domingo, dezembro 31, 2017

Storm


Sem aviso
o vento vira
uma página da vida.


[Helena Kolody | Infinita Sinfonia | Curitiba | Inventa 2014 | p.23]


Storm
by Lucien Levy-Dhurmer




quinta-feira, dezembro 28, 2017

Abismal




Meus olhos estão olhando
de muito longe, de muito longe,
das infinitas distâncias
dos abismos interiores.
Meus olhos estão a olhar do extremo longínquo
para você que está diante de mim.
Se eu estendesse a mão, tocaria sua face.
Mas os cinco dedos pendem como um lírio murcho
ao longo do vestido.

Aqui tudo é leve, silencioso, indefinido, 
imóvel.
Não tenho mais limites.
Tornei-me fluida como o ar.
Seus olhos têm apelos magnéticos,
mas estou abismada
em profundezas infinitas.



[Helena Kolody | Infinita Sinfonia | Curitiba | Inventa 2014 | p.133]


terça-feira, dezembro 26, 2017

Resting


by Santiago Carbonell


"Deitava o corpo como em uma pintura clássica, de modo a acentuar os tremendos altos e baixos das curvas. Deitava-se de lado com a cabeça repousando no braço, a carne de tonalidades acobreadas distendendo-se de vez em quando, como se padecendo sob a dilatação erótica de carícias feitas por uma mão invisível."

[ Anaïs Nin | Delta deVênus | Tradução de Lúcia Brito | Porto Alegre | L&PM Pocket | p.192 ]

quinta-feira, dezembro 21, 2017

Divagação

-  Vou passar um hidratante no corpo.

Sobre a pia encontram-se três embalagens em cores e designs mais ou menos semelhantes: o hidratante, um démaquillant e um shampooNum gesto mecânico, absorta, pego o démaquillant (líquido como água) e derramo-o nas mãos como se fosse o hidratante. Derramo quase tudo. Espanto-me. Percebo imediatamente: 

- Caraca!!! Acho que estou ficando louca!!!

Insisto em passar o creme. Repito o gesto. Divago novamente. Pego o shampoo e, mecanicamente, derramo-o nas mãos. Percebo o engano com um segundo a menos de imediatez, dada a consistência cremosa mais semelhante ao hidratante.

- My god! Não estou ficando louca! Já estou louca! 

Insisto novamente. Presto bastante atenção. Terceira tentativa. Pego o hidratante e, enfim, espalho-o pelo corpo...

- Ahhh... algum resto de sanidade deve permanecer em mim! 


Haze All Clouded up My Mind 
by Marisa S. White


sábado, dezembro 02, 2017

Truísmos




Em tempos de facebook e demais redes sociais o velho ditado "diga-me com quem andas que te direi quem és" permaneceria de pé? Não, diria um filósofo qualquer, na verdade, ele nunca esteve infalivelmente de pé, pois não se segue necessariamente (ainda que as pessoas com as quais nos relacionamos possam, talvez, dizer algo do que somos). Mas vários fatores (leia-se causas ou motivos) podem concorrer para a determinação dos laços e associações que os seres humanos estabelecem. Em tempos de facebook e demais redes sociais, essa variedade aumentou sobremaneira (a distância, a superficialidade e a obscuridade também).



[art by Shin Kwangho ]


domingo, novembro 26, 2017

Alfinetada nietzscheana


Contra a soberba

Não se encha de ar: senão basta
Uma alfinetada para o estourar.



Para quem entende a língua alemã (o que não é o meu caso):

Gegen die Hoffahrt

Blas dich nicht auf: sonst bringet dich
Zum Platzen schon kleiner Stich.

[vich rs]

[Nietzsche | A gaia ciência | "Brincadeira, astúcia e vingança": Prelúdio em rimas alemãs | Tradução de Paulo César de Souza | São Paulo | Cia das Letras, 2001, p. 27]

segunda-feira, novembro 20, 2017

Perambulando


"Ele despertou suando, desarrumado, perambulou por um momento no apartamento. Depois acendeu um cigarro e sentou, com a cabeça vazia, olhou as dobras de sua calça amassada. Em sua boca havia o amargo do sono e do cigarro. Em torno dele, o dia lânguido e mole patinhava como na lama."




