quinta-feira, fevereiro 02, 2017

Vento




Amanheci de um modo novo hoje
as luzes de sempre
não me prendem mais com suas âncoras
queimei as lanças
e fui deixando para trás
a casa, o pátio, a aldeia
docemente ensolarada

Rasguei as certezas
enterrei os vestidos
e agora tenho por riqueza o vento

que sustenta os pássaros




[ Título: Santa Clara | Iracema Macedo |  Invenção de Eurídice | Panorama da Palavra | 2004 ]

domingo, janeiro 29, 2017

Êxtase musical


“Sinto que perco matéria, que caem minhas resistências físicas e que me dissolvo em harmonias e ascensões de melodias interiores. Uma sensação difusa e um sentimento inefável me reduzem a uma indeterminada soma de vibrações, de ressonâncias íntimas e de envolventes sonoridades.

Tudo o que acreditei ter em mim de singular, isolado em uma solidão material, fixado em uma consistência física e determinado por uma estrutura rígida, parece ter se transformado em um ritmo de sedutora fascinação e imperceptível fluidez. Como poderia descrever com palavras o modo como crescem as melodias, como vibra todo meu corpo integrado em uma universalidade de vibrações, evoluindo em fascinantes sinuosidades, em meio a um encanto de aérea irrealidade? Nos momentos de musicalidade interior, perdi a atração de minha pesada materialidade, perdi a substância mineral, essa petrificação que me ata a uma fatalidade cósmica, para atirar-me em um espaço de miragens...”


[ Emil Cioran | O Livro das Ilusões |Tradução de José Thomaz Brum | RJ | Rocco |2014 | p.7 ]


quinta-feira, janeiro 26, 2017

Curiosity


Dia desses uma amiga publicou no facebook um dos belos Cantos dos Cantares de Ezra Pound. Lembrei-me que tenho um livro dele desde 1987. Fui buscá-lo na prateleira, abri e reli toda a introdução de Augusto de Campos - um estudo breve, mas cuidadoso da vida e obra de Pound - e mais alguns poemas, cantos e cartas publicados nessa edição.

Uma das coisas que li nessa pequena introdução e que me chamou a atenção, já há 30 anos, foi que, em suas últimas entrevistas, ao ser questionado se teria algum conselho a dar aos jovens poetas e qual a qualidade que os incitaria a cultivar, Pound respondeu: "creio que o jovem poeta deve ter uma curiosidade ininterrupta. Não há literatura sem curiosidade. Quando a curiosidade do escritor morre, ele está perdido - ele poderá fazer não importa qual acrobacia, mas nada escreverá de vivo se a sua curiosidade estiver morta." 

Augusto de Campos completa que "tudo isso Pound resumiu numa breve anotação: 'curiosity - advice to the young - curiosity.'"


[ Ezra Pound | Canto 120 | Poesia | Traduções de Augusto, Haroldo de Campos, Décio Pgnatari, J.L. Grünewald, Mário Faustino | São Paulo | Hucitec | 1985 | p.39 ]











quarta-feira, janeiro 25, 2017

sexta-feira, janeiro 20, 2017

Poema da despedida


Não saberei nunca
dizer adeus

Afinal,
só os mortos sabem morrer

Resta ainda tudo,
só nós não podemos ser

Talvez o amor,
neste tempo,
seja ainda cedo

Não é este sossego
que eu queria,
este exílio de tudo,
esta solidão de todos

Agora
não resta de mim
o que seja meu
e quando tento
o magro invento de um sonho
todo o inferno me vem à boca

Nenhuma palavra
alcança o mundo, eu sei

Ainda assim,
escrevo.


