domingo, junho 15, 2008

Natureza atroz, paixão atroz... dúvidas atrozes!

Esse post refere-se ao comentário que o Aguinaldo fez ao meu post imediatamente anterior a este. Ali ele levanta uma questão que é, de fato, uma verdadeira e grande pedra no meu sapato. Não estudo (ao menos suficientemente), nem estudei tanto assim as paixões humeanas para apresentar uma solução clara aos problemas que emergem de sua teoria.

Aguinaldo: sei que sua pergunta reclama uma resposta ao problema da liberdade e responsabilidade moral, um problema cuja melhor solução você acredita que é Kant quem dá. Eu, sinceramente, sou uma vacilante ainda quanto a esse ponto.

Veja bem, no fundo, não acho que você sente paixão por um time de futebol (e não é qualquer time rsr) à revelia de sua vontade, mas sim de suas paixões, o que, segundo Hume, não são a mesma coisa. Ao contrário, seguindo os passos de Hume, você estaria determinado a querer isso pela sua própria vontade e não à revelia dela. Quer dizer, sua vontade quer isso (admito que isso soa bem esquisito e que vou ter de pensar mais, pois acho que me meti numa sinuca de bico). Se algo ocorre à sua revelia (à revelia do homem Aguinaldo) são suas paixões frente a esse objeto chamado Inter, que, nesse caso, são paixões violentas e não paixões calmas ─ distinção crucial que não considerei em meu comentário anterior, assim como a distinção entre paixões fortes e fracas. Eu não queria (e continuo não querendo) entrar nessa complexa dinâmica das paixões. Gostaria apenas de lembrar que aquilo que entendemos por razão, no domínio das questões de fato, para Hume, não passa de uma paixão calma.

E, talvez, para acalmar os ânimos dos defensores da liberdade (e eu me incluo aqui, pois o meu também se exalta, principalmente quando estou violentamente apaixonada), Hume diria que “o que se chama de firmeza de caráter implica o predomínio das paixões calmas sobre as violentas” (T 2.3.3), e daí a possibilidade de regularmos nossa conduta de modo a agirmos moralmente ─ já que a moral humeana, bem entendida, repousa, em última instância, na natureza humana, em seus sentimentos de aprovação e censura, prazer e dor, quer dizer, repousa nas paixões que sentimos diante de certas ações, comportamentos, inclinações ou, digamos assim, objetos.

Diga-me, você torce pelo Inter à revelia de sua vontade? Você não quer torcer pelo Inter? Desculpe-me perguntar, não quero de modo algum ferir seus sentimentos (ou suas paixões) com minhas perguntas, mas, investiguemos... por que, então, você não passa agora a torcer para outro time de futebol? Nem é preciso que você traia seu Estado. Por que você não exerce a autonomia de sua vontade e a determina a torcer, a partir de então, pelo Grêmio (ai... calma... sorry)? Você não quer torcer pelo Grêmio? Faltam-lhe boas razões para isso? Ou será que lhe faltam paixões? Sua vontade não é livre para querer diferentemente? Onde está, ao menos nesse caso, a sua autonomia volitiva?

Ai, que dúvidas atrozes! Minha vontade é ou não livre? Eu posso ou não querer diferentemente do que quero? Ai, como eu sofro... shuiff!

segunda-feira, junho 02, 2008

Triste Consolo


O post abaixo é comentário ao post "Por que sofrer com o futebol", publicado por Aguinaldo Pavão em seu blog http://agguinaldopavao.blogspot.com/ em 25/05/2008.

Agui, o post é uma graça, principalmente aquela parte em que você diz “sinto paixão por uma mulher que estuda os Diálogos sobre a Religião Natural de Hume”. Não sei por que razão, mas essa é a parte que mais gostei rsrsrs. A pior, e essa é claro que não gostei, é quando você diz saber “que há uma razão para sentir paixão por mulheres”, no plural. Essa eu anotei no meu caderninho negro grhgrhgrh (só espero não ser, por causa disso, processada por preconceito racial rsrs).

Mas o ponto que me interessa aqui é a lembrança que o post traz de Hume. Será que ele poderia amenizar esse seu sofrimento oferecendo uma explicação que o auxilie a compreender melhor as “razões escravas” dessa sua paixão pelo Inter? Sei não!

Você pergunta: “Por que sofrer com mais uma derrota do Inter? Porque tenho paixão pelo Inter. Mas a resposta não me satisfaz. Por que eu deveria sentir paixão por um time de futebol?”

Bom, a respeito dessas perguntas de índole apaixonada, bem sabe você que paixões não se sentem por dever. E acho que Hume diria que as razões que justificam essa sua paixão pelo Inter incluem também razões biológicas (embora, evidentemente, estas não dêem ensejo a nenhuma procriação hahaha), ou melhor, razões naturais. Explico:

Segundo Hume, as paixões e outras emoções semelhantes são impressões secundárias ou reflexivas que procedem de determinadas impressões originais, e pela interposição de idéias (T.2.1.1). Acredito que a paixão pelo time de futebol de seu Estado envolva uma diversificada gama de paixões, como por exemplo, a do amor e do orgulho (pela vitória do time da sua terra adorada, idolatrada, salve, salve rsrsr, não resisti), chamadas de paixões indiretas; a da tristeza (quando o time perde) e da alegria (quando vence), a esperança (de que irá vencer), o medo (de perder), o desespero e a confiança, ou seja, as paixões diretas. Estas, de acordo com a divisão humeana, são as que nascem imediatamente do bem e do mal, da dor ou do prazer.

Nesse caso, acho que não dá para negar (e nem é preciso confessar) que quando seu time perde você sente dor e tristeza, e, quando vence, seu amor e entusiasmo por ele se intensificam, seu coração se enche de alegria e orgulho. Ah... quanta paixão!

É curioso que Hume diga que os objetos do amor e do ódio se dirigem sempre a algum ser sensível exterior a nós. Ora, um time de futebol não é exatamente um ser sensível, mas uma união de seres sensíveis unidos num só time de seres. Hume diz também que as paixões compreendem “qualquer objeto que tenha conosco a menor aliança ou relação”. A teoria parece subsistir aqui.

Hume dá uma longa e complexa explicação sobre essa dinâmica das paixões. Busca as causas e objetos de cada uma delas. Mas não quero entrar nesses detalhes. Meu propósito aqui é apenas assinalar que “nas variações e disposições naturais da mente”, ao passar por diversas impressões, sensações ou emoções, ao produzir idéias e fazer associações entre elas, as razões de sua paixão pelo Inter dependem da constituição primitiva de sua natureza, ou seja, do modo como você se deixa afetar por este objeto que te faz sentir prazer e dor, euforia e decepção. Ora, você não deveria sofrer! Você não deveria sentir paixão pelo Inter: simplesmente você sente e sofre, sem dever e sem, talvez, propriamente querer. Tudo por causa da sua natureza humana hehehe! Um beijo!

terça-feira, maio 13, 2008

Beleza e simplicidade


















Segue comentário ao post (logo abaixo) sobre os Essays de Montaigne.

Inspirado, Aguinaldo assinala: eu gosto de uma passagem dos Ensaios em que Montaigne diz:

“Em casa, passo muito tempo na biblioteca, de onde, de um golpe de vista, observo tudo o que ocorre em minha propriedade. Da entrada descortino o jardim, o galinheiro, o pátio e a maior parte dos cômodos. Ora folheio um livro, ora outro, sem ordem, ao acaso. Ora sonho, ora tomo notas ou dito, passeando, os devaneios que aqui se registram. Essa biblioteca situa-se no terceiro andar de uma torre. [...] Aí passo boa parte das horas e dos dias [...] Qualquer retiro exige um espaço para passear; meus pensamentos cochilam quando sento; meu espírito não anda sozinho, parece–me que o movimento é que o excita e força a trabalhar. [...] O cômodo, a não ser na parte em que se encontram a mesa e a cadeira, tem uma forma circular, o que me permite ver todos os livros dispostos em cinco filas de prateleiras. [...] É meu covil; procuro fazer desse recanto um domínio pessoal, e subtraí-lo à comunidade conjugal e filial” 

Montaigne | Essays | Da companhia dos homens, das mulheres e dos livros | Livro III | Cap. III

segunda-feira, maio 05, 2008

Sobre os Essays, de Michel de Montaigne


Que figura fantástica! Num desses meus ataques de curiosidade, por conta de uma simples palavra, entrei no oráculo google e coloquei aquela palavrinha curiosa ali, a fim de fazer uma pesquisa. Eu procurava o significado específico do termo uneasiness (traduzido por inquietude, inquietação, intranqüilidade, desassossego, desconforto), visto que um texto sobre Locke me remetia ao significado que Malebranche dava a ele. Precisamente inquietude.

No entanto, minhas pesquisas levaram-me a encontrar o termo, não por acaso, em alguns links sobre Montaigne. E ali mergulhei. Li pequenos ensaios sobre ensaios. Uma coletânea. E foi inevitável. Ali, eu me identifiquei.
Já conhecia alguns Ensaios de Montaigne. Mas, ali, soube que foi ele quem criou o gênero Essays. Do alto da torre de seu castelo Montaigne recolheu-se em "uma melancólica disposição de espírito" e passou a escrever.