Albert Camus | A desmedida na medida | Cadernos 1937-1939 | Tradução de Raphael Araújo e Samara Geske | São Paulo | Hedra | 2014 | p.11-12

sábado, novembro 04, 2017

Entre a solidão e o convívio social


David Hume [1711-1776], na conclusão do Livro 1 do Tratado da Natureza Humana (T) encontra-se num estado que tenho (quase) certeza de que, se não todos, ao menos a maior parte daqueles que estudam filosofia já se encontraram num dado momento de seus estudos, numa certa hora de seus dias ou de suas noites.


Hume se vê assustado, confuso, e numa solidão desesperadora diante das reflexões que empreendeu ao escrever e concluir o livro I do Tratado intitulado Do Entendimento


Logo no § 1 ele confessa, um tanto melancólico e desesperado, além de assustado e confuso, como se sente diante da viagem que empreendera. Salta, ao menos aos meus olhos, que Hume é, aqui, não apenas um filósofo, mas também um literato muito poético...



“Sinto-me como um homem que, após encalhar em vários bancos de areia, e escapar por muito pouco do naufrágio ao navegar por um pequeno esteiro, ainda tem a temeridade de fazer-se ao mar na mesma embarcação avariada e maltratada pelas intempéries, levando sua ambição a tal ponto que pensa em cruzar o globo terrestre em circunstâncias tão desfavoráveis. A memória de meus erros e perplexidades passados me faz desconfiar do futuro. A condição desoladora, a fraqueza e desordem das faculdades que sou obrigado a empregar em minhas investigações, aumentam minhas apreensões. E a impossibilidade de melhorar ou corrigir essas faculdades me reduz quase ao desespero, fazendo-me preferir perecer sobre o rochedo estéril em que ora me encontro a me aventurar por esse ilimitado oceano que se perde na imensidão. Essa súbita visão do perigo a que estou exposto me enche de melancolia; e como costumamos ceder a esta paixão mais que a todas as outras, não posso me impedir de alimentar meu desespero com todas essas reflexões desalentadoras, que o presente tema me proporciona em tamanha abundância” (T 1.4.7 §1).


Caminhando do prazer à dor, Hume hesita entre a inclinação natural a buscar diversões e companhias e a inclinação natural a devanear solitariamente.

“A  visão intensa dessas variadas contradições e imperfeições da razão humana me afetou de tal maneira, e inflamou minha mente a tal ponto, que estou prestes a rejeitar toda crença e raciocínio, e não consigo considerar uma só opinião como mais provável ou verossímil que as outras. Onde estou, o que sou? De que causas derivo minha existência, e a quem devo temer? Que seres me cercam? Sobre quem exerço influência, e quem exerce influência sobre mim? Todas essas questões me confundem, e começo a me imaginar na condição mais deplorável, envolvido pela mais profunda escuridão, e inteiramente privado do uso de meus membros e faculdades (T 1.4.7 §8). Felizmente ocorre que, sendo a razão incapaz de dissipar essas nuvens, a própria natureza o faz, e me cura dessa melancolia e delírio filosóficos, tornando mais branda essa inclinação da mente, ou então fornecendo-me alguma distração e alguma impressão sensível mais vívida, que apagam todas essas quimeras. Janto, jogo uma partida de gamão, converso e me alegro com meus amigos; após três ou quatro horas de diversão. Quando quero retomar essas especulações, elas me parecem tão frias, forçadas e ridículas, que não me sinto mais disposto a levá-las adiante” (T 1.4.7.§9).

Nesse momento, Hume se encontra “absoluta e necessariamente determinado a viver, a falar e a agir como as outras pessoas, nos assuntos da vida corrente”, e se diz pronto a lançar ao fogo todos os seus livros e papéis, bem como disposto a nunca mais renunciar “aos prazeres da vida em benefício do raciocínio e da filosofia” (T 1.4.7.§10).