[ Mia Couto | Raiz de orvalho e outros poemas | Portugal | 2014 ]




sábado, janeiro 07, 2017

O eterno silêncio




SAIR

Largar o cobertor, a cama, o
medo, o terço, o quarto, largar
toda simbologia e religião; largar o
espírito, largar a alma, abrir a
porta principal e sair. Esta é
a única vida e contém inimaginável
beleza e dor. Já o sol,
as cores da terra e o
ar azul – o céu do dia –
mergulharam até a próxima aurora; a
noite está radiante e Deus não
existe nem faz falta. Tudo é
gratuito: as luzes cinéticas das avenidas,
o vulto ao vento das palmeiras
e a ânsia insaciável do jasmim;
e, sobre todas as coisas, o
eterno silêncio dos espaços infinitos que
nada dizem, nada querem dizer e
nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer.


Antonio Cicero | 'Sair' | A Cidade e os Livros | Editora Record | Rio de Janeiro | 2002 | p.77.


"... sobre todas as coisas, o eterno silêncio dos espaços infinitos que nada dizem, nada querem dizer e nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer. ... sobre todas as coisas, o eterno silêncio dos espaços infinitos que nada dizem, nada querem dizer e nada jamais precisaram ou precisarão esclarecer. ... o eterno silêncio... sobre todas as coisas..."

Encontrei esse belo poema de Antonio Cicero num site de literatura que não me lembro qual. Fui conferir, agora, a autenticidade dele e o encontrei publicado no blog do próprio autor que, aliás, eu não conhecia (o blog, não o autor). Há, nesse blog, um desdobramento dessa publicação motivado por um comentário que serve como pretexto para uma reflexão que, por sua vez, começa discordando do conteúdo do poema. Achei esquisito discordar do conteúdo de um poema, but... o rapaz acaba levantando questões interessantes. 

Antônio Cícero dá um show nas respostas, ainda que diga "não me sinto capaz de explicar um poema meu". Ele acaba sim, num certo sentido, explicando o poema ao responder as perguntas do rapaz. E faz isso muito bem (embora o poema não carecesse propriamente de explicação). Responde às questões com excelentes perguntas, suposições, interpretações possíveis e um raciocínio que me parece impecável. A discussão versa sobre o clássico tema da existência e natureza divinas, bem como sobre aquilo que ficou conhecido (seja na filosofia, teologia ou filosofia da religião) como o “problema do mal” — tema sobre o qual passei debruçada uns bons anos da minha vida. Há outros comentários ali, mas a discussão para a qual eu chamo a atenção é entre Lucas Nicolato e Antônio Cícero. Estou com um pouco de preguiça de reconstruir a discussão. Então, take a look: http://antoniocicero.blogspot.com.br/2007/08/sair.html.


quinta-feira, janeiro 05, 2017

O corpo de um poema


  [photo by Cristina Otero]


                     olho muito tempo o corpo de um poema
                     até perder de vista o que não seja corpo
                     e sentir separado dentre os dentes
                     um filete de sangue
                     nas gengivas


                    [Ana Cristina César | A teus pés | Brasiliense | 1984]

                         

terça-feira, janeiro 03, 2017

L'amour



Daquelas coisas que a gente lê e não sabe bem por que elas nos tocam...

"Essa singular vaidade do homem que se deixa e quer crer que aspira a uma verdade quando o que ele pede a esse mundo é um amor."

(Albert Camus | Cadernos | 1937-39 | A desmedida na medida | São Paulo | Hedra | 2014 | p.44)

quarta-feira, dezembro 28, 2016

Notas sobre uma episódio banal


O calor está infernal. Quem me conhece sabe que sou uma das mulheres mais friorentas desse planeta lindo e miserável. Gosto do sol, do calor e do céu aberto. Mas não desse ar abafadiço, desse bafo quente e sufocante.

De uns anos pra cá passei a apreciar também dias nublados e levemente frios. Eles combinam com o ensimesmamento, a solidão e a melancolia (um trio que também aprecio). Ademais, com um pouco de frio, dormir coberta é bem gostoso. E posso usar minhas botinhas no dia a dia.

Acabo de folhear um romance e me deparei com uma passagem, dentre tantas, daquelas que a gente grifa. Como alguém já observou um dia, eu deixo rastros e pistas em meus livros. E tenho um código próprio de grifos e sinais. Volta e meia eu mesma sigo as pistas que deixei assinaladas. Na que se segue, trata-se de apenas um banho. Um episódio banal.