Nasceram os Ensaios: "uma expressão da alma humana, inacabada e insatisfeita, sucessivamente tentando, errando e aprendendo. Por meio do ensaio, imprime-se a imperfeição de maneira tão insistente que não mentiria se dissesse que ela é objeto de uma procura" (Dutra, Luíza M. Das amarras da liberdade. In: Ensaios em Arte final. BH: Fale/UFMG, 2002).

"Com total liberdade criativa, [Montaigne] lançou-se à saborosa tarefa de interpretar o mundo, elucidando suas facetas ao expor a própria visão da realidade. Nos Essays, ele inova, fazendo da digressão uma arte. O ensaio toma forma a partir daí, embora não possa ser facilmente caracterizado: um passeio por idéias e temas variados, que nunca encerra em si uma visão acabada do mundo, mas um sublime contemplar" (Horta, Ricardo Lins. Passeios Possíveis. In: Ensaios em arte final. BH: Fale/UFMG, 2002).

"Montaigne..., então, projetava-se em sua obra até que essa passava a se confundir com o próprio autor. Afinal, como ele próprio afirmou Je suis moi-même la matière de mon livre. Mosaico pessoal, impressionista e leve, que exprime a reação íntima de um indivíduo ante a realidade, ante os sentimentos ou ante as cotidianeidades da vida, sem estrutura clara ou preestabelecida, já que, também na vida, nada é assim tão claro e definido, ao contrário, o que não nos faltam são incertezas e indefinições.[...] E nesse trajeto rumo aos ensaios, é certo que de um aspecto jamais se poderá prescindir: a subjetividade. Após quatro longos séculos, o ensaio ainda pede, exige, que o autor se exponha, se mostre. É preciso que se esteja lá, no texto, ainda que o texto não trate de si”. Francisco, Denis Leandro. Ensaiando sobre Ensaio. In: Ensaios em arte final. BH: Fale/UFMG, 2002).

Depois de me reconhecer nos ensaios, do térreo de meu apartamentinho, abandonei por mais um tempo o texto de Locke e fui ler novamente alguns ensaios de Montaigne. Um deleite só!

O link no qual encontrei os (32) Ensaios em arte final (frutos de uma oficina de textos) organizados por Regina Lúcia Péret Dell’Isola, é: 

http://www.letras.ufmg.br/site/publicacoes/download/ensaioemartes.pdf

terça-feira, janeiro 08, 2008

Essa sou eu!


A bem da verdade eu menti. Disse que estava acometida por um mental block. Isso não passou de uma desculpa esfarrapada, estratégia (bem ruinzinha, confesso) para justificar o tempo em que andei sumida. Posso até ter vários blocks, isso não vem ao caso, mas minha mente não costuma ficar bloqueada, ao contrário, vive em constante atividade, haja vista o fato de eu ser uma amante da sabedoria (embora a tenha muito pouco), das boas, belas e profundas idéias, palavras, frases, parágrafos, teses, contos, romances, explicações, paradoxos (ich, provavelmente alguém deve estar me achando volúvel rsrsr). E eu acho que sou mesmo, ao menos nesse sentido!

A bem da verdade, eu entrei em crise com meu blog. Ele funciona pra mim como um alter ego. Comecei a achar que alguma coisa não ia bem com ele (rsr um pequeno problema de relacionamento).

Dizem que a gente deve escrever com uma certa constância, ainda que mínima, para poder manter os leitores e fazer valer o canal de comunicação. Pois é, entrei em crise porque não gostei, nesse caso, da idéia de dever, de ter de escrever para. Fiquei me cobrando... de mal comigo e com meu alter ego.

Para mim, escrever (ao menos num blog) tem de ser por puro prazer e de modo espontâneo, como faço agora e fiz nos outros posts. Há casos em que a gente escreve por pressão, como quando temos que entregar um texto, um trabalho, um capítulo de uma dissertação, uma tese inteira (deixemos isso para a Academia). Bom... na academia ou num blog, pra quem gosta do ofício, sempre há prazer (embora, muitas vezes, também comporte dor). O problema é que comecei a achar que ao ser espontânea estaria, ao mesmo tempo, me expondo demais. De novo algo não ia bem. Agora era com o meu superego. Maldito superego! Você me fez perder o sono! (Preciso me livrar dele, não do Alter, sim do Super).

Domingo passado, numa conversa de bar com meu namorado e minha amiga Carina conversamos sobre nossos blogs. Cada um falou um pouquinho do seu e do dos outros. Eles me disseram: e daí que você está se expondo? É assim mesmo... mande ver! e dane-se rsrs!



Isso me fez lembrar uma frase tocante: "[...] Que se afunde Roma no Tibre e de seus gonzos salte a gigantesca abóboda do império!" (Shakespeare. Antônio e Cleópatra).

quinta-feira, dezembro 20, 2007

Mental Block



Esta é a bela teia de aranha que se formou aqui enquanto permaneço com este mental block. Mas não se desesperem (rsrsrs quem vê pensa...), e não me abandonem, é passageiro!

sábado, outubro 13, 2007

Operações da Matéria e Ações da Mente: A Tese Humeana da Unidade Explicativa



Unioeste: Campus de Toledo: de 15/10/2007 a 19/10/2007

Resumo: Hume oferece na Investigação sobre o Entendimento Humano (IEH) e no Tratado da Natureza Humana (T) importantes reflexões que visam elucidar a controversa relação entre liberdade e necessidade — ou seja, em que sentido esses conceitos são compatíveis ou incompatíveis. Hume, em seu exame das noções de liberdade e necessidade anuncia introduzir novidades que prometem ao menos algum resultado na decisão dessa controvérsia. Ele propõe um “projeto de reconciliação (reconciling project)” que consiste em mostrar que liberdade e necessidade são perfeitamente compatíveis entre si, e que afirmar que as ações humanas são livres não é afirmar que estejam misteriosamente fora do âmbito da necessidade, mas apenas que se realizaram sem constrangimento. A chave para a reconciliação humeana verteria sobre o significado da palavra ‘necessidade’ em sua discussão sobre a necessidade causal - uma consideração que torna a causação das ações compatível com a liberdade. Do ponto de vista humeano, não é preciso, nem justificável, qualquer comprometimento ontológico com a existência de um poder causal nos objetos ou a adesão à velha metafísica das causas primeiras. A necessidade é uma idéia e, como tal, só pode ser encontrada na mente de quem observa as coisas e não nas próprias coisas. Segundo Hume, nada que possamos observar em um objeto ou evento anteriormente à experiência provê uma razão para esperarmos que algum tipo de efeito se siga necessariamente a outro. Percebemos tão-somente conjunções constantes entre aquilo que costumamos designar como causa e seu efeito e, através disso, percebemos que um evento segue-se regularmente a outro. Os princípios epistemológicos que fundamentam a teoria de conhecimento humeana, relativos às idéias de liberdade e necessidade, são os mesmos para ações dos corpos e ações da mente. Nesse sentido, há, na teoria de Hume, um monismo explicativo ou metodológico, ou, como se poderia dizer, um monismo epistemológico. Hume mostra que a partir da inferência das motivações para as ações voluntárias podemos explicar o conhecimento histórico, a política, o fundamento da moral e a crítica estética. É evidente que não escapa a Hume a impossibilidade de explicar todos os aspectos da vida humana. O que ele busca é uma estrutura geral dentro da qual essa tarefa pode ser feita. A ciência humeana do homem intenta explicar os diversos fenômenos da vida humana apelando a princípios gerais, tal como a teoria newtoniana proveu explicações de por que as coisas no mundo da natureza acontecem como acontecem. Pode-se dividir a disputa sobre a necessidade e liberdade em dois problemas: um de ordem epistemológica e outro de ordem moral. O epistemológico é se as ações humanas são, de fato, causalmente determinadas por condições antecedentes. O moral refere-se às implicações do determinismo para a moralidade em geral e, especialmente, para a responsabilidade moral. Nesta comunicação pretendo discutir as conseqüências epistemológicas do compatibilismo humeano.

domingo, julho 22, 2007

A filosofia e a morte


[ Natureza Morta com Livros | Fernando Botero ]

Este pequeno espaço do meu quarto, no qual durmo, sonho e estudo, guarda muitos assuntos. Vocês sabem, uma de minhas principais atividades é estudar filosofia. Ao pensar num desses assuntos para escrever neste blog (que aliás estava formando teias de aranha, de tanto tempo faz que não escrevo) resolvi folhear uma de minhas cadernetas de anotações. Ao folheá-las encontrei várias notas sobre diversos autores e temas. Leio várias observações sobre Hume. Continuo a folhear e dou de cara com alguns parágrafos que traduzi de um texto de Penelhum, depois de J. Bricke, Barry Stroud, Georges Dicker, enfim, leio uma variedade de pequenos comentários. Percebo que quase toda ela, ao menos esta caderneta que está agora em minhas mãos (tenho várias, e elas marcam sempre um período de estudos), consiste em anotações sobre Hume e seus comentadores, ou seja, comecei a escrever nesta por ocasião do meu mestrado. Folheio mais um pouco e encontro questões, dúvidas, termos desconhecidos, expressões estrangeiras, latim, grego, inglês, francês - quase chego a acreditar que sou erudita mesmo (e principalmente modesta rsrsrsr). Mas eu não sou nada disso, nem erudita e nem modesta hahaha. Mais algumas páginas e encontro já algumas observações sobre o meu doutorado, especialmente indicações bibliográficas que deverão ser consideradas. A cada página um cabedal de digressões, divagações e excursões que vão de Heráclito, Parmênides e Platão, a Agostinho, Tomás de Aquino, Descartes... Enfim, esse caderninho contém um pequeno diálogo sobre esse grande diálogo que é a história da filosofia: ele traz uma pluralidade de vozes, autores, teorias, pensamentos e opiniões.