Em seguida, ele pergunta a si mesmo: “... seguir-se-á que devo lutar contra a corrente da natureza, que me conduz à indolência e ao prazer? Que devo me isolar, em alguma medida, do comércio e da sociedade dos outros homens? E que tenho de torturar meu cérebro com sutilezas e sofisticarias, no momento mesmo em que não sou capaz de me convencer da razoabilidade de uma aplicação tão penosa, nem tenho qualquer perspectiva tolerável de, por seu intermédio, chegar à verdade e à certeza (T 1.4.7.§10)?

E então? Deverá Hume continuar “a vagar em meio a tão lúgubres solidões e atravessar mares tão bravios quanto os que até agora” (T 1.4.7.§10) ele encontrou? 


E eu? Deverei...?

[HUME, David. Tratado da Natureza Humana: uma tentativa de introduzir o método experimental de raciocínio nos assuntos morais. Tradução de Débora Danowski. — São Paulo: UNESP: Imprensa Oficial do Estado, 2001].

quarta-feira, novembro 01, 2017

Nos Jardins de Epicuro


No ensaio O Epicurista  ─ o primeiro dos quatro Ensaios considerados Sobre a Felicidade ─ Hume é admiravelmente poético, o que faz com que eu, por ora, não queira promover uma discussão filosófica sobre a possibilidade de Hume  ter cometido um equívoco ao interpretar a ética de Epicuro, “quase sempre confundida com o gozo imoderado dos prazeres mundanos, como se não se distinguisse do hedonismo puro e simples” (Epicuro. Carta sobre a Felicidade (A Meneceu). Introd. p.10). Nada disso!

No fundo, confesso que estou com a maior preguiça de discutir qualquer coisa, e também de explicar por que Hume parece ter compreendido mal a doutrina epicurista, ainda que em sua defesa se possa argumentar que, tal como podemos encontrar numa nota do próprio Hume a'O Epicurista, “a intenção deste e dos três ensaios seguintes (O Estoico – ou o homem de ação e virtude; O Platônico – ou o homem de contemplação e devoção filosófica; e O Cético), não é tanto explicar acuradamente as opiniões das antigas seitas (sects) filosóficas, quanto interpretar as opiniões das seitas que se formam naturalmente no mundo, ensejando diferentes ideias sobre a vida humana e a felicidade.” 

Hume é claro em dizer que deu “a cada uma delas o nome da seita filosófica com a qual elas apresentam maior afinidade” (nota p.255). Creio que tal observação permite-nos eximir Hume do compromisso filosófico de apresentar fielmente a doutrina de Epicuro. E antes que eu comece a me alongar demais nesse assunto, quero deixar claro que meu interesse, ao publicar esse pequeno excerto do ensaio, é o de apenas louvar a beleza da passagem citada (que versa sobre a felicidade, o amor, o prazer, as paixões, a fugacidade da vida e a inexorabilidade da morte), e o talento literário de David Hume. Todo o ensaio é belíssimo, mas a passagem abaixo é uma daquelas que enleva nossos corações e eleva-nos às alturas.


O Epicurista
Ou o homem da elegância e do prazer

“Ainda não avancei muito por entre as sombras do espesso bosque, que espalham ao meu redor uma dupla noite, quando, quase logo, creio avistar na penumbra a deslumbrante Célia, a amada dos meus desejos (the mistress of my wishes), que vagueia impaciente pelo bosque e, antecipando-se à hora prevista, censura silenciosamente os meus passos tardios. Mas a alegria que ela recebe de minha presença é minha melhor desculpa, e, dissipando qualquer pensamento de ansiedade ou raiva, não deixa lugar para nada a não ser alegria e arrebatamento mútuos. Com que palavras, minha bela, poderei exprimir minha ternura ou descrever as emoções que agora aquecem o meu peito em chamas? As palavras são fracas demais para descrever meu amor; e, se por desgraça, não sentires dentro de ti a mesma chama, em vão me esforçarei para transmitir-te sua justa concepção. Mas cada uma de tuas palavras, cada um de teus gestos é suficiente para me tirar esta dúvida; e, ao mesmo tempo em que eles exprimem a tua paixão, servem também para incendiar a minha. Como são adoráveis esta escuridão, este silêncio, esta solidão! Nenhum objeto vem perturbar a alma arrebatada. O pensamento, os sentidos, tudo está inteiramente repleto de nossa mútua felicidade, que se apodera completamente do espírito e produz uma satisfação que os iludidos mortais inutilmente procuram nos outros prazeres.”

