terça-feira, agosto 26, 2014

Dreaming

O homem, um deus quando sonha,
e apenas um mendigo quando pensa.

[Hölderlin, Hipério]


Não li Hipério ou o Eremita na Grécia, de Hölderling, mas me encantei com essa passagem que encontrei numa das epígrafes de abertura de Os cadernos de dom Rigoberto, de Mario Vargas Llosa, uma obra que me seduziu desde as primeiras linhas (aliás, desde o Elogio da Madrasta), como já indiquei aqui http://mariliacortes.blogspot.com.br/search/label/Mario%20Vargas%20Llosa, em outras cinco postagens.

Alguém poderia estranhar o fato d'eu ter me deixado seduzir também por esta epígrafe, já que me declaro agnóstica em relação à existência de deus e faço do pensamento, digamos assim, meu principal deleite e ofício. Para afastar esse estranhamento (caso ele tenha te assaltado, caro leitor) é muito simples. Sonhe! Leia também Os cadernos de dom Rigoberto. É divino! E torna fácil entender por que Llosa escolheu essa bela epígrafe para a abertura dessa obra. Lendo-a... tu me pouparás de dar explicações (já que estou com a maior preguiça, e sonhando...).

segunda-feira, agosto 25, 2014

Num trago


Ella entra no bar e fica ali a refestelar-se pelo balcão. Otto chega e, inadvertidamente, se aproxima. Ella não se mexe. Acende um cigarro, traga-o com força e, resoluta, permanece em silêncio, sem ao menos olhar para Otto. Otto também não fala nada. Apenas fica ali, parado, a fitá-la fixamente. A atmosfera se adensa. O silêncio pesa. E se estende... 
Passados alguns minutos, como se fossem horas, Ella irrompe:
- Garçon! Um copo de cólera, por favor! E sem gelo!
Ella bebe num gole só.
E tchau!

sábado, agosto 23, 2014

Rito


Egon Schiele [1890 - 1918]. Femme Assise Avec Le Genou Plié 

"São quatro da madrugada, Lucrécia querida", pensou dom Rigoberto. Como quase todos os dias, havia acordado na turva umidade do amanhecer para celebrar o rito que repetia cacofonicamente desde que dona Lucrécia fora morar no Olivar de San Isidro: sonhar acordado, criar e recriar sua mulher por invocação daqueles cadernos onde hibernavam seus fantasmas. 'E onde, desde o dia em que te conheci, tu és rainha e senhora.'"

"Contudo, à diferença de outras madrugadas desoladas ou ardentes, hoje não lhe bastava imaginá-la e desejá-la, conversar com sua ausência, amá-la com a própria fantasia e com o próprio coração, de onde ela nunca se havia afastado; hoje, precisava de um contato mais material, mais certo, mais tangível. 'Hoje, eu poderia me suicidar', pensou, sem angústia."

[...]

"No primeiro caderno que abriu, uma frase oportuníssima saltou e o mordeu: 'Meus ferozes despertares ao amanhecer têm sempre como ânimo, meu amor, uma imagem tua, real ou inventada, que inflama meu desejo, enlouquece minha saudade, deixa-me em suspenso e me arrasta a esta escrivaninha para me defender contra o aniquilamento, amparando-me no antídoto de meus cadernos, gravuras e livros. Somente isso me cura'".

Llosa, Mario Vargas. Os cadernos de dom Rigoberto. Tradução de Joana Angélica d'Ávila Melo. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009, p.225-226.

Quem conhece essa obra de Lhosa (bem como O Elogio da Madrasta, anterior a este), saberá que o inquietante Egon Schiele não está aqui por acaso.

domingo, agosto 10, 2014

Os restos de Ella


Há tempos Ella se sentia partida ao meio. De um lado, estava esvaziada, como se dentro dela houvesse apenas um silêncio devastador. De outro, sentia-se um bicho enjaulado a querer vomitar tudo que pensava e sentia – uma massa gordurosa que estava a lhe corroer. Não era um silêncio escolhido. Era simplesmente o que lhe restava. Estava anestesiada. Nada podia fazer, a não ser recolher-se em seu próprio sofrimento.



sábado, agosto 09, 2014

Excuse my dust


"Casa dos espelhos para onde torno e retorno, devolvida a mim mesma, labirinto especular no qual continuo vagando, os pés feridos nos meus próprios cacos, armadilhas obstinadas a me reter, infinitamente, destruir-me, reconstruir-me, incessantemente, em dor, em pó" (Denser, Márcia. Diana Caçadora, p.41).