Bom, como quem brinca de mamãe mandou escolher aquele ali, mas como eu sou teimosa escolho este daqui, penso em expor algumas notas que fiz sobre Epicuro. A que mais me chama a atenção neste momento diz respeito à morte. Pensar na morte é para mim, num certo sentido, pensar na vida, na minha vida, na vida dos outros e na vida em geral. E eu estou particularmente inspirada pelo mais recente e nefasto acontecimento do maior acidente, até então, da história da aviação brasileira. Fiquei a pensar se as palavras de Epicuro poderiam servir de consolo àqueles que no momento sofrem a trágica perda de seus entes queridos.

Diz Epicuro (341-270 a.C): “Habitua-te a pensar que a morte nada é para nós, visto que todo o mal e todo o bem se encontram na sensibilidade: e a morte é a privação da sensibilidade" (Antologia de Textos, p.14). Quer dizer, a morte é simplesmente a dissolução do agregado corpóreo a que pertence a sensibilidade. Dessa perspectiva, a morte não existe para nós enquanto vivemos, assim como não existimos para ela quando surge, uma vez que já não existe sensibilidade ou capacidade de sofrimento.


Bom, certamente esse trecho, se não de maneira impossível, dificilmente contribuiria para amenizar a dor daqueles que sofrem a perda de pessoas queridas. Penso que essa passagem, se bem compreendida e experimentada, é capaz de tocar apenas o próprio espírito (talvez, apenas, de um espírito sobre-humano), e é apenas este, ao pensar na própria morte (e que para isso tem de estar vivo), que pode alcançar aquela imperturbabilidade de espírito (ataraxia) conquistada pelo domínio de si.

Ora, para Epicuro, a filosofia tem função terapêutica e deve libertar a alma (ou o espírito) das perturbações que a abalam. É o que se depreende da afirmação “Deves servir à filosofia para alcançar a verdadeira liberdade” (Antologia de Textos, p.13). Nesta obra encontramos também a seguinte declaração: “Assim como realmente a medicina em nada beneficia se não liberta dos males do corpo, assim também sucede com a filosofia se não liberta das paixões da alma” (p.13). Tais males e paixões que nos dominam têm suas origens naquilo que Epicuro chama de quatro erros ou falsas opiniões, a saber, o temor dos deuses, o medo da morte, o desejo ardente de prazeres e o pesar pelas dores. No caso daqueles que sofrem a morte de seus entes queridos é o pesar pelas dores da perda e a saudade que tristemente perturbam seus inconsoláveis espíritos.

quinta-feira, maio 24, 2007

Schopenhauer e o pessimismo


Numa de minhas postagens abaixo “A destruição do mundo ou um arranhão em meu dedo?”, usei a expressão punctum pruriens vista uma única vez no suplemento 17 (referência ao § 15) que Schopenhauer faz ao livro I do Mundo Como Vontade e Representação. Quando me servi dela prometi explicar depois o que significa. E aqui estou, depois de um longo e luminoso verão, para cumprir minha promessa.


Li essa expressão quando estudava a Teoria da Liberdade da Vontade de Schopenhauer – objeto do meu TCC. Ela me tocou sensivelmente porque, além da passagem em que a expressão se encontra ser extremamente bela, como eu não sou versada em latim, fiquei incomodada e curiosa para entendê-la. A expressão aparece na seguinte passagem:


"O espanto filosófico é, no fundo, uma estupefação dolorosa; a filosofia começa, como a abertura de Don Juan, por um acorde menor... É o mal moral, o sofrimento e a morte que conferem ao espanto filosófico sua qualidade e sua intensidade particulares; o punctum pruriens da metafísica, o problema que enche a humanidade de uma inquietude que nem o ceticismo nem o criticismo poderiam aplacar; consiste em se perguntar não somente por que o mundo existe, mas também por que ele é pleno de tantas misérias." (Schopenhauer apud Rosset | Schopenhauer, philosophe de l'absurd | p.18)

Este trecho se apresenta de uma profundidade abissal. Ele atinge o ponto nevrálgico do pessimismo schopenhaueriano. Como se sabe, para Schopenhauer, “o sentido mais próximo e imediato de nossa vida...” (PP, §148, 277) é o sofrimento. Trata-se do modo como ele concebe a existência, isto é, como uma dor infinita, um sofrimento inexorável. A felicidade, prazer ou bem-estar é avaliado pelo autor como ausência de sofrimento. Nesse sentido o fundamento destes é negativo, em oposição à positividade da dor. Para ele o sofrimento banha o mundo. A existência é falta, carência, desejo insaciável e necessidade. Quer dizer, prevalece a dor e o sofrimento. No § 65 do MVR, Schopenhauer diz: “Com efeito, o que é um sofrimento? Apenas uma vontade que não está satisfeita, e que está contrariada”.

Punctum pruriens significa ponto pruriente, de prurido mesmo. Aquele ponto que nos queima, seja pelo calor ou pelo frio. Vocês já ouviram falar de inferno gelado? Pois é, em geral quando pensamos em inferno, nos vemos logo ardendo em chamas. Mas o gelo também dói e queima, o que me faz lembrar a representação que os budistas fazem dos vários infernos, incluindo aí a idéia de um inferno gelado. Ou seja, punctum pruriens é aquele ponto que nos faz sentir comichão, que nos incomoda insuportavelmente, que nos faz desejar algo ardentemente, seja em alcançar ou possuir algo, seja em nos livrar de algo. Quando Schopenhauer diz que a filosofia começa, como a abertura de Don Juan, por um acorde menor (registre-se que na música o acorde menor é mais denso e dramático, o que indica uma certa tensão), penso que ele está a dizer que o despertar filosófico se dá quando nos deparamos com a dor infinita que é a existência. A afirmação de que o mal moral, o sofrimento e a morte são o punctum pruriens da metafísica (lembremos que o núcleo do sistema filosófico de Schopenhauer é a metafísica da vontade) corresponde, a meu ver, à tese de que a consciência trágica, oriunda da certeza ontológica que o homem tem da morte, mais a consideração da dor perpétua e da miséria da vida são o que dão o mais forte impulso ao pensamento filosófico e à explicação metafísica do mundo.

Agora, se estou ou não de acordo com esta concepção da existência seria matéria para um outro post


quarta-feira, abril 11, 2007

Artigo na Dissertatio (UFPel)



Segue abaixo artigo meu publicado na Revista Dissertatio de Filosofia da Universidade Federal de Pelotas [n.24]

O Compatibilismo em Hobbes
 

Resumo: De acordo com Hobbes, a liberdade deve ser entendida como ausência de impedimento ao movimento de um corpo qualquer. O autor de Of Liberty and Necessity acredita que todas as coisas que acontecem, incluindo toda ação humana, são efeitos necessários de causas antecedentes. Ele não reconhece a existência de uma vontade livre, embora admita que existam ações livres. Hobbes pensa, como compatibilista, que a liberdade da ação é consistente e compatível com a necessidade. Neste artigo faço uma análise dessa concepção.

Palavras-chave: compatibilismo, necessidade, liberdade, ação, responsabilidade moral

segunda-feira, abril 02, 2007

A destruição do mundo ou um arranhão em meu dedo?


Numa noite dessas recebi um telefonema do Aguinaldo dizendo que ao tentar trocar a lâmpada da cozinha cortou de maneira dramática seu dedo no lustre. É claro que o drama maior estava no modo como ele contava do que propriamente no corte. Ele tem o poder de deixar a gente sem saber qual é mesmo a verdade, se está a brincar e, se pudermos falar em graus de verdade, qual é esse grau. Fiquei um tanto desconcertada porque, a distância (e eu estava impossibilitada de ir até lá), não poderia fazer nada, a não ser dizer algumas palavras de conforto. Na manhã seguinte enviei-lhe um e-mail assim:
- Bom dia! Sarou o dedinho? Precisa de algo? Beijos!

E ele, com aquela sempre endiabrada mente filosófica, enviou-me a provocação que se segue:
- Oi. Segundo o grande filósofo escocês, "não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo" (T: 2. 3. 3). O que você acha? A mim, não convence. O meu dedo está bom. Beijo.

Aguinaldo sabia que eu conhecia essa passagem do Tratado da Natureza Humana de Hume. Ele sabia também que sua provocação atingiria meu punctum pruriens (explico depois o que isso significa), afinal, eu já havia me incomodado muito com essa passagem. Fui lá no Tratado conferir e apresentei-lhe a seguinte resposta como conclusão (passível de revisão, é claro!).