“Mas por que o teu peito estremece com esses suspiros, e por que tuas luminosas faces estão banhadas de lágrimas? Por que distrair teu coração com uma ansiedade tão tola? Por que me perguntas tantas vezes Quanto tempo vai durar o meu amor? Ah, minha Célia, posso eu resolver esta questão? Sei eu quanto tempo minha vida vai durar? Mas também isto perturba teu terno coração? Por acaso a imagem de nossa frágil mortalidade está em ti constantemente presente, para desanimar-te nas horas mais felizes e envenenar até mesmo aquelas alegrias inspiradas pelo amor? Considere que, se a vida é frágil e a juventude é transitória, temos mais motivos ainda para desfrutar bem do momento presente, sem nada perder de uma existência assim tão perecível. Apenas mais um momento e ela não existirá mais. Seremos como se jamais tivéssemos sido. Nenhuma recordação de nós restará sobre a face da Terra, e nem as sombras fabulosas do além poderão nos dar guarida. Nossa estéril ansiedade, nossos vãos projetos, nossas incertas especulações, tudo será engolido e perdido. Nossas dúvidas atuais sobre a causa original de todas as coisas, oh! jamais serão dissipadas. Podemos estar certos apenas de uma única coisa ─ é que se existe um espírito supremo que preside nossos destinos, deve lhe agradar ver-nos realizar a finalidade de nosso ser, gozando aquele prazer para o qual fomos criados. Que esta reflexão dê repouso para teus ansiosos pensamentos, mas sem tornar tuas alegrias demasiado sérias a ponto de te fixares nelas para sempre. Basta ter conhecido uma vez esta filosofia para dar livre curso ao amor e à alegria, e dissipar todos os escrúpulos de uma superstição tola. Porém, minha bela, ao mesmo tempo em que a juventude e a paixão satisfazem nossos ávidos desejos, é preciso encontrar assuntos mais alegres para misturar às nossas amorosas carícias” 

(Hume, David. Essays Moral, Political, and Literary. Liberty Fund, 1987, p.144-145).


Imagens: William-Adolphe Bouguereau (1825-1905); Eleanor Fortescue-Brickdale (1872-1945)

quinta-feira, outubro 26, 2017

Minha divina e amada filosofia


Quem se debruçar sobre a filosofia encontrará, em meio às suas diversas áreas e concepções, aquilo que chamamos de filosofia moral. E quem buscar esclarecimentos sobre o estoicismo deverá certamente um dia encontrar no meio de seu caminho uma pedra muito preciosa: Marco Túlio Cícero (106-43 a.C.): advogado, questor, cônsul, filósofo político, senador, orador e escritor de primeira grandeza.

Porém, não se pode dizer que Cícero foi propriamente um estoico, pois buscou conciliar diferentes escolas filosóficas, tais como, entre outras, a platônica e a aristotélica, na tentativa de haurir uma moral prática que correspondesse às exigências da cidade (cf. A Virtude e a Felicidade, nota biográfica feita pelo tradutor, p.VII). Cícero era um homem ilustre não só pela sua posição social e política, eloquência e estilo, como também pela sua habilidade dialética e qualidades literárias.

Segundo Carlos Ancêde Nougué, tradutor de ao menos duas das obras ciceronianas abertas aqui ao meu lado, poder-se-ia chamá-lo de “um eclético neo-acadêmico, ou um platônico com elementos céticos e estoicos...”. [...] “Cícero teria pertencido, do ângulo gnosiológico, à Nova Academia (a Academia Cética de Arcilau), mas, ‘ao mesmo tempo’, ter-se-ia fortemente influído pelo Pórtico médio, pelo mero fato de ter frequentado mestres estoicos" (Do Sumo Bem e do Sumo Mal, apresentação do tradutor, p.XIII).