"Deve haver um bocado de coisas que um banho quente não cura, mas não conheço muitas delas. Sempre que fico triste pensando que um dia vou morrer, ou perco o sono de tão nervosa, ou estou apaixonada por alguém que não verei por uma semana, me deixo sofrer até certo ponto e então digo: 'vou tomar um banho quente'. Eu medito no banho. A água tem que estar muito quente, tão quente que você mal consegue colocar o pé. Então você vai entrando, centímetro por centímetro, até estar com a água na altura do pescoço. [...] acho que vejo o banho quente do jeito que as pessoas religiosas veem a água benta" Sylvia Plath | A Redoma de Vidro | p.27-28]. 

A sensação é lenitiva. Tenho, digamos, "uma pira" com banhos quentes. E saudosas lembranças de meus banhos de banheira quando criança. Porém, em mim, o efeito curador não se dá apenas num banho de banheira. Basta-me um bom chuveiro de água quente. Não preciso ficar triste pensando na morte (embora eu pense nela correntemente). Também não necessito perder o sono por qualquer motivo (ainda que às vezes o perca por algum). Tampouco estar apaixonada (conquanto...) . Basta-me estar com muito frio (o que já me deixa doente) para que eu diga: "vou tomar um banho quente'. Ele aquece meu sangue e me cura do enorme desconforto do frio por ao menos duas horas, quando passo, novamente, a me sentir gelada, mesmo que bem agasalhada, em dias de muito frio.

Mas é verão. E hoje está muito calor. O dia pede um banho frio. Como detesto água fria, vou tomar um longo banho morno. E de chuveiro. Lugar sob o qual adoro pensar na vida e ver meus pensamentos escorrerem  pelo ralo.

fonte da imagem: Nicholas Nixon | Cultura Inquieta30

segunda-feira, dezembro 12, 2016

Ah... essa dor





O Grito

Se ao menos esta dor servisse
se ela batesse nas paredes
abrisse portas
falasse
se ela cantasse e despenteasse os cabelos

se ao menos esta dor se visse
se ela saltasse fora da garganta como um grito
caísse da janela fizesse barulho
morresse

se a dor fosse um pedaço de pão duro
que a gente pudesse engolir com força
depois cuspir a saliva fora
[...]

se a dor fosse só a carne do dedo
que se esfrega na parede de pedra
para doer doer doer visível
doer penalizante
doer com lágrimas

se ao menos esta dor sangrasse


[Renata Pallottini 1931- ... | A faca e a pedra | 1961]

terça-feira, novembro 29, 2016

Confidência


Diz o meu nome
pronuncia-o
como se as sílabas te queimassem os lábios
sopra-o com suavidade
para que o escuro apeteça
para que se desatem os teus cabelos
para que aconteça

Porque eu cresço para ti
sou eu dentro de ti
que bebe a última gota
e te conduzo a um lugar
sem tempo nem contorno

Porque apenas para os teus olhos
sou gesto e cor
e dentro de ti
me recolho ferido
exausto dos combates
em que a mim próprio me venci

Porque a minha mão infatigável
procura o interior e o avesso
da aparência
porque o tempo em que vivo
morre de ser ontem
e é urgente inventar
outra maneira de navegar
outro rumo outro pulsar
para dar esperança aos portos
que aguardam pensativos

No húmido centro da noite
diz o meu nome
como se eu te fosse estranho
como se fosse intruso
para que eu mesmo me desconheça
e me sobressalte
quando suavemente
pronunciares o meu nome"

Mia Couto – 'Confidência'. in: Raiz de Orvalho e Outros Poemas.