Caro Aguinaldo: a mim também não convence. E nem acho que Hume queira mesmo nos convencer disso. A meu ver, a afirmação é capciosa e serve de estratagema para corroborar sua tese de que as paixões, como móbiles das ações, têm primazia sobre a razão, ou seja, de que “a razão é, e deve ser, apenas a escrava das paixões, e não pode aspirar a outra função além de servir e obedecer a elas” (TNH: 2.3.3)

O que Hume está a dizer? Que a razão não se opõe à preferência da destruição do mundo e que é perfeitamente natural e legítimo optarmos por ela em vez de arranharmos um dedo? Ou que a perspectiva de virmos a sentir dor em conseqüência de um arranhão no dedo tem mais poder e influência sobre nós do que a perspectiva racional de preferir a destruição do mundo?

Ora, não vejo (e acredito que Hume também não vê) como a idéia de destruição do mundo possa envolver somente a razão. A meu ver essa perspectiva inevitavelmente envolve paixão, pois a destruição do mundo todo (ao menos para um ser humano) implica uma perspectiva de dor e, portanto, uma paixão - por certo muito maior do que a de um arranhão em meu dedo. Talvez essa afirmação possa valer para a alma de um egoísta facínora (ou seja, para a alma de um desalmado rsrsr, e o que é pior, completamente irracional, pois não posso compreender como alguém pode preferir a destruição do mundo sendo racional), mas não para a de um ser humano mortal e comum, dotado de razão e sensibilidade.

Ademais, se tomarmos ipses litteris a afirmação em pauta, sem levarmos em conta o que vem antes e o que vem depois, penso que as próprias explicações de Hume destruir-se-iam a si mesmas - e não acredito que Hume cometeria um deslize tão crasso como esse.

Veja só: ele diz que “... a razão, sozinha, não pode nunca ser motivo para uma ação da vontade...” (TNH: 2.3.3). Pois bem, como eu já disse, não me parece possível que só a razão intervenha na preferência da destruição do mundo todo. “E, em segundo lugar, que [a razão] nunca poderia se opor à paixão na direção da vontade” (TNH: 2.3.3).

Ora, ao preferirmos a destruição do mundo não é a vontade de destruí-lo que está a se exercer? Se não for assim, teríamos de dizer que a razão sozinha influenciou a preferência da ação de destruir o mundo. Como você pode ver, ela teria agido sozinha, completamente depurada de vontade, e como ele mesmo diz, “a razão sozinha não pode produzir nenhuma ação nem gerar uma volição e é igualmente incapaz de impedir uma volição ou de disputar nossa preferência com qualquer paixão ou emoção” (TNH: 2.3.3).

A bem da verdade, penso que o que Hume está a dizer quando afirma que “não é contrário à razão eu preferir a destruição do mundo inteiro a um arranhão em meu dedo”, ele está apenas querendo mostrar que é contrário à minha paixão preferir a destruição do mundo, ou seja, que a paixão de não destruí-lo tem de intervir com muito mais força sobre a perspectiva passional de um arranhão em meu dedo.

Um beijo!

sexta-feira, março 23, 2007

Fluxo e refluxo do politeísmo e monoteísmo


Na História Natural da Religião [1757] Hume trata todas as crenças religiosas como meros produtos da natureza humana. Nessa obra, Hume sustenta que a religião tem por base fatores psicológicos completamente independentes de um fundamento racional. Ao afirmar isso, Hume vai de encontro à tese segundo a qual as pessoas são levadas à crença religiosa pela contemplação racional do universo. Para Hume, as religiões populares têm origem nas paixões humanas mais primitivas e básicas, como por exemplo, nas paixões do medo e da esperança. Sendo assim, a origem das religiões populares não está, para Hume, numa tentativa de entendimento racional do universo, mas sim no medo de influências desconhecidas sobre a sociedade humana. Para demonstrar isso, Hume faz uma narrativa histórico-filosófica digna de nota. Conforme assinala Jaimir Conte (tradutor da obra), a perspectiva segundo a qual a crença é entendida como produto da natureza humana, “busca justamente as origens e causas que produzem o fenômeno da religião, seus efeitos sobre a vida e a conduta humanas e as variações cíclicas entre o politeísmo [considerado a ‘religião original dos homens’] e o monoteísmo”.


Bom, nada melhor do que dar voz ao próprio Hume para confirmar a propaganda gratuita que faço aqui de sua obra:

“Deve-se assinalar que os princípios religiosos sofrem uma espécie de fluxo e refluxo no espírito humano, e que os homens têm uma tendência natural de elevar-se da idolatria [que é o mesmo que politeísmo] para o monoteísmo, e recair de novo do monoteísmo para a idolatria. O vulgo, ou seja, na verdade todos os homens exceto uns poucos, por falta de conhecimento e de instrução, nunca levantam os olhos para o céu, nem investigam a estrutura oculta dos vegetais e dos corpos dos animais, a ponto de chegar a descobrir um espírito supremo ou uma providência originária que conferiu ordem a todas as partes da natureza. Eles observam essa obra admirável de um ponto de vista mais limitado e egoísta, e, descobrindo que sua própria felicidade e desgraça dependem de influências secretas e do concurso imprevisto dos objetos exteriores, examinam com atenção perpétua as causas desconhecidas, que, por meio de sua poderosa mas silenciosa operação, governam todos os fenômenos naturais e distribuem o prazer e a dor, o bem e o mal. Essas causas desconhecidas também são invocadas em todos os momentos difíceis; e essas formas gerais e imagens confusas constituem o objeto eterno de nossas esperanças e temores, de nossos desejos e apreensões. Pouco a pouco, a imaginação ativa dos homens, incomodada por essa concepção abstrata dos objetos, dos quais constantemente se ocupa, começa a torná-los mais precisos e a revesti-los com formas mais adequadas a sua compreensão natural. Ela os representa, então, como seres sensíveis e inteligentes, semelhantes às oferendas e às súplicas, às pregações e aos sacrifícios. Eis aqui a origem da religião e, conseqüentemente, da idolatria ou do politeísmo” (História Natural da Religião, seção 8, p.71-71-grifei).

sexta-feira, janeiro 12, 2007

Operações do universo mental


"Nada, à primeira vista, pode parecer mais ilimitado que o pensamento humano, que não apenas escapa a todo poder e autoridade dos homens, mas está livre até mesmo dos limites da natureza e da realidade. Formar monstros e juntar as mais incongruentes formas e aparências não custa à imaginação mais esforço do que conceber os objetos mais naturais e familiares. E enquanto o corpo está confinado a um único planeta, sobre o qual rasteja com dor e dificuldade, o pensamento pode instantaneamente transportar-nos às mais distantes regiões do universo, ou mesmo para além do universo, até o caos desmedido onde se supõe que a natureza jaz em total confusão”.


Este belo trecho do § 4 da seção II da IEH de Hume me faz pensar que, aqui, o próprio pensar, isto é, o modo como ele se exerce, é aqui objeto de pensamento e explicação. 

Segundo Hume, nossa mente, “constituída unicamente de percepções sucessivas” (TNH 1.4.6.4), tem em seu aparato cognitivo duas fundamentais faculdades: a da imaginação e a da memória. Com elas, a mente opera da seguinte forma: copia as idéias fornecidas pelos sentidos, armazena-as na memória - que funciona como um arquivo de dados (que se oferecem à mente), no caso aqui, como um arquivo de idéias. Daí a faculdade da imaginação serve-se dessas idéias armazenadas (e também daquelas que a mente constantemente copia das sensações), estabelecendo certas relações que, num jogo de reflexões e/ou associações, mistura, combina, separa, divide, transpõe, reduz ou estende essas idéias que, por sua vez, dão origem a novas impressões e idéias. Assim, mas evidentemente não de maneira tão simples, Hume nos mostra como a mente opera na aquisição do conhecimento das coisas e do mundo e, ainda, como ela ultrapassa “os limites da natureza e realidade” criando deuses, formando anjos, dragões, demônios, cavalos alados e, se se quiser, as mais diversas barbaridades.


sexta-feira, dezembro 15, 2006

Sobre o fim do mundo VII, VIII e IX (continuação e fim)


VII - Você acredita na extinção da raça humana? 




[abaixo deste post seguem cinco outros posts com as questões de I a VI].

De acordo com tudo que falei acima (no blog é abaixo) acho possível que ela se extinga, mas a curto prazo, pouco provável. Se com as pesquisas sabemos que os recursos naturais estão esgotados 25 % a mais da capacidade regenerativa do planeta, com uma sóbria, eficiente e responsável política de preservação ambiental poder-se-ia reverter esse quadro, pois sabemos também que a natureza tem uma poderosa capacidade regenerativa. Se há interesse em preservá-lo (e eu acredito que há), o mínimo que deveríamos fazer para reverter esse quadro seria nos servir de recursos adequados, ou seja, a meu ver, nossa inteligência e conhecimento científico. Ora, não dá para ficar rezando!

VIII - O fato de o fim do mundo ser presente na vida humana desde o início da civilização se deve a quê?

É importante que se perceba que o fim do mundo não é, para nós, um fato, mas sim uma idéia, e penso que essa idéia vem de uma reflexão sobre outras idéias. Talvez, e, principalmente, das idéias de finitude e mortalidade, como já disse acima (aqui é abaixo).

IX - Se você soubesse o dia exato em que o mundo iria acabar o que você faria?