Mas qual era, pergunta Nougué, “a escola que norteava o ‘sincretismo’ [filosófico] de Cícero? A ‘escola’ Sócrates. O nosso filósofo era um perfeito discípulo de Sócrates, um perfeito seguidor do seu método sui generis, e, se o afirma claramente nas Tusculanas, pratica-o extensa e minuciosamente nas disputas de Do Sumo Bem e do Sumo Mal. ‘Conheça-te a ti mesmo’ ─ também filosoficamente: é esta a melhor suma desta obra maior” (idem, p.XIII).

Well... não estou aqui para falar propriamente de Cícero, mas simplesmente para apresentar uma tocante passagem do livro V das Tusculanas, intitulado A Virtude e a Felicidade: uma passagem que quando li pela primeira vez não resisti a transcrevê-la nos meus (já aqui comentados) caderninhos de anotações. Chamou-me à atenção não só a beleza literária (à qual sempre me rendo) dessa exortação à filosofia, como também a divinização que Cícero faz dela ─ o que, talvez, para muitos, seria uma impiedade.

A discussão, como o próprio título revela, versa sobre a relação entre virtude e felicidade, e Cícero abrirá a obra sustentando que “a virtude é suficiente para fazer o homem feliz..." e também que "é o que a filosofia nos ensina de maior e mais essencial” (p.4). Embora eu não concorde que para sermos felizes basta que sejamos virtuosos (tese que renderia uma longa discussão), não posso deixar de apreciar a passagem que se segue abaixo.


“Ó filosofia, és a única capaz de nos guiar! És tu que ensinas a virtude e que subjugas o vício! Que faríamos nós e em que se tornaria o gênero humano sem o teu socorro? És tu que deste à luz as cidades, para que vivessem em sociedade os homens, antes dispersos. És tu que uniste, primeiramente pela proximidade do domicílio, e em seguida pelos laços do matrimônio, e por fim pela comunhão da linguagem e da escrita. Tu inventaste as leis, constituíste os costumes, instituíste a ordem. Tu serás o nosso asilo; é à tua ajuda que recorremos; e, se em outros tempos nos contentamos com seguir em parte as tuas lições, nós hoje a elas nos submetemos inteiramente, sem reservas. Um só dia passado segundo os teus preceitos é preferível à imortalidade de quem quer deles se aparte. Que outro poder imploraríamos antes que o teu, que outro poder nos teria trazido a tranquilidade da vida, que outro poder nos teria aplacado o temor da morte? Está-se muito distante, no entanto, de render à filosofia a homenagem que lhe é devida. Quase todos os homens a negligenciam; muitos até a vituperam. Vituperar a ela, a quem se deve a própria vida – como alguém pode ser capaz de manchar-se com esse parricídio? Como alguém pode levar a ingratidão ao ponto de ultrajar um mestre que se deveria ao menos respeitar, ainda que não seja capaz de compreender-lhe bem as lições? Atribuo esse horror a que os ignorantes não podem, através das trevas que os cegam, penetrar a antiguidade mais remota, para ver aí que os primeiros fundadores das sociedades humanas foram os filósofos. Quanto ao nome, ela é moderna; quanto porém à coisa mesma, vemos que é muito antiga”

Cícero | A Virtude e a Felicidade | Tradução de Carlos Ancêde Nougué | São Paulo | Martins Fontes | 2005