[Photo: Erwin Blumenfeld - Teddy Thurman - New York 1948]

segunda-feira, julho 28, 2014

Ausência

Uma das oitenta "figuras" que Roland Barthes apresenta em seus Fragmentos de um Discurso Amoroso é a ausência. Essa figura (seja qual for dentre as oitenta) é, como diz Barthes, "o enamorado em ação" (o sujeito universal apaixonado). Aquele que pode ser reconhecido no discurso que se passa. Discurso tecido de desejo, de lembrança, de saudade, de angústia, de espera, de cansaço, imaginário, loucura... e por aí vai... o enamorado(a) em ação, no poema Ausência, de Jorge Luís Borges:


[ by Jacob Sutton]

Eu haverei de erguer a vasta vida
que ainda é o teu espelho:
cada manhã hei-de reconstruí-la.
Desde que te afastaste,
quantos lugares se tornaram vãos
e sem sentido, iguais
a luzes acesas de dia.
Tardes que te abrigaram a imagem,
música em que sempre me esperavas,
palavras desse tempo,
terei de as destruir com as minhas mãos.
Em que ribanceira esconderei a alma
pra que não veja a tua ausência,
que como um sol terrível, sem ocaso,
brilha definitiva e sem piedade?
A tua ausência cerca-me
como a corda à garganta.
O mar ao que se afunda.

domingo, julho 27, 2014

Persuasão



"Ela tentou permanecer calma, deixar as coisas acontecerem, e procurou concentrar-se muito neste argumento de natureza racional: 'Com certeza, se houver uma afeição constante, nossos corações não tardarão a se compreender.'” 

(Anne Elliot, in Persuasão, de Jane Austin, p.261)
[photo by Uwe Steger]

sexta-feira, julho 25, 2014

Na brevidade do verso



CARPE DIEM

Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio — nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.

[Poema de Nuno Júdice] - [Arte: Untitled II by Fabian Perez]

quinta-feira, julho 24, 2014

quarta-feira, julho 23, 2014

Nas garras de um grito


Ella adorava tomar um longo e demorado banho quente. Muito quente. Podia ser de manhã, de noite, ou a qualquer hora. Ficava ali, debaixo do chuveiro, a deleitar-se naquela água corrente, ardente, a aquecer-lhe o corpo, a alma, o sangue e a imaginação, enquanto observava seus pensamentos escorrerem pelo ralo.  Friorenta como Ella era, tinha necessidade vital desses banhos.

Naquele dia, Ella acordou com um pequeno poema ressoando em sua cabeça. Ella não gostava de todos os poemas que lia, ainda que fossem escritos pelas penas dos mais famosos e consagrados escritores. Era seletiva. Gostava de alguns, mas nem sempre em sua completude. Às vezes, abraçava-os por inteiro. Outras, apreciava apenas um fragmento. Identificava-se com um verso, uma linha, uma expressão, ou simplesmente um sentimento suscitado. Fosse pela profundidade, beleza ou doçura. Fosse pela loucura, sensualidade, tristeza ou luxúria; ou mesmo pela composição de duas ou mais dessas qualidades.

Todos os dias Ella divagava por algumas horas em seus livros de filosofia e literatura. Navegava pelos links e hiperlinks disponíveis em sua era high-tech, procurando algo que lhe arrebatasse os sentidos. Anotava em seus diversos caderninhos tudo que lhe tocava a alma. E o corpo! Pois Ella sentia que vivia, dissessem o que dissessem alguns filósofos, num corpo inseparável de sua alma: Ella era uma substância só, inteiramente indivisível.

Naquela gélida manhã sem graça, sufocada como se tivesse uma corda amarrada ao pescoço, Ella acordou com um grito querendo saltar de seu peito. Levantou, despiu-se, abriu o chuveiro e entrou debaixo d'água quente. Ressoava em três linhas um verso do poema Olmo, de Sylvia Plath, que havia anotado em um de seus caderninhos.

Dentro de mim mora um grito. 
De noite, ele sai com suas garras, à caça 
de algo para amar!

Resolveu, então, tomar um banho gelado. 
Não suportou. Escorreu pelo ralo. E se foi.

quarta-feira, julho 16, 2014

Por ti

Das páginas de meu Moleskine...


"[...] Como uma flor a seu perfume, estou atado à tua lembrança imprecisa. Estou perto da dor como uma ferida, se me tocas me maltratarás irremediavelmente. Tuas carícias me envolvem como as trepadeiras aos muros sombrios. Esqueci teu amor e não obstante te adivinho atrás de todas as janelas. Por ti me doem os pesados perfumes do estio: por ti volto a espreitar os signos que precipitam os desejos, as estrelas em fuga, os objetos que caem".

[Pablo Neruda]

(ahh... o que seria de mim sem poesia..?)

quinta-feira, julho 03, 2014

Eros

"Quando fui preso ao doce começo
De uma doçura tão docemente doce...
(suave foi a flechada)"



Depois, ah, depois desse doce começo, depois dessa doçura tão docemente doce e dessa suave flechada, segue, Da maneira mais simples, um poema de Eugénio de Andrade.

"É apenas o começo. Só depois dói,
e se lhe dá nome.
Às vezes chamam-lhe paixão. Que pode
acontecer da maneira mais simples:
umas gotas de chuva no cabelo.
Aproximas a mão, os dedos
desatam a arder inesperadamente,
recuas de medo. Aqueles cabelos,
as suas gotas de água são o começo,
apenas o começo. Antes
do fim terás de pegar no fogo
e fazeres do inverno
a mais ardente das estações."
.
.

Well: "Winter is coming soon!"
.