The Absinthe Drinker by Viktor Oliva

segunda-feira, novembro 21, 2016

Ensaios sobre a filosofia de Hume


Enfim, chers lecteurs et lectrices, depois de muito trabalho e algumas estações invernais e primaveris, tenho o prazer de informá-los que acaba de ser publicado o volume 16 da "Coleção Rumos da Epistemologia" com os trabalhos apresentados no V Encontro Hume, realizado em abril de 2015, na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) -  organização de Jaimir Conte, Flávio Zimmermann e Marília Côrtes de Ferraz (moi-même). Em breve sairá também a versão impressa. Dentre os 20 trabalhos publicados, há um ensaio meu intitulado O Status do Fideísmo na Crítica de Hume à Religião Natural. Take a look !!!




Ao final, Notas sobre João Paulo Monteiro (in memorian), uma homenagem de Rolf Nelson Kuntz.

quarta-feira, novembro 16, 2016

Espelhado em meu peito


Eis abaixo mais um belíssimo texto [and painting] do meu querido e talentoso amigo Ygor Raduy. Quando o li, senti como se suas palavras fossem arrancadas de meu próprio peito. Não resisti a'

O AMOR INTEIRO
  
Amo-te inteiro, com corpo, alma, ligamentos. Amo-te sem controle, inevitável. Estás em mim, como o sangue flui em mim, corrente. Amo-te inteiro, até as profundezas, e sempre. Amo-te completo e irrevogável – e és a peste em mim adormecida, és o incêndio, a floração de tudo. E só quando estás presente estou presente;  só quando estás alegre estou alegre; só quando respiras eu respiro. Amo-te às pressas, urgente.  És o alento e a força – embora de nada desconfies. És a festa onde meus olhos brincam, o abismo onde a minha carne cai. Eu perco o coração, mas vou a ti com alegria. E embora o teu silêncio me aferroe, vou a ti. Vou a ti, embora nada indique que venhas a mim; vou a ti, sem que jamais teu braço se mova em minha direção. Pois amo-te inteiro. E algo em mim insiste que és o único norte – algo em mim resiste e diz: “ama-o inteiro, com corpo, alma, ligamentos”. E vou, obedeço, como quem vai ao mundo, já que aos meus olhos és o próprio mundo. Se porventura de existir desistires, tudo desiste,  tudo cai, a luz declina, flores murcham, tudo é vulto. E eu não posso perder nem um minuto teu, nem um sorriso teu posso perder, preciso de cada palavra, de cada gesto teu, de cada respiração. Pois amo-te inteiro, até os subterrâneos. E cada minuto sem ti é um minuto perdido. Cada passo, um passo em falso. Se estás ausente, agonizo; se estás presente, gozo. E me perco de mim, e erro e lamento e apago as luzes e choro pelos cantos. Mas se vens, a alma minha em festa, bandeiras hasteadas, coro de vozes exultantes, luz. Pois amo-te inteiro, com o corpo, com a alma, com os ligamentos.


words, Wörter, blood, Blut 2 | painting | ygor raduy


Não partas com teu reflexo/
Deixa-o espelhado em meu peito.
F. Garcia Lorca

[texto originalmente publicado em 

domingo, novembro 06, 2016

Apenas um voo




Estou num avião. Não consigo gostar de voar. Tenho medo. E quase sempre a impressão de que ele vai quebrar, partir-se todo, explodir ou desmantelar-se no ar. Não me agradam as expressões dos tripulantes. Sorrisos treinados, branco-amarelados. Tampouco da maioria dos passageiros. Como se tudo estivesse bem. Para alguns talvez esteja mesmo. Porém, dentro de um avião, jamais as coisas estarão bem para mim. Simplesmente porque eu não me sinto nada bem. 

Se há turbulência, meu coração parece que vai explodir (assim como o avião). A descarga de adrenalina é asfixiante. Meu pulso acelera, meu sangue esquenta, ou melhor, não sei se esquenta ou se gela. As sensações se misturam. E se confundem. Não fosse impossível, tal como imaginar um círculo quadrado, eu diria que meu sangue esquenta e gela ao mesmo tempo. E sob as mesmas circunstâncias e condições. Sinto-me como se suasse gelo. Trêmula, começo a ficar ofegante. O ar começa a faltar. E eu tento, então, meditar. Respirar calmamente. Mentalizo: nam-myoho-rengue-kyo... nam-myoho-rengue-kyo... nam-myoho-rengue-kyo...

Olho para as pessoas ao meu redor. Todo mundo aparentemente calmo. Mas não adianta. Quaisquer estalidos, quaisquer sacudidelas, deixam-me mais apreensiva. Fico em estado de alerta o tempo todo. Os ouvidos atentos. Os sentidos  aguçados. Estridentes. E os nervos à flor da pele. Se o voo é estável, respiro melhor. A sensação de morte se atenua. Mas nada se compara ao conforto de sentir as rodas tocarem o chão e, mais ainda, de sentir meus pés no chão.

Prefiro viajar de carro, embora digam que o perigo é mil vezes maior. Podem dizer à vontade. Podem me apresentar dados e estatísticas que demonstrem isso. Não me convencem, infelizmente. Posso saber disso, mas não consigo sentir isso. Melhor viajar na mente. No sonho. Na imaginação. (Ainda que eu não deva desconsiderar as vantagens de se viajar de avião. Todos conhecem).

Agora, por exemplo, ele passou por um período de estabilidade. Consegui ficar relativamente tranquila a ponto de abrir meu aplicativo Day One para escrever essas baboseiras que vocês estão lendo. Mas agora ele vai começar a descer. A paixão do medo toma conta de mim. O barulho do motor se altera. Outros barulhos gritam aqui e ali. A velocidade cai. A altura cai. Dentro de mim tudo cai. Parece que o motor vai pifar. O avião começa a chacoalhar de novo. O coração dispara. Pronto. Volto a me sentir hiper insegura e agitada. Na verdade, apavorada. Minha imaginação, involuntariamente, produz monstros. Uma legião deles.


Hoje os voos estão sendo piores do que os da última vez, cujo tempo estivera aberto e o sol radiante. É o segundo do dia, dada a conexão. Pensei que havia, senão superado (acho que isso nunca vai acontecer), ao menos amenizado meu medo de voar em aviões. Mas não. Basta um voo levemente turbulento (e digo levemente porque aparentemente ninguém se abalou; e também porque nunca passei por algum voo desses que já me contaram, cujas máscaras de oxigênio caem e todos se apavoram, gritam and so on) para eu perceber que não superei p**ra nenhuma.

Neste voo do qual vos escrevo, por exemplo, por conta da turbulência, não houve serviço de bordo. A tripulação começou a se armar para o serviço e logo vi que todos pararam. O comandante resolveu avisar, pedindo desculpas, que não teríamos tal serviço porque não havia segurança nem para nós nem para os tripulantes. Ninguém parece ter se abalado (exceto a pessoa ao meu lado, que sentiu meus nervos nervosos). Pensei: precisava anunciar, comandante? Precisava explicar? Cazzo. Eu já havia sacado. Aliás, provavelmente todos já haviam sacado. Afinal, a turbulência era evidente. Mas o aviso, vindo lá da cabine do piloto, ora ora... cala a boca, comandante!

quarta-feira, novembro 02, 2016

Canto fúnebre sem música




Dirge Without Music

I am not resigned to the shutting away of loving hearts in the hard ground.
So it is, and so it will be, for so it has been, time out of mind:
Into the darkness they go, the wise and the lovely. Crowned
With lilies and with laurel they go; but I am not resigned.

Lovers and thinkers, into the earth with you.
Be one with the dull, the indiscriminate dust.
A fragment of what you felt, of what you knew,
A formula, a phrase remains, — but the best is lost.

The answers quick and keen, the honest look, the laughter, the love,
They are gone. They are gone to feed the roses. Elegant and curled
Is the blossom. Fragrant is the blossom. I know. But I do not approve.
More precious was the light in your eyes than all the roses in the world.

Down, down, down into the darkness of the grave
Gently they go, the beautiful, the tender, the kind;
Quietly they go, the intelligent, the witty, the brave.
I know. But I do not approve. And I am not resigned.


Canto fúnebre sem música

Não me conformo em ver baixarem à terra dura os corações amorosos,
É assim, assim há de ser, pois assim tem sido desde tempos imemoriais:
Partem para a treva os sábios e os encantadores. Coroados
De louros e de lírios, partem; porém não me conformo com isso.

Amantes, pensadores, misturados com a terra!
Unificados com a triste, indistinta poeira.
Um fragmento do que sentíeis, do que sabíeis,
Uma fórmula, uma frase resta — porém o melhor se perdeu.

As réplicas vivas, rápidas, o olhar sincero, o riso, o amor
foram-se embora. Foram-se para alimento das rosas. Elegante, ondulosa
é a flor. Perfumada é a flor. Eu sei. Porém não estou de acordo.
Mais preciosa era a luz em vossos olhos do que todas as rosas do mundo.

Vão baixando, baixando, baixando à escuridão do túmulo
Suavemente, os belos, os carinhosos, os bons.
Tranquilamente baixam os espirituosos, os engraçados, os valorosos.
Eu sei. Porém não estou de acordo. E não me conformo.


Edna St. Vincent Millay, 1892-1950

"Poesia Traduzida"
Tradução de Carlos Drummond de Andrade
Editora Cosacnaify

domingo, outubro 30, 2016

Gotas caídas


Gotas caídas! Saindo de minhas veias azuis!
Ó gotas de mim! Vagarosas gotas caídas,
Cândidas, caídas de mim, pingos, gotas de sangue,
De ferimentos feitos para libertar-vos, de quando estáveis aprisionadas,
De minha face, de minha testa e de meus lábios,
De meus peitos, de dentro de onde eu estava escondido, pressionadas para sair, gotas vermelhas, gotas de confissão,
Manchai cada página, manchai cada canção que entoo, cada palavra que digo, gotas de sangue,
Deixai que o vosso calor escarlate seja delas conhecido, deixai que brilhem,
Saturai-as convosco até que fiquem envergonhadas e úmidas,
Resplandecei sobre tudo o que já escrevi ou escreverei ainda, gotas de sangue,
Deixai que tudo seja visto em sua própria luz, gotas enrubescidas.



[Walt Whitman. in: Folhas de Relva]

sábado, setembro 17, 2016

o céu de meus dias


e eu olhava praquela boca 
e pensava:

que céu
que céu de boca
quero escrever um poema naquele céu 

com a língua 
a minha língua de anjo
....................

[prosa de Sidney Giovenazzi | versos meus]


L'allodola
Pál Szinyei Merse

sábado, agosto 27, 2016

A vida como fenômeno estético

Uma vez comentei com uma amiga sobre algumas obras de arte extremamente belas e delicadas (criação de uma artista grega chamada Mantha Tsialiou) que conheci, por acaso, pelo facebook. Mostrei as fotos de algumas obras à minha amiga que, por sua vez, mostrou-me, ali também pelo facebook, as obras de um amigo dela chamado Ygor Raduy (já publiquei um poema dele aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/2016/08/na-borda-da-palpebra.html ). 

Bah... fiquei impressionada! Achei os desenhos e pinturas daquele rapaz, até então desconhecido pra mim, simplesmente maravilhosas, inquietantes, perturbadoras, especialmente suas figuras do abismo.

Não resisti e, completamente seduzida por aquelas obras, num impulso atrevido, enviei a ele uma solicitação de amizade pelo facebook. Digo impulso atrevido porque não costumo enviar convites de amizades a desconhecidos, e quase nem mesmo a conhecidos. Mas queria acompanhá-lo de perto. Tornamo-nos amigos "no face" (expressão engraçada, mas que está na boca de todos os seus usuários) e acabamos trocando algumas ideias numa conversa inbox tipo olá quem é você como chegou e o que faz aqui? Apresentei-me, falei um pouco do que percebia e sentia ao contemplar seus trabalhos e, a partir de então, passei a acompanhar as publicações não apenas de suas pinturas, mas também, para minha agradável surpresa, de seus textos literários e incrivelmente filosóficos.

Não tenho dúvidas de que ele tem uma extraordinária sensibilidade artística e filosófica, eu diria mesmo que ele é um artista genuinamente genial, bem ao modo como Schopenhauer fala da figura do artista-gênio no livro III de O mundo como vontade e representação, e bem ao gosto da tese de Nietzsche, em O Nascimento da Tragédia, segundo a qual a vida só tem sentido e pode ser justificada como fenômeno estético. Há claramente em suas obras uma fusão entre arte, filosofia e vida. Ele não apenas produz belas obras de arte, como também escreve maravilhosamente bem e, ainda, filosofa naturalmente. Tenho acompanhado seu facebook as an experiment, seus relatórios com diversos títulos e temas (relatório sobre nada muito importante, relatório sobre qualquer coisa, relatório com verdades definitivas, relatório sobre coisas esparsas), suas pinturas, desenhos e revisões de cânones, suas histórias esquisitas, seus exercícios de escrita, suas fotografias e reflexões em geral. Tudo é de uma tragicidade, riqueza e profundidade abissais.

Ao pensar sobre um tema caro à filosofia (e à vida de qualquer mortal-comum), isto é, a morte, vejam só o que ele escreve:


"Eu penso sobre a morte. Sem motivo algum, imagino que seja suave. Talvez seja macia como um acalanto é macio na infância. Talvez seja um envolver-se, um devolver-se, um deixar-se. Talvez morrer seja sedoso, como um imenso leito onde se repousa.  Talvez seja tentadora, a morte, como um mergulhar, um abandonar-se, um despir-se.  Para um corpo que vive, não há nada mais obsceno que a morte.  Mas já que sou humano, penso sobre ela. Será  a morte como um corte abrupto? Um baque? Um repentino desligar-se? Imagino a morte aveludada – talvez porque a vida seja tão áspera. A vida, aprendi, é dor. É o budismo que o diz. É a minha carne e o meu coração que o confirmam. Dor e Alegria, simultâneas. Mas a morte - talvez a morte seja a ausência, talvez o silêncio mais puro. Talvez seja o nada, talvez nela nos percamos de nós, talvez nos desliguemos – talvez seja um infinito esquecimento, um cessar, um interromper. A morte, eu imagino, é generosa, pois acolhe todo aquele que nela penetra. Quem está nela, já não sorri, já não goza, já não erra, já não avança, já não ama, já não sangra, já não arde. Meu único desejo é que na morte se possa ouvir Música. Não consigo suportar a ideia de um silêncio tão severo. Mas sei que a Música pertence à Vida. Quando a morte vem, a Música cessa. E há uma outra questão que me intriga: quando a morte vem, para onde vai o amor? É tão doloroso pensar que o amor também cessa quando a morte vem. Justo o amor, pelo qual juramos eterna sujeição, pelo qual derramamos sangue, suor, saliva, lágrima – é insuportável considerar que ele seja aniquilado pela câmara da morte, como um inseto.  Justo o amor, essa tina asquerosa e tóxica, dentro da qual chafurdamos. O amor, parente tão próximo do ódio. Eu pressinto que a morte não poupa nada, nem mesmo o amor, embora me doa esse pressentimento na alma como uma agulha dói quando enfiada na pele sem aviso."

(em http://streichspielen.blogspot.com.br/2010/05/sobre-morte.html)


Pois bem, posso reconhecer nessa reflexão alguns traços do pensamento de Epicuro (quanto à morte como dissolução e fim da consciência e, portanto, da dor e do sofrimento - um mergulho no nada) e Schopenhauer (no que respeita à sua teoria da prevalência do mal e do sofrimento na vida). E posso reconhecer, além de tudo isso e muito mais, um representante de uma nova geração de filósofos: "os filósofos do perigoso talvez a todo custo" - que Nietzsche prenuncia em Além do bem e do mal § 2, p.10-11).


[todos as obras de arte acima publicadas são de Ygor Raduy]