terça-feira, outubro 24, 2017

Instruções para o arquiteto


Há tempos transcrevi esse pequeno excerto da fala do personagem Dom Rigoberto de Mario Vargas Llosa. Deixei-o ali nos rascunhos para publicá-lo com alguns comentários. Hoje resolvi desengavetá-lo. Mas notei que estou completamente sem tempo (ou será preguiça? ou desculpa esfarrapada?) de tecer quaisquer considerações a respeito. Então, apenas observo que a passagem trata de Dom Rigoberto dizendo a seu arquiteto (que havia feito um pequeno projeto do qual ele não havia gostado) a concepção que tem acerca de um futuro lar para ele, sua esposa Lucrécia (a seus olhos uma verdadeira deusa-humana) e seu filho Fonchito (uma criança deveras singular que se pode chamar, digamos assim, de um "anjo-endemoniado"). Digo também que essa é uma das obras que já li, grifei, reli e transcrevi várias partes (por pura fruição estética meeesmo). A riqueza da trama, dos personagens, da linguagem e dos temas ali tratados e discutidos é es-tu-pe-fa-ci-en-te. Perspicácia, ironia, humor, sensualidade, inteligência e imaginação saltam aos olhos de qualquer leitor de gosto delicado (num sentido bem humeano).  No mundo de Dom Rigoberto ─ mundo no qual "seus caprichos governarão" (amei essa frase rs) ─ reinam os livros, as obras de arte, o conhecimento, a cultura, o erotismo, muitíssimo prazer e, sobretudo, Dona Lucrécia - a soberana de seus desejos. 

« La liseuse » par Jean-Jacques Henner


“Nosso mal entendido é de caráter conceitual. O senhor fez este bonito desenho de minha casa e de minha biblioteca partindo da suposição — muito difundida, lamentavelmente — de que em um lar o importante são as pessoas, em vez dos objetos. Não o critico por fazer seu esse critério, indispensável para um homem de sua profissão que não se resigne a prescindir dos clientes. Mas minha concepção de meu futuro lar é a oposta. A saber: nesse pequeno espaço construído que chamarei de meu mundo e que meus caprichos governarão, a prioridade básica caberá aos meus livros, quadros e gravuras; nós, as pessoas, seremos cidadãos de segunda. São esses quatro milhares de volumes e a centena de telas e estampas que devem constituir a razão primordial do desenho que lhe encomendei. O senhor subordinará a comodidade, a segurança e a conveniência dos humanos às daqueles objetos. [...] Confio em que o senhor não tome o que acaba de ler — a preponderância que concedo a quadros e livros sobre bípedes de carne e osso — por uma tirada de humor ou pose de cínico. Não é isso, mas sim uma convicção arraigada, consequência de experiências difíceis, mas, também, muito prazerosas. Não me foi fácil chegar a uma postura que contradizia velhas tradições — vamos chamá-las de humanísticas, com um sorriso nos lábios — de filosofias e religiões antropocêntricas, para as quais é inconcebível que o ser humano real, estrutura de carne e ossos perecíveis, seja considerado menos digno de interesse e de respeito do que o inventado, o que aparece (se lhe for mais cômodo, digamos refletido) nas imagens da arte e na literatura. Poupo-o dos detalhes desta história e o transfiro à conclusão a que cheguei e que agora proclamo sem rubor. O mundo de velhacos semoventes do qual o senhor e eu fazemos parte não é o que me interessa, o que me dá prazer e sofrimento, mas sim essa miríade de seres animados pela imaginação, pelos desejos e pela destreza artística, presente nesses quadros, livros e nessas gravuras que consegui reunir com paciência e amor de muitos anos."



Llosa, Mario Vargas | Os cadernos de dom Rigoberto | Tradução de Ana Angélica d'Avila Melo | Rio de Janeiro | Objetiva | 2009 | p.14



Allegory of Sculpture | Gustav Klimt | 1889


(ah... vale lembrar que embora a obra Os Cadernos possa ser lida independentemente da obra que a antecede, ou seja, O Elogio da Madrasta, convém ler essa primeiro, pois o desenrolar da primeira trama condiciona, num certo sentido, a futura relação entre os personagens da segunda).

sábado, outubro 21, 2017

Um álibi


Ele diz..: "É preciso ter um amor - um grande amor na vida, pois esse é um álibi para as angústias sem motivo pelas quais somos acometidos."



Albert Camus | A desmedida na medida | Cadernos 1937-1939 | Tradução de Raphael Araújo e Samara Geske | São Paulo | Hedra | 2014 | p.24

domingo, outubro 15, 2017

Reflexivo



by Christophe Charbonnel


O que não escrevi, calou-me.
O que não fiz, partiu-me.
O que não senti, doeu-se.
O que não vivi, morreu-se.
O que adiei, adeus-se.


Affonso Romano de Sant'Anna | Intervalo amoroso e outros poemas escolhidos | L&PM | 1999 | RS