam inspecionar a área. Faziam uma espécie de ronda. A praia, cuja extensão de 10 km é também muito larga, estava simplesmente paradisíaca. Eles começaram a descer de mansinho, voando num movimento espiral, lento, observando o entorno. E foram se aproximando da areia, pousando de leve, fechando as asas, ao lado dos peixes mortos. 

Nunca havia visto tantos abutres juntos. E de tão perto. Como são grandes e pretos! De asas abertas ficam enormes. Eram cinco. Senti um pouco de medo de que viessem pra cima de mim. Mas eles estavam calmos. Não se sentiram ameaçados pela minha presença, pelo meu olhar. Perdi o fôlego. Meu coração descompassou. Quase saltou do peito. Estupefata, respirei fundo, controlei o medo, e deixei que a natureza seguisse seu curso habitual e uniforme, sem interferir na cena daquele belíssimo fenômeno natural da cadeia alimentar. Fiquei na posição de observadora passiva, paralisada. 

Não pude deixar de me perguntar: o que seria da carniça sem os abutres ou quaisquer outros animais necrófagos para comê-la? Toda matéria composta está sujeita à corrupção, à decomposição e à morte. Inclusive esse meu olhar fotográfico, que armazena a cena, e guarda um poema, em minha estética e melancólica memória.

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[marília côrtes | ilha do mel | janeiro de 2020].



sábado, janeiro 29, 2022

Triiimmm

Toca o interfone:

Marília? Chegou uma encomenda pra você... 

Desci achando se tratar daquele tênis que ganhei de presente das minhas filhas. Pelo tamanho da caixinha não poderia ser. O peso? leve, muito leve. Olhei o remetente: era do meu amigo Miguel. O sorriso mordeu minhas orelhas. 

Ah... que surpresa! O que seria? Não esperava. Não era meu níver, nem natal, nem nenhuma data comemorativa. Eita! Deve ser uma das peripécias delicadas e criativas do Miguelito. Um mimo para quem tinha acabado de mudar de apartamento. 

Subi apressada, louca de curiosidade, com a caixinha nas mãos. Abri o pacote e encontrei algo envolto em plástico bolha. Inferi que era um objeto sensível, provavelmente de vidro, quebrável. Desembrulhei com cuidado e, eis senão quando, encontrei um copinho pink estampado com a Penélope Charmosa a viajar loucamente pelo mundo afora, numa de suas corridas malucas. 

Quando liguei pra agradecer o presente, Miguelito me contou que ao vê-lo na lojinha pensou: é a cara da Marília. Confesso que também achei rs.

De imediato me lembrei que minha mãe havia dado o nome de Penélope Charmosa à nossa Caravan 76. Miguelito não sabia disso. Era uma Caravan cor de café com leite, 3 marchas, banco inteiro na frente, bem espaçoso, bom pra namorar. 

Meu pai comprou a Penélope zero km, em 1976, e ela ficou em nossa família por 26 anos. Destes, por 6 mais ou menos ela foi só minha. Ganhei de presente no início de 1997. Era bem conhecida. Ao que tudo indicava, na época, só circulavam três daquela cor na cidade. E a nossa nunca passava despercebida. No final de 2002 troquei-a por um Passat prata, mais novo, mas bem usadinho.

Além de Penélope Charmosa, eu a chamava também de Sedenta, já que era difícil satisfazer a sede dela por gasolina (que já custava os olhos da cara). A Sedenta rodava de 5 a 6 km por litro. Era mesmo insaciável. De vez em quando a marcha encavalava e, daí, eu tinha que parar onde estivesse, descer, atrapalhar o trânsito, abrir aquele capô imenso e pesado, e desencavalá-la. Mas essa já é outra história.

Quanto ao copinho, é meu xodó. Um charme!