Essa questão me incomodou bastante. Num primeiro momento pensei: não tenho a mínima idéia. Mas, pensando bem, começaram a chover idéias na minha cabeça. Tantas que, por uma certa preguiça, preferi responder que sinceramente não sabia. E depois que dependeria da informação de quando isso pudesse vir a acontecer. E daí as perguntas e respostas começaram a me parecer circulares. E resolvi encerrar o assunto... só não disse que se essa possibilidade fosse imediata, como qualquer mortal comum, provavelmente, eu me desesperaria.


C’est fini!


sábado, dezembro 02, 2006

Não desistam de mim...


Gente! Estou mesmo de pernas para o ar, mas não desistam de mim. Apesar de estar sendo esmagada pelo tempo, ou melhor, pela falta de tempo, eu não desisti de escrever para vocês. Sei que estou a dever, mas eu pagarei (não sei quando, mas será logo). Só preciso de um tempo para recuperar o fôlego (e o próprio tempo). Sabem como é, conforme eu já disse lá embaixo, pensar dá trabalho, escrever então... nem se fala. E requer o implacável tempo, esse dono do mundo, como diz o Dr. Fantástico! Aguardem-me, please!
Beijos.

quarta-feira, novembro 08, 2006

Imortalidade, eternidade e perfeição


Peço licença aos meus caros e seletos leitores para interromper essa entrevista sobre o fim do mundo - faltam apenas três questões. Vi-me compelida a postar um comentário que fiz a um outro post , intitulado MORTE, escrito por Aguinaldo Pavão em seu blog http://agguinaldopavao.blogspot.com.br/2006/11/morte.html .

Para evitar muitas explicações, peço que vocês leiam a postagem dele que, como o próprio título revela, é uma reflexão sobre a morte, e, a partir da idéia da morte, uma reflexão sobre a imortalidade e a eternidade. 

O texto, pensado e escrito com aquela agudeza peculiar do pensador-escritor, suscitou talentosos comentários entre alguns colegas e amigos. Vale conferir. E eu não resisti a fazer um comentário também, mas a título ilustrativo apenas. Permiti-me postá-lo no meio dessa entrevista porque, se vocês notarem, logo na primeira questão sobre o fim do mundo, eu mesma assinalei que o assunto era instigante porque nos levava a pensar nos conceitos de finitude, infinitude, mortalidade, imortalidade e eternidade. Então, segue o comentário.

Aguinaldo. Parece-me que a reflexão sobre a morte é mesmo inevitável. E eu me inclino a concordar contigo, embora titubeie com a idéia contrária. A idéia da Carina me parece boa, poderíamos viver ao menos um pouco mais (150 anos me parece bom rs, aumentei um pouquinho) e melhor. Mas o que eu gostaria de lembrar é que seu post vem ao encontro do maravilhoso conto “A Perfeição”, de Eça de Queiroz que, por sua vez, versa sobre os oito anos que Ulisses passou na divina Ilha de Ogígia, chegando lá depois que “o raio fulgente de Júpiter fendera a sua nave de alta proa vermelha, e ele, agarrado ao mastro partido, trambolhara na braveza mugidora das espumas sombrias, durante nove dias, durante nove noites, até que boiara em águas mais calmas, e tocara as areias daquela ilha onde a imortal Calipso, a Deusa radiosa, o recolhera e amara” (p. 262).

O conto é magnífico (não resisti a transcrever as partes mais emocionantes) e mostra o tédio, a dor e a tristeza de Ulisses (homem de tão rutilantes feitos) “jazendo numa ilha mole... mais lânguida que uma cesta de rosas...” (pp. 265-266), após ter sido aprisionado pela Deusa que o “presenteou” com a imortalidade.

No entanto, para Ulisses, a imortalidade não se apresentava como um presente, mas sim como uma miserável tortura, pois ele não suportava a “inefável paz e beleza imortal... “ e “com os olhos perdidos nas águas lustrosas, amargamente gemia , revolvendo o queixume do seu coração...” (p. 262) até que, de repente, um Deus descera, um grande Deus, o leve e eloqüente Mercúrio, o Mensageiro dos Deuses, descera a mando do tempestuoso Júpiter, incumbido de dar um recado à Deusa ditosa. O recado é o seguinte:

“Oh, Deusa ... o destino deste herói não é ficar na ociosidade imortal do teu leito, longe daqueles que o choram, e que carecem da sua força e manhas divinas. Por isso, Júpiter, regulador da Ordem, te ordena, oh Deusa, que soltes o magnânimo Ulisses dos teus braços claros, e o restituas, com os presentes docemente devidos, à sua Ítaca amada, e à sua Penélope... (p. 269) ” Calipso, depois de lamentar profundamente a determinação do poderoso Júpiter, promete ensinar o intrépido Ulisses “a construir uma jangada segura, com que de novo fenda o dorso verde do mar...” (p. 270).

Um dos pontos mais emocionantes do conto está, a meu ver, na resposta que Ulisses dá a Calipso quando esta questiona o seu desejo de voltar à esposa mortal [pois, “as mortais brilham ante as Imortais como lâmpadas fumarentas diante de estrelas puras...” (p. 275)].

A resposta de Ulisses é simplesmente sublime, olha só:

“ Oh Deusa venerável, não te escandalizes! Perfeitamente sei que Penélope te está muito inferior em formosura, sapiência e majestade. Tu serás eternamente bela e moça, enquanto os Deuses durarem: e ela, em poucos anos, conhecerá a melancolia das rugas, dos cabelos brancos, das dores da decrepitude e dos passos que tremem apoiados a um pau que treme. O seu espírito mortal erra através da escuridão e da dúvida; tu, sob essa fronte luminosa, possuis as luminosas certezas. Mas, oh Deusa, justamente pelo que ela tem de incompleto, de frágil, de grosseiro e de mortal, eu a amo, e apeteço a sua companhia congénere! 

Considera como é penoso que, nesta mesa, cada dia, eu coma vorazmente o anho das pastagens e a fruta dos vergéis, enquanto tu ao meu lado, pela inefável superioridade da tua natureza, levas aos lábios, com lentidão soberana, a Ambrósia divina! Em oito anos, oh Deusa, nunca a tua face rebrilhou com uma alegria; nem dos teus verdes olhos rolou uma lágrima; nem bateste o pé, com irada impaciência; nem, gemendo com uma dor, te estendeste no leito macio... E assim trazes inutilizadas todas as virtudes do meu coração, pois que a tua divindade não permite que eu te congratule, te console, te sossegue, ou mesmo te esfregue o corpo dorido com o suco das ervas benéficas. Considera ainda que a tua inteligência de Deusa possui todo o saber, atinge sempre a verdade: e, durante o longo tempo que contigo dormi, nunca gozei a felicidade de te emendar, de te contradizer, e de sentir, ante a fraqueza do teu, a força do meu entendimento! Oh Deusa, tu és aquele ser terrífico que tem sempre razão! 

Considera ainda que, como Deusa, conheces todo o passado e todo o futuro dos homens: e eu não pude saborear a incomparável delícia de te contar à noite, bebendo o vinho fresco, as minhas ilustres façanhas e as minhas viagens sublimes! Oh Deusa, tu és impecável: e quando eu escorregue num tapete estendido, ou me estale uma correia da sandália, não te posso gritar, como os homens mortais gritam às esposas mortais: - ‘Foi culpa tua, mulher!’ - erguendo, em frente à lareira, um alarido cruel! Por isso sofrerei, num espírito paciente, todos os males com que os Deuses me assaltem no sombrio mar, para voltar a uma humana Penélope que eu mande, e console, e repreenda, e acuse, e contrarie, e ensine, e humilhe, e deslumbre, e por isso ame dum amor que constantemente se alimenta destes modos ondeantes, como o lume se nutre dos ventos contrários!” (pp. 275-277)

Bom, depois de vários outros diálogos e acontecimentos, já no fim do conto, Calipso faz a seguinte pergunta a Ulisses: “se em Ítaca não te esperasse a esposa tecendo e destecendo a teia, e o filho ansioso que alonga os olhos incansados para o mar, deixarias tu, oh homem prudente, esta doçura, esta paz, esta abundância e beleza imortal?” (p. 282).

Ulisses responde novamente de modo esplêndido:


“Oh Deusa, não te escandalizes! Mas ainda que não existissem, para me levar, nem filho, nem esposa, nem reino, eu afrontaria alegremente os mares e a ira dos Deuses! Porque, na verdade, oh Deusa muito ilustre, o meu coração saciado já não suporta esta paz, esta doçura e esta beleza imortal. 

Considera, oh Deusa, que em oito anos nunca vi a folhagem destas árvores amarelecer e cair. Nunca este céu rutilante se carregou de nuvens escuras; nem tive o contentamento de estender, bem abrigado, as mãos ao doce lume, enquanto a borrasca grossa batesse nos montes. Todas essas flores que brilham nas hastes airosas são as mesmas, oh Deusa, que admirei e respirei, na primeira manhã que me mostrastes estes prados perpétuos: - e há lírios que odeio, com um ódio amargo, pela impassibilidade da sua alvura eterna! Estas gaivotas repetem tão incessantemente, tão implacavelmente, o seu vôo harmonioso e branco, que eu escondo delas a face, como outros a escondem das negras Harpias! E quantas vezes me refugio no fundo da gruta, para não escutar o murmúrio sempre lânguido destes arroios sempre transparentes! 

Considera, oh Deusa, que na tua Ilha nunca encontrei um charco; um tronco apodrecido; a carcaça dum bicho morto e coberto de moscas zumbidoras. Oh Deusa, há oito anos, oito anos terríveis, estou privado de ver o trabalho, o esforço, a luta e o sofrimento... Oh Deusa, não te escandalizes! Ando esfaimado por encontrar um corpo arquejando sob um fardo; dois bois fumegantes puxando um arado; homens que se injuriem na passagem duma ponte; os braços suplicantes duma mãe que chora; um coxo, sobre a sua muleta, mendigando à porta das vilas... Deusa, há oito anos que não olho para uma sepultura... Não posso mais com esta serenidade sublime! Toda a minha alma arde no desejo do que se deforma, e se suja, e se espedaça, e se corrompe... Oh Deusa imortal, eu morro com saudades da morte!” (pp. 282-283).

E assim segue Ulisses preparando a jangada para se lançar ao mar. Ao final, Calipso, inconformada, lastima: “Quantos males te esperam, oh desgraçado! Antes ficasses, para toda a imortalidade, na minha Ilha perfeita, entre os meus braços perfeitos...” (p. 285).

Ulisses magnificamente dá seu último brado:

“Oh Deusa, o irreparável e supremo mal está na tua perfeição!” (p. 286)
“E, através da vaga, fugiu, trepou sofregamente à jangada, soltou a vela, fendeu o mar, partiu para os trabalhos, para as tormentas, para as misérias - para a delícia das coisas imperfeitas!” (p. 286)

(QUEIROZ, Eça de. A perfeição. In: Contos. Porto: Lello & Irmão – Editores, s/d).

Desculpe-me a extensão do comentário, mas foi irresistível.
Um beijo... e espero que você viva bastante (e que eu possa desfrutar da sua vida), já que não quer viver (talvez com razão, sabe-se lá) para todo o sempre!

A primeira imagem é de Ulisses enfrentando as sereias (esse episódio narrado na Odisséia acontece antes dele chegar na Ilha de Ogígia); e, a segunda, da Penélope em seus 20 anos de espera.

terça-feira, novembro 07, 2006

Sobre o fim do mundo V e VI (continuação)


V - Existiria então algum meio de salvação?

Se entendermos o fim do mundo como certo e infalível, não. Aquilo que é certo e infalível não tem como deixar de acontecer. Se o entendermos como apenas provável – uma hipótese - sim, pois na esfera das probabilidades encontra-se a contingência. Para cada evento apenas provável ao menos um evento diferente tem de se apresentar como possível e, talvez, este evento diferente viesse a se apresentar como a salvação. As hipóteses estão aí para serem confirmadas ou refutadas.


VI - Na sua opinião o fim do mundo está relacionado a atitudes humanas ou a algo divino?


Bom, como você deve ter percebido, para mim o fim do mundo pode e deve ser pensado a partir de algumas hipóteses. Sendo assim, essa resposta dependerá de qual delas eu assumo para pensar como esse fim poderia vir a acontecer. 

Não tenho a menor simpatia em relacionar o fim do mundo a algo divino. Sou bem mais simpática às teorias que a ciência oferece, como por exemplo, aquela que relaciona esse fim (do planeta terra) a eventos naturais que podem, num certo sentido, ser atribuídos (com muita cautela) a atitudes humanas de constante destruição. Porém, se de repente soubermos que um enorme meteoro vem, numa velocidade estonteante, em direção a terra, e que não há como ele não se chocar com ela, não podemos atribuir essa causa a atitudes humanas. 

Certamente muitos poderão relacionar esse fato a causas divinas, mas, como já indiquei, considero tais atribuições supersticiosas e arbitrárias. Não há nenhuma causa humana (e divina, já que não tomo essa hipótese como razoável) na prevista morte do sol (cientistas calculam que será daqui a 6,5 bilhões de anos, e que quando isso acontecer a Terra já terá sido consumida numa enorme nuvem incandescente, ao menos 1,5 bilhão de anos antes). 

Mas sabemos que os homens também têm um certo potencial de provocar paulatinamente uma destruição do mundo (ao menos em termos de planeta terra), seja esgotando irresponsavelmente os recursos naturais de modo a provocar cada vez mais catástrofes e calamidades, seja (de maneira mais radical) explodindo bombas atômicas de potências avassaladoras. 

Li outro dia que o relatório de 2006 (não sei de qual pesquisa) mostra que os seres humanos já usam dos recursos naturais do planeta 25% a mais do que a capacidade que a natureza tem de regenerá-los, o que significa que se continuarmos nesse ritmo, em 2050 (cálculo que a pesquisa fornece), precisaremos de dois planetas Terra para proverem nossas necessidades. Em vista de tudo isso, penso que é preciso determinar dimensões, proporções, e também considerar várias causas concorrentes para se responder com um mínimo de plausibilidade a essa questão.

quinta-feira, novembro 02, 2006

Sobre o fim do mundo IV (continuação)


IV - Como você imagina este dia?


Posso imaginá-lo de vários modos. Fazer simples e complexos experimentos mentais. Minha imaginação pode fornecer uma enorme variedade de representações possíveis, desde que estas não impliquem contradições absolutas. Todas aquelas catástrofes em proporções gigantescas e aniquiladoras que citei acima (no caso do blog, citado abaixo) podem ser imaginadas. 

Hume assinala em EHU 5. 2. § 10: “Nada é mais livre do que a imaginação humana, e, embora não possa ir além daquele inventário original de idéias fornecidas pelos sentidos internos e externos, ela dispõe de poder ilimitado para misturar, combinar, separar e dividir essas idéias em todas as variedades de ficção e miragens. É-lhes possível inventar uma série de acontecimentos que têm toda a aparência de realidade, atribuir-lhe uma ocorrência em um local e momento precisos, concebê-los como existentes e pintá-los para si mesma com todas as circunstâncias apropriadas a um fato histórico qualquer...”. Mas isso, ao menos a princípio, permanecerá no campo das ficções (que não se transformam em sólidas crenças) da imaginação.

Há um outro ponto que considero interessante. Veja se não é curioso:


Uma pessoa que morreu na catástrofe das Torres Gêmeas durante os atentados de 11 de setembro de 2001 pode muito bem ter pensado que estava vivendo o fim do mundo. Nem todas perceberam que aquela destruição toda era causada pelo choque de um avião e que o mundo subsistiria. Não tiveram tempo de perceber nem de colher informações sobre o que ocorria de fato. Talvez uma vítima do último Tsunami (ou qualquer outro) tenha pensado a mesma coisa, ou seja, pensou que o mundo estava sendo engolido por uma onda gigantesca e que este era não só o seu fim, mas o fim do mundo. Contudo, como já disse, de um fim particular ou de uma morte individual, não se segue o fim do todo ou a morte do mundo.

terça-feira, outubro 31, 2006

Sobre o fim do mundo III (continuação)





III - De onde você acredita que vem a necessidade de se acreditar no fim do mundo?

Eu não diria que a crença no fim do mundo é necessária, embora eu perceba que a maioria das pessoas pensa a respeito e acaba formando uma opinião sobre o assunto. A idéia de necessidade aí me parece muito forte. Necessário é aquilo que, em geral, não pode deixar de ser ou acontecer, tal como é ou acontece. Mas nem todos acreditam no fim do mundo. É preciso distinguir entre conhecer, pensar, opinar e crer no fim do mundo. Aqueles que abraçam as explicações religiosas geralmente têm crenças bem arraigadas (e provavelmente equivocadas) sobre esse suposto fim. Mas eu mesma não referendo esses discursos. A mim o fim do mundo se apresenta como um tema instigante que serve de mote para especulações que excedem os limites do nosso entendimento, haja vista a mente ter capacidade finita para conhecê-lo (em sentido estrito). Mas nem por isso eu saio por aí apelando a crenças mal fundamentadas. Prefiro colher dados e informações a respeito do tema a fim de formar opiniões plausíveis. É importante determinar como e até onde podemos conhecer os fenômenos. No caso do "possível" fenômeno do fim do mundo, a impossibilidade de conhecê-lo é patente, pois, como disse, diz respeito ao futuro. Todavia, podemos pensar, opinar e formar crenças a respeito, de acordo com as informações disponíveis. 

Li em algum lugar (desculpe-me a imprecisão, mas não me lembro onde) que o medo do fim do mundo é, digamos assim, uma versão cósmica do temor da morte individual. A explicação é interessante. Quer dizer, a partir da consciência de nossa finitude e experiência da finitude de outros seres, ampliamos (por analogia) essa idéia até alcançarmos a idéia de fim de mundo. 

Mas veja bem, ter medo da morte não leva necessariamente a crer no fim do mundo. Certamente não tememos somente as coisas que são certas e infalíveis como a morte é (ao menos até que tenhamos a experiência de algum ser imortal). Temos de fato medo de coisas que são apenas possíveis e contingentes, mas nem sempre nossos medos são suficientes para produzirem crenças consolidadas. Eu (como quase todos os mortais comuns) tenho medo da morte (talvez mais de como ela ocorrerá do que dela propriamente dita). Ela ocorrerá certa e infalivelmente. Mas eu não vivo torturando meu cérebro pensando nela (se assim fosse acho que a vida tornar-se-ia insuportável), muito menos no fim do mundo (ao menos enquanto essa possibilidade se apresentar como relativamente distante). Até que se prove o contrário, o fim do mundo não é certo e infalível, e mesmo que abracemos teorias que afirmem isso, não passarão de conjeturas, umas mais plausíveis, outras menos plausíveis. 

Ademais (lembrando Hume), conhecemos mui imperfeitamente uma parte mínima desse grande sistema chamado mundo, e durante um intervalo de tempo muito curto. Como então podemos nos pronunciar com certeza acerca de um mundo que tem aproximadamente dez bilhões de anos (com formas de vida completamente desconhecidas) e que dependendo de seu desenrolar poderá ainda viver (mesmo que em condições deploráveis), mais tantos bilhões de anos? Se pensarmos nessas proporções, como formar uma idéia adequada, ou uma sólida crença (para voltar à questão), deste suposto fim?

domingo, outubro 29, 2006

Sobre o fim do mundo II (continuação)



O Juízo Final | Michelangelo

II - Baseado em que você pode reforçar sua opinião?


Em favor de que o mundo terá um fim temos algumas teorias disponíveis. É importante distinguir a qualidade dessas teorias e em que medida elas oferecem bons argumentos, ou qual delas oferece uma melhor explicação.

Assinalo aqui duas vertentes bem difundidas e distintas: as explicações científicas e as religiosas (estas últimas de cunho profético). As famosas (e a meu ver, lendárias) profecias de Nostradamus (escritas há mais de quatro séculos) são bem conhecidas e muita gente acredita nelas. Porém, o exercício da profecia sempre está associado a elementos místicos e/ou religiosos (estes, no caso do cristianismo, encontrados nas narrativas bíblicas como, por exemplo, o dia do Juízo Final). Tais pressuposições me parecem obscuras, fantasiosas, arbitrárias e frágeis. Quer dizer, em geral, não considero argumentos proféticos e místicos consistentes, embora, confesso, as acaloradas discussões acerca da filosofia da religião me interessam bastante. Não há como negar que a existência de Deus, a natureza de seus atributos, as crenças que efetivamente sustentamos e vários outros objetos dessa natureza são temas fecundos e verdadeiramente dignos de investigação filosófica.

Talvez fosse interessante que antes de pensarmos em formar uma concepção do fim do mundo, pensássemos em formar uma concepção da origem do mundo (cosmogonia), pois a concepção do fim do mundo dependerá da idéia que temos de sua origem. Se eu acredito que Deus criou o mundo (teoria criacionista) e que a Bíblia é uma fonte sagrada, confiável e veraz, provavelmente acreditarei num fim de mundo aos moldes do Juízo Final. Se eu acredito na teoria do Big-Bang, provavelmente terei uma concepção de fim completamente diferente. Muita gente acredita que Deus criou o mundo sem se interrogar muito se Ele existe mesmo (pois a existência de Deus é indemonstrável) e como, de fato, fez isso (apenas aceitam as narrativas transmitidas e já consagradas). Mas por que dar crédito a Deus na criação do mundo e não à própria matéria? Algumas respostas confortam facilmente certas mentes, outras dão origem às mais profundas inquietações, por serem muito complexas e fugidias. Mas, em geral, os homens permanecem submersos em incertezas e perplexidades quanto a esse assunto.

Por outro lado, se trilharmos o caminho das teorias científicas (apoiadas no solo mais firme de alguns dados empíricos, mas nem por isso teorias infalíveis), temos disponíveis (estou a supor) aquelas que apontam para um fim de mundo de aniquilação total e irreversível, ocasionado por várias causas concorrentes: a partir de princípios de desintegração e degradação naturais, catástrofes em série e de dimensões gigantescas (secas, maremotos, terremotos, tsunamis, choques de meteoritos ou planetas, uma nova explosão térmica, ou ainda a morte do sol). Algumas destas catástrofes (dizem) aconteceriam em virtude de certas ações humanas, outras pela própria natureza. Todavia, é difícil conceber a idéia de aniquilação total.

Veja só, existem teorias que sustentam que o mundo pensado como aniquilação total e irreversível não teria um fim propriamente dito, mas apenas grandes transformações que se dariam através de fenômenos que, no fundo, são auto-organizativos. Para afirmar uma aniquilação total do mundo, que inclua todos os seres vivos, toda a natureza orgânica e também a inorgânica, temos de negar a Lei da Conservação da Matéria [1774 – Lavoisier] que reza que “na natureza nada se cria, nada se perde, tudo se transforma” (não sei se essa lei já caiu por terra, mas acredito que não). Se todos esses fenômenos catastróficos não forem suficientes para destruir a matéria inorgânica, a ponto de fazê-la desaparecer, parece possível que essa matéria inorgânica venha a gerar nova matéria orgânica, e daí novas formas de vida. Acho que a teoria do Big Bang (pela qual guardo bastante simpatia) segue essa linha. Parece-me uma teoria bastante plausível para se pensar a origem do universo, bem como o seu “possível” fim. Esta teoria afirma que o Universo surgiu há pelo menos dez bilhões de anos em virtude de uma explosão térmica resultante da compressão de energia. Portanto, o Universo teria sua origem nessa explosão e a matéria orgânica (a vida), por sua vez, teria sua origem na matéria inorgânica. Ora, se o fim do mundo ocorrer devido a uma nova e imensa explosão, podemos acreditar que ele não acabará de fato, mas sim que sofrerá grandes transformações, e que, talvez, sejam necessários mais alguns bilhões de anos para o mundo tomar uma forma tal qual ou apenas próxima a que conhecemos hoje. Também é lícito supor que será totalmente diferente, que jamais se organize nestes moldes, enfim, qualquer suposição a esse respeito que não esteja nem possa ser assentada na experiência (e não temos experiência da origem dos mundos, tampouco do fim), permanecerá no plano das hipóteses. É claro que numa explosão assim a raça humana não teria condições de sobreviver, mas note, da extinção da raça humana não se segue o fim do mundo. Podemos pensar em relação ao exemplo acima que um processo de desorganização e degeneração da matéria participaria de um processo de reorganização e regeneração. A desorganização tornar-se-ia um dos traços fundamentais da organização do sistema. Cabe perguntar: qual das hipóteses disponíveis é mais plausível? A ciência com suas descobertas e capacidade de predição torna-se aqui indispensável para responder mais satisfatoriamente a essa questão.


sexta-feira, outubro 27, 2006

Só para assinalar...


Olha só como é que eu fiquei rghrghgrhgrhrghrgrh.
Hoje, pra colocar a postagem abaixo, fiz nada mais nada menos do que nove tentativas. As oito primeiras foram frustradas.
Esse blog tem hora que dá nos nervos: a imagem não entra, a página expira, a cada vez que modificamos uma coisinha o negócio emperra. Levei algumas horas. Alguém aí sabe o que acontece com esse brilhante veículo de comunicação? Haja paciência! Ufa... desabafei!
Amanhã vou tentar postar as outras questões sobre a idéia de fim do mundo.

Sobre o fim do mundo - I





Outro dia recebi um telefonema de um estudante de jornalismo (o Vinícius) pedindo que eu concedesse uma entrevista a ele (fui indicada pela Karen Debértolis). Perguntei: qual é o tema? E ele disse: é sobre o fim do mundo.

Ich! Minha mente deu a volta ao mundo. Perguntei-me: que sei eu sobre o fim do mundo? Aliás, como posso saber algo a respeito do fim do mundo? Ainda, como posso pensar sobre o fim do mundo e afirmar algo a respeito dele? 

Me vi ora presente, ora ausente, às vezes na terra, às vezes no céu. Fiz uma viagem para além dos limites da realidade: transportei-me “... às mais distantes regiões do universo, ou mesmo para além do universo, até o caos desmedido onde se supõe que a natureza jaz em total confusão” 

(não resisti a usar essa bela frase de Hume, EHU seção 2). O resultado (nada conclusivo) será apresentado em partes, pois escrevi sete páginas sobre o assunto e cada vez que as leio inclino-me a mudar ou acrescentar mais alguma coisa às idéias que esbocei.

É claro que devo ter escrito muita bobagem (rs). O assunto é vasto e fugidio. E não dá dinheiro, como disse uma de minhas filhas – expliquei-lhe que não dava dinheiro para mim, o que não é o caso do Marcelo Gleiser e muitos outros. Mas dando ou não dinheiro o tema é muito instigante e parece inesgotável! 

A entrevista consiste de nove questões: vou responder uma a uma em posts separados, com uma, duas ou três questões. Não apresento concepções consolidadas, mas sim um tatear sobre muitas dúvidas e algumas hipóteses. 

As questões foram as seguintes


1. Qual a sua concepção sobre o fim do mundo?
2. Baseado em que você poderia reforçar sua opinião?
3. De onde você acredita que vem a necessidade de se acreditar no fim do mundo?
4. Como você imagina esse dia?
5. Existiria então algum meio de salvação?
6. Na sua opinião o fim do mundo está relacionado a atitudes humanas ou a algo divino?
7. Você acredita na extinção da raça humana?
8. O fato de o fim do mundo ser presente na vida humana desde o início da civilização se deve a quê?
9. Se soubesse o dia exato em que o mundo iria acabar o que você faria?

Bom, começo com uma cartinha para o Vinícius. A entrevista foi realizada por escrito via e-mail.


Vinícius: o que expresso aqui em relação ao tema do fim do mundo são algumas idéias (fresquinhas) decorrentes das inquietações que o assunto me causou. São meras especulações que de forma alguma podem ser consideradas crenças consolidadas ou concepções estanques. A questão se colocou para mim do seguinte modo: em vez de procurar fazer afirmações sobre como eu acho ou acredito que será o fim do mundo, procurei esboçar algumas (poucas) concepções mais difundidas sobre o tema, extrair algumas conseqüências e pensar em como o fim do mundo pode ser pensado. Isso porque acredito que ele pode ser pensado de vários modos, dependendo dos métodos e perspectivas que adotarmos (bem como de certos dados empíricos disponíveis). Abstive-me de citar pontualmente algumas idéias que inevitavelmente tomei emprestada do filósofo David Hume (1711-1776) porque isso me tomaria muito tempo (e eu tomei essa entrevista como uma conversa informal). Para fazer citações eu teria que revirar algumas obras. Mas gostaria de registrar (para não ser acusada de desonestidade filosófica, ingrata, plágio, etc), que por trás de muitas idéias particulares que aqui apresento encontram-se traços marcantes das teorias de Hume.


I - Qual a sua concepção sobre o fim do mundo?


Não sei se poderia afirmar que tenho propriamente uma concepção formada, completa ou acabada do fim do mundo. Tenho sim, algumas noções inconclusivas a respeito desse tema. Em geral meu pensamento está voltado para questões sobre a origem do mundo e a ordem que nele pode ser observada (tema relacionado ao meu projeto de doutorado).

Veja só: a idéia de fim de mundo diz respeito, ao menos até que se prove o contrário, a um futuro (e sobre o futuro só podemos crer, conjeturar e lançar hipóteses com maiores ou menores graus de probabilidades) aparentemente bem distante. Penso que é natural que nos preocupemos com o futuro, mas numa dimensão mais imediata, pois objetos muito distantes têm pouca influência sobre nossas paixões. Isso não significa que não seja uma questão instigante (pois nos leva a pensar em conceitos como finitude, infinitude, mortalidade, imortalidade, eternidade, origem), mas na medida em que diz respeito a questões de fato e existência (Hume EHU seção 4) cujas respostas permanecerão (até que tal fato se dê) na esfera das probabilidades, acho tanto possível que o mundo acabe quanto que não acabe, ou seja, que tenha fim e não tenha. Podemos pensar ambas as proposições sem cair em contradição. Quero dizer, as duas são possíveis. Para formar uma concepção mais sólida, eu teria de reunir dados e analisar detidamente os argumentos que contam a favor e contra essa idéia, ainda que idéias muito distantes, não assentadas na experiência, sejam pálidas, escorregadias e imprecisas.

Pois bem, a própria noção de fim de mundo, além de muito complexa, é pouco clara, pois de que tipo de fim de mundo estamos falando? É um fim total no qual todas as formas de vida desapareceriam, toda a matéria orgânica e, inclusive, a inorgânica (se é que isso é possível de fato)? Ou um fim no qual só os seres vivos seriam aniquilados? A matéria inorgânica subsistiria, ainda que totalmente transformada? O mundo aqui referido significa apenas o planeta terra, ou contempla um universo maior de outros mundos possíveis? Ou seja, seria necessário qualificar melhor esse “fim de mundo” pois, dependendo da dimensão que adotarmos, é possível dar a cada uma dessas questões respostas distintas.



quinta-feira, outubro 26, 2006

Deu nó - háháhá!!!


Calma gente, sei que faz tempo que não escrevo aqui. Mas não se desesperem rsrsrsrsrs ... só preciso de mais um tempinho. Teremos novidades neste final de semana. Pensar dá trabalho. Escrever, então? nem se fala...
Abraços!

sábado, setembro 30, 2006

Um verdadeiro duelo...


O comentário abaixo refere-se a um outro comentário escrito pela estudiosa de Kant Andréa Faggion. O debate tem início numa postagem intitulada “Compatibilismo versus incompatibilismo (ou Hume versus Kant)” publicada em 22 de setembro de 2006 por Aguinaldo Pavão no blog http://agguinaldopavao.blogspot.com.br/2006/09/compatibilismo-versus-incompatibilismo.html
Junto a esta postagem segue (na seção de comentários) a brilhante resposta da Andréa: uma verdadeira aula sobre a teoria kantiana.

Cara Andréa,
Peço licença para brindar o seu “belo e inteligente” comentário (como bem disse o Aguinaldo... e sem ironia) com alguns comentários ulteriores (provavelmente não tão belos e inteligentes rsrsrs). Se me permite a intromissão, a comparação que você fez entre as teorias de Hume e Kant sobre a liberdade e imputabilidade moral causou-me um desconforto filosófico de tirar o sono (não se sinta culpada rsrsrs, sempre que eu mesma faço essa comparação perco o sono). Isto porque, para oferecer uma resposta a essa famigerada controvérsia, ambos caminham em direções diametralmente opostas, a meu ver, num verdadeiro duelo de gigantes. Como você sabe, Hume busca em suas explicações uma radical deflação metafísica, e Kant, embora pense numa metafísica crítica, não deixa de ser metafísico. Hume adota um monismo explicativo. Já Kant, um dualismo que os kantianos e Kant mesmo preferem chamar de transcendental. Também suas concepções de razão e vontade são completamente distintas. Há que se ressaltar que Hume e Kant estão num profundo desacordo quanto às competências do discurso filosófico. Não pretendo, ao menos neste momento, afirmar a verdade de uma teoria e a falsidade de outra, mas apenas mostrar que a solução compatibilista humeana não é tão fácil assim, como você assinalou, pois não se reduz a afirmar que, “afinal, a vontade possa ser necessitada por causas naturais e o corpo livre para agir”. De fato, Hume, em outras palavras, afirma isso, mas para chegar a essa simplicidade empreende uma tarefa que a meu ver não é nada fácil.
Quando se trata de liberdade interior, Hume de fato opta pelo determinismo, mas é justamente por isso que ele é um compatibilista. Como qualquer compatibilista coerente, Hume recusa a liberdade da vontade, mas não a liberdade da ação. E não há razão para que um compatibilista fique constrangido se lhe fizerem a pergunta: como podemos ser moralmente censurados ou louvados se nossa vontade não é livre? Para um compatibilista, os nossos juízos ordinários de responsabilidade moral de modo algum requerem uma vontade livre para lhes dar suporte, basta admitirmos que um homem agiu de acordo com sua vontade (não que agiu com uma vontade livre). A reflexão de Hume sobre a imputabilidade moral visa a elucidar o modo como o senso comum procede, especialmente na qualidade de observador, quando se trata de emitir juízos de aprovação e desaprovação moral. Ora, os juízos de louvor e censura moral, na visão de Hume, reportam-se ao caráter do agente. Portanto, o alvo da imputabilidade moral é o caráter – isto é, uma disposição interna com relativa estabilidade que motiva as ações dos indivíduos.
Para que possamos compreender essa teoria, devemos, é o apelo de Hume, fixar a filosofia na província modesta da vida comum. Se não entendemos o que Hume compreende por filosofia, simplesmente não compreendemos Hume. Na sóbria província da vida comum poderemos perceber que não há qualquer necessidade de investigarmos as causas remotas que determinam o caráter (porque alguém bem poderia perguntar se somos responsáveis por nosso caráter, já que ele é antecedentemente determinado). O caráter pode ser - como de fato é pelo senso comum - tomado como a instância pragmaticamente última de nossos juízos de imputação moral.
É claro que Kant de modo magistral e sublime ultrapassa as jurisdições epistemológicas fixadas por Hume, procurando mostrar que a condição de possibilidade para se pensar a liberdade e imputabilidade moral implica necessariamente a adoção de um duplo ponto de vista, ou seja, o do fenômeno e o da coisa-em-si. Agora, é evidente que a Hume esse duplo ponto de vista não interessa. Por certo ele rejeitaria categoricamente (rsrsrs) essa perspectiva transcendental, afirmando, provavelmente, que coisa-em-si não tem sentido algum e, conseqüentemente, a lei moral kantiana também careceria de qualquer sentido. Ora, a partir de perspectivas metodológicas radicalmente distintas, afirmar que Hume fracassa em oferecer uma resposta satisfatória ao problema é fechar os olhos para os critérios epistemológicos estabelecidos por ele e aplicar distinções a uma teoria que, em hipótese alguma, se prestaria a isso.
Bom, afora essa minha tentativa de esclarecer alguns pontos, acredito que haja algum problema de tradução em relação à primeira citação que você faz de Hume: “esta liberdade incondicional...”. Veja só, isto está em completo desacordo com Hume, pois, como determinista, tudo está condicionado, inclusive a liberdade (como a teoria dele esforça-se por demonstrar). Na verdade, Hume fala em liberdade hipotética: “Now this hypothetical liberty is universally allowed to belong to every one, who is not a prisoner and in chains” (EHU, 8 §23, p.159). Uma tradução dessa merece ser atirada às chamas... uma vergonha! ... rsrsrsrsrs.
Um abraço,
Marília
(p.s.: Ai, ai, ai... sabe que agora, pensando bem, pelo pouco que te conheço, e o muito que sei de sua competência filosófica, acho que em vez de recuperar o sono vou perder de vez... rsrsrsrsr).