[Primeiro poema: Les Amours. Pierre de Ronsard, 1524-1585].
.

[Painting: Young girl defending herself against Eros (1880), William-Adolphe Bouguereau, 1825-1905]

quinta-feira, junho 12, 2014

Beijos, muitos beijos



[...]

Dá-me beijos, dá-me tantos
Que enleado em teus encantos,
Preso nos abraços teus,
Eu não sinta a própria vida
Nem minha alma, ave perdida
No azul-amor dos teus céus.

[...]

(Fernando Pessoa, in: Cartas para Ophélia)

sábado, junho 07, 2014

Nau


a nau me abandona nauseabunda
a náusea me abunda


Wreck of the "Ancon" in Loring Bay | Alaska |1889 | by Albert Bierstadt | 1830–1902  
Oil on paper mounted on Masonite 

terça-feira, junho 03, 2014

Observações triviais


Ella saiu pra almoçar às 12:45. Pelo brilho do sol, supôs que a temperatura estivesse mais alta. Se enganou tremendamente: o sol até que estava quente, porém, o vento... ai... o vento estava gélido e cortante! Ella se arrependeu de não ter se agasalhado até os dentes. Pensou que talvez fosse o caso de voltar ao hotel pra se agasalhar melhor. Mas, enquanto pensava, hesitou, pois achava que havia demorado tanto pra sair que, se voltasse, iria, comme d'habitude, se enrolar mais um pouco pra sair de novo. Acabaria perdendo o horário do almoço, a fome iria passar e isso certamente faria com que Ella passasse o resto do dia a enganar a fome quando esta retornasse ao seu estômago de passarinho.

Pensando assim (e já encantada pelo cenário das ruas curitibanas), seguiu em frente. Ao mesmo tempo em que blasfemava contra o vento frio, aprazia-se por ter tido a prudência de sair de luvas, cachecol, e  uma echarpe de lãzinha  na mochila. Tais acessórios ajudaram-na a suportar o frio, mas de modo algum a deixaram confortável. Ella procurou desviar sua atenção daquele frio impositivo em direção às pessoas que circulavam pelas ruas e avenidas, às belas praças, monumentos, construções, lojas e cafés (cenários que traziam a ela as mais diversas lembranças de um passado distante, mas memorável).

Ella andava sem direção definida, porém, a fim de encontrar um lugar agradável pra almoçar. Passeou pra cá e pra lá, nostalgicamente, até que encontrou um restaurantezinho com aparência simpática e sedutora. Entrou, apreciou o ambiente, sentou-se, e lá permaneceu ─ no Arrumadinho da Marechal Deodoro  a esperar seu virado à paulista, enquanto rascunhava suas observações triviais em seu moleskine de capa preta. 

segunda-feira, junho 02, 2014

Vida ordinária


Ella observa, enquanto toma seu café, a encruzilhada da Cruz Machado com suas velhas esquinas e seus transeuntes. Táxis, carros de passeio, utilitários e os mais diversos tipos de veículos automotores se entrecruzam. Pessoas comuns transitam pra cá e pra lá: passos compassados, mecânicos e regulares: uns mais apressados, outros menos ─ uma perna seguindo-se à outra, como numa engrenagem.

Os olhos de Ella percorrem vagarosamente todos os movimentos da rua, enquanto desgosta de seu café morno. Ella pensa: que vida mais ordinária, povoada de pessoas ordinárias, com seus rostos, roupas e sapatos ordinários!

Apesar da baixa temperatura de junho (e por que não dizer temperatura ordinária?), o céu curitibano está aberto e o sol reina majestaticamente. Porém, está frio demais para Ella e seu gosto quente. Suas mãos estão geladas. O coração apertado. E em meio à observação e burburinho ordinários, Ella aprecia o borbulhar de seu interno mundo extraordinário.





[foto: Jonathan Carroll]

segunda-feira, maio 26, 2014

Voragem


"Ela aí vai, a minha estrela, aí vai a resvalar no abismo, donde não sei se a levantarei mais..." (Machado de Assis, Teatro, p.270)


segunda-feira, maio 05, 2014

Por acaso...



A professora de filosofia chega à sala de aula e pergunta:
─ Quem aqui acredita que alguma coisa nesse mundo acontece por acaso levanta a mão!
Todos levantaram...

Ela dá uns 50 minutos de aula e, em outros termos, pergunta novamente:
─ Quem aqui acredita que o acaso existe levanta a mão!
Ninguém levantou.

Fim da aula!

quarta-feira, abril 30, 2014

Por um instante...


"... pois desde que te vejo, por um instante, não me é mais possível articular uma palavra: mas minha língua se quebra e um fogo sutil desliza de repente sob a minha pele: meus olhos não têm olhar, meus ouvidos zumbem, o suor escorre pelo meu corpo, um arrepio toma conta de mim; fico mais verde do que o capim, e por pouco me sinto morrer..." 

(Safo, apud Barthes. Fragmentos de um discurso amoroso. Tradução de Hortênsia dos Santos. Rio de Janeiro: F. Alves, 1989, p